Essa narrativa, escrita em 1947 pelo franco-argelino Albert Camus, tem atraído muitos leitores em diversos países da Europa, em meio à pandemia de coronavírus.
Não só ela — livros de ficção que se passam em situações de epidemias ou pandemias, como Ensaio Sobre a Cegueira (1995), do português José Saramago, e de não-ficção que descrevem a disseminação de doenças no passado estão constantemente nas listas de mais vendidos.
No Brasil, isso ainda não está acontecendo. A editora Record, que publica a versão brasileira mais recente de A Peste, diz que ainda não viu aumento na procura. A Livraria da Vila, uma das principais de São Paulo, informou à BBC que, por enquanto, não notou aumento nas vendas ou na procura por títulos do gênero.
"Encaramos com naturalidade que os europeus estejam procurando se informar por meio de obras com a temática, uma vez que a Europa já passou por grandes epidemias ao longo dos séculos e é uma das regiões mais atingidas pelo coronavírus. No entanto, a situação no Brasil é distinta e não há como prever os próximos cenários", disse a administração da livraria, por e-mail.
A livraria afirma que, por ser um fenômeno recente no Brasil, ainda não está preparando ações específicas, como pedidos às editoras de livros sobre o tema, mas pode recomendar alguns livros, como História da Humanidade Contada Pelo Vírus, de Stefan Cunha Ujvari; Cidade Febril- Cortiços e epidemias na corte imperial, de Sidney Chalahoub e Peste e Cólera, de Patrick Deville.
A BBC procurou outras grandes livrarias, como Cultura, Travessa e Martins Fontes, mas não teve resposta.
A BBC procurou outras grandes livrarias, como Cultura, Travessa e Martins Fontes, mas não teve resposta.
Se não no Brasil, esses livros estão vendendo mais? Do que tratam? O que têm a ver com a realidade do surto de coronavírus? Que lições nos oferecem sobre como lidar com o surto? Por que as pessoas buscam esses livros?
Na opinião do pesquisador de Camus Raphael Luiz de Araújo, doutor em Letras pela USP e tradutor de Os Primeiros Cadernos de Albert Camus, "diante da doença precisamos nos repensar — quem somos, o que estamos enfrentando. Por falarem da condição humana, esses livros ganham interesse".
Além disso, pensa ele, serve como um espelho e uma maneira de não nos sentirmos sozinhos em meio à incerteza da epidemia. "E é também uma forma de buscar esclarecimento, tem um potencial didático, que é pensar como foi para pessoas que viveram e pensaram nisso", palpita Araújo.
"É uma busca por dar forma à experiência, o que o (crítico) Antonio Candido chamava de fabulação. A Peste e outros clássicos trazem explicações de princípios sem que a gente entre na religião, oferecem caminhos para a nossa busca ética", resume ele.
A peste
O romance A Peste foi publicado em 1947, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, e conta a história da chegada de uma epidemia à cidade argelina de Orã. O personagem principal é um médico, Rieux, que combate a doença até o momento em que ela se dissipa, depois de muitas mortes. O narrador descreve como a população reage, indo da apatia à ação, e como alguns se expõem a risco para enfrentar a disseminação da peste.
Há aproveitadores, como um personagem que lucra com um mercado paralelo de produtos. Num primeiro momento, as autoridades hesitam em publicizar a doença, algo que Camus veria de forma crítica, diz Araújo — sua obra sempre volta ao tema da importância de nomear as coisas.
Nos anos anteriores à publicação do livro, diz Araújo, Camus vinha pesquisando sobre como se deram algumas epidemias na Argélia e na Europa. Logo após sua publicação, o livro foi lido como uma analogia sobre a ocupação alemã em Paris durante a Segunda Guerra, em parte por causa da epígrafe do livro, uma frase do escritor Daniel Defoe: "É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe".
Araújo aponta alguns paralelos com o momento atual: "a questão do conhecimento. Vivemos um momento em que há desinformação, fatos vêm sendo contestados. Em A Peste há um cuidado de mostrar as coisas como são de fato. O livro fala que existe (na história) um problema de abstração. A desinformação, a abstração, geram histeria, comportamentos levianos ou xenofóbicos, como temos visto", interpreta ele.
Outra coincidência é a questão de burocratização das informações sobre as mortes, que pode gerar certa desumanização dos casos, opina ele. Na ficção, o número de mortes é anunciado diariamente numa rádio. Por outro lado, o narrador descreve algumas das mortes, o que faz o leitor senti-las de uma forma mais direta.
Para Araújo, uma lição a ser tirada do romance é a ideia do coletivo. "A Peste pode ser um convite para se pensar como parte de um grupo. Neste momento em que temos divisões muito marcadas no Brasil, é um convite a pensar sobre nós como coletivo. O que atravessarmos vamos atravessar juntos. Não é 'cada um que se salve'. Como diz o Camus, a peste vira assunto de todos. Os problemas que nos atingem passam a ser de todos. Os sentimentos individuais dão lugar aos sentimentos coletivos no livro", diz o acadêmico.
"A narrativa que se apoia nos feitos de um grande herói é substituída pela narrativa de um destino comum de uma cidade que alcança todas as classes, incluindo o filho do juiz Othon. Nesse sentido, apesar das diferenças sociais, A Peste nos recorda que somos todos naturalmente condenados à morte."
Na França, as vendas de A Peste chegaram a mais que dobrar nas primeiras oito semanas de 2020, comparado ao mesmo período de 2019, segundo a publicação de estatísticas de mercado editorial Edistat. O país registrava 30 mortes pelo vírus até terça-feira.
Na Itália, o segundo país mais impactado pelo vírus depois da China, o aumento de vendas colocou o romance na lista dos dez mais vendidos, segundo a revista literária francesa Actuallité.
Todo o país está sob medidas de emergência, determinadas pelo governo, para conter a contaminação da população pelo vírus.
A Amazon italiana tem entre seus 100 livros mais vendidos diversos exemplos de narrativas de ficção e não-ficção sobre epidemias, como Virus, La Grande Sfida (Vírus, o grande desafio, em tradução livre), do virologista Roberto Burioni. O livro, segundo a sinopse, "descreve a natureza e o funcionamento dos vírus, sua transmissão de animais para seres humanos, a evolução de nosso conhecimento científico sobre ele, os efeitos devastadores das epidemias na história da humanidade e as batalhas travadas no último século contra elas".
Ensaio sobre a Cegueira, do romancista português José Saramago, também anda nos altos postos da lista. O livro conta a história de uma "treva branca" que vai deixando cegos, um a um, os habitantes de uma cidade.
No Reino Unido, leitores também vêm procurando A Peste, que deve ser reimpresso pela editora Penguin, já que já quase não há mais exemplares em estoque na Amazon.
O livro The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History (A grande gripe: a história da pandemia mais mortal da história, em tradução livre) estava entre os 100 mais lidos na versão britânica do site.
A narrativa de não ficção fala sobre "o vírus da gripe mais letal da história", segundo a sinopse. "No auge da Primeira Guerra Mundial, irrompeu em um acampamento do exército no Kansas, expandiu para o leste com tropas americanas e depois explodiu, matando até 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Matou mais pessoas em 24 meses do que a AIDS matou em 24 anos, mais em um ano do que a Peste Negra matou em um século."
"Como o autor sabia?"
"Não costumo ler esse tipo de livro, mas tive que lê-lo porque estamos 2020 e no meio do avanço do coronavírus. Como o autor sabia?", se pergunta um leitor no site britânico da Amazon sobre o romance The Eyes of Darkness (Os olhos da escuridão, em tradução livre), de 1981, escrito pelo americano Dean Koontz.
Assim como ele, muitos se perguntaram, em redes sociais, se o autor havia "previsto" a expansão da doença. Koontz de fato descreve no livro um vírus fictício que se chama "Wuhan-400" e cujo nome refere-se à cidade chinesa onde começou o surto de coronavírus. No entanto, o vírus, no romance fictício, é uma arma biológica da China, desenvolvida em laboratório, e não um micróbio que se espalha espontaneamente pelo mundo. Além disso, o vírus do livro é mais letal e se espalha mais rapidamente.
Em sua primeira versão, publicada em 1981, o vírus fictício não vinha da China, mas sim da Rússia, e se chamava Gorki-400, segundo a agência de notícias Reuters. A segunda versão saiu em 1989.
Não apenas livros
O filme Contágio esteve entre os mais vistos nas plataformas iTunes e Google Play, algo que pode ser considerado um marco para um filme que não é estreia.
No enredo, Beth Emhoff (Gwyneth Paltrow) retorna ao Estado de Minnesota (Estados Unidos) após uma viagem de negócios em Hong Kong e começa a se sentir mal. Emhoff atribui seus sintomas ao fuso horário.
No entanto, dois dias depois ela morre, sem que os médicos encontrem a causa. Logo depois, outras pessoas começam a manifestar os mesmos sintomas e, logo, é desencadeada uma pandemia que as autoridades de saúde tentam conter.
Em menos de um mês, o número de mortos na história chega a 2,5 milhões nos EUA e 26 milhões em todo o mundo.
No momento de seu lançamento, alguns especialistas elogiaram a maneira como o filme refletia a situação de uma pandemia.
Mas o que a realidade do coronavírus chinês realmente tem em comum com a ficção do filme de Soderbergh?
Um tema comum é que ambos os vírus se originam na China e os morcegos parecem desempenhar um papel preponderante.
Especialistas da Organização Mundial da Saúde apontam que é muito provável que o novo coronavírus venha de morcegos. Eles estimam que ele teve que pular primeiro para um grupo de animais não identificado antes de poder infectar humanos.
O filme mostra imagens de cidades em quarentena, aeroportos fechados, profissionais de saúde com trajes especiais, pessoas com máscaras, cidades vazias, lojas fechadas… Essas cenas vêm se tornando mais comuns, com China e Itália sob medidas de emergência para conter a disseminação do vírus.
No filme, entretanto, a doença tem contágio mais rápido e é mais letal.
Na história, pesquisadores conseguem produzir e distribuir uma quantidade limitada de vacinas em apenas 90 dias.
A realidade do coronavírus é diferente, ainda que, diferentemente dos surtos de vírus anteriores em que as vacinas para proteger a população levavam anos para serem desenvolvidas, a busca por um medicamento para controlar a disseminação da pneumonia de Wuhan tenha começado poucas horas após a identificação do vírus.
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