James Baldwin, centenário |
Que jornada é essa vida! Dependente, em sua completude, em coisas não vistas. Se o seu amor vive em Hong Kong e não pode ir até Chicago, vai ser necessário que você vá para Hong Kong. Talvez você irá gastar a sua vida inteira naquela cidade, e nunca mais ver Chicago. E você vai, eu te garanto, enquanto o tempo e o espaço dividir você de quem você ama, descobrir um monte de rotas de navios, aviões, terremotos, carestia, doenças e guerras. E você sempre vai saber qual é o horário em Hong Kong, pois você ama alguém que mora ali. E o amor simplesmente não tem alternativa a não ser batalhar contra o tempo e o espaço, e além disso, vencer.
Eu sei que muitas vezes perdemos, e que a morte ou a destruição de outra pessoa é infinitamente mais real e insuportável que a nossa. Eu acredito que sei quantas vezes uma pessoa precisa recomeçar, e como muitas vezes sentimos que não podemos mais recomeçar. E mesmo assim, sob a dor da morte, ninguém consegue ficar onde está. A luz. A luz. Você irá perecer sem a luz.
Eu dormi em terraços, em sótãos e em metrôs, estive com frio e com fome durante toda a minha vida; senti que nenhum fogo iria me esquentar, e que nenhum braço iria me abraçar. Eu estive, como a música diz, “maltratado e desprezado” e sei que sempre vou estar. Mas, meu Deus, naquela escuridão, que era muita de meus ancestrais e meu estado, que poderoso fogo queimava! Naquela escuridão de violação e degradação, aquela fina espuma e névoa de sangue, entre todo o terror e toda a falta de esperança, havia uma alma viva se movendo se recusando a morrer. Nós realmente esvaziamos o oceano com nossas colheres feitas em casa e derrubamos montanhas com nossas mãos. E se o amor estava em Hong Kong, nós aprendíamos a nadar.
É um poderoso legado, é o legado humano, e é tudo que se tem para confiar. E eu aprendi isso olhando, como era, nos olhos de meu pai e minha mãe. Eu me perguntava, quando era pequeno, o quanto eles aguentaram – porque eu sabia que eles tinham muito o que aguentar. Não tinha me ocorrido que eu também tinha muito o que aguentar; mas eles sabiam, e os inimagináveis rigores de sua jornada me ajudaram a se preparar para a minha jornada. Por isso é que você deve dizer Sim para a vida e se envolver com tudo que for encontrado – ela é encontrada em lugares terríveis; de todo modo, ela está ali; e se o pai pode dizer, “Sim, Senhor”, a criança pode aprender a dizer a mais difícil das palavras, “Amém”.
Pois nada é fixo, pra sempre e sempre e sempre, nada é fixo; a terra está sempre mudando, a luz está sempre mudando, o mar não para de bater com as rochas. Gerações não param de nascer, e nós somos responsáveis por elas, pois somos as únicas testemunhas que elas tem.
O mar sobe, a luz falha, os apaixonados agarram-se uns aos outros, e as crianças agarram-se a nós. No momento em que paramos de nos abraçar, no momento em que quebramos a fé em um ao outro, o mar nos envolve e a luz se apaga.
James Baldwin, “Nothing Personal”
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