Esta é a dança do homem, que tem a ciência dos números e das alturas, e a quem uma veemência maior é permitida.
Quanto à mulher hindu, ela não se espanta nem me espanta. Seus movimentos são tão continuados e envolventes como a imobilidade corredia de um rio. Tem as curvas longas das mulheres antigas. As cadeiras daquela ali são largas demais e reduzem as possibilidades de seu pensamento. São mulheres sem crueldade. E na dança muda renovam o primitivo sentido da graça. Mesmo a sensualidade é ainda a mesma graça, apenas um pouco mais intensa.
A plateia mal tolera, tão monótona é esta dança já determinada há séculos. E também porque é iniludível o nosso mal-estar diante do Oriente: é um outro modo de saber a vida, o deles. E depois há o outro mal-estar: sente-se que eles não acreditam em nós. Há então certos movimentos dos dançarinos que desanimam todo o Ocidente. Eles acreditam em máscaras, acreditam num amor maior: são coisas antigas, serenas demais.
O interminável programa que folheio anuncia agora que três mulheres dançarão “mostrando todo o encanto feminino”. Que decepção. As três mulheres que aparecem mal se movimentam. Procura-se o “encanto feminino”, e veem-se três mulheres se movendo tranquilas, como se isso bastasse. E o pior é que de repente basta. Como se nos dissessem: eis aqui a fruta mais rara, e nos mostrassem a laranja de todos os dias. Surpreendida, vejo que a laranja é rara entre as mais raras.
Minha tendência, que é só ambicionar a saciedade, espanta-se com o frugal que eles nos dão. Gordos e brancos, nós nos instaláramos nas poltronas, à espera das oferendas dos Reis Magos. Mas eles nos devolvem à nossa pobreza de saciados, tomando como tácito que a fome é simples. Dançam então sem malícia, expondo as costas a nossos dardos. A essa altura já temos vergonha de revelar-lhes que possuímos muito mais – não aquilo, é verdade, porém muito mais. Com um sorriso encabulado, procuramos fazer as honras desse banquete de pobre, fingindo agradecidos que estamos comendo faisão. Com mal-estar, deixamos que nos descalcem e nos banhem com óleos. O que eles fazem sorridentes, límpidos, sem humildade. Será que o hábito antigo nos mandaria em seguida untar-lhes os pés escuros? Sinto que assim deveria ser. Mas o que me ofende é que eles nem sequer o esperam de nós.
A dança é tão calma que pouco a pouco aprofunda as horas. O programa não terminará jamais? Amarrada pelo fato de já estar no teatro, eles me torturam sem pressa, mostrando pouco a pouco como pés nus têm a mesma inteligência indicativa de mãos, como a pele escura é a mais certa, mostrando como é que se vivia atrás de uma Bíblia tão grande que até ímpia ela também é – fascinando-me com a repetição exaustiva da mesma verdade. Até que, de tanto olhar, compreendo especiarias, galeões, perfume de canela, e a importância dos rios se revela: as cidades se constroem ao lado de águas. O címbalo tem um som que passarei a chamar de peregrino. Os espíritos puros só podem ser invocados com címbalos. Em torno dos tornozelos e dos pulsos, os guizos revelam em vibração leve as intenções mais delicadas do corpo.
Mas os nomes dos dançarinos são doces e maduros, fazem bem à boca. Mrinalini, Usha, Anirudda, Arjuna. Suavidades um pouco acres, estranhamente reconhecíveis: já comi ou não comi dessas frutas? Só se foi enquanto eu, Eva, entediada experimentava das árvores.
Os músicos ficam sentados no próprio palco, sobre as pernas cruzadas iogamente. A música é um monólogo plangente, soa como o vento quando se tem um pouco de medo do vento. É uma melopeia invariável que foi transplantada de espaços maiores para o tamanho do teatro, assim como um animal de campo que dá voltas pacientes na jaula. Entre os músicos, um homem bem magro é o cantor. O canto é leve, parece inventado apenas pela garganta.
E lentamente vai me adormecendo na cadeira, lentamente me hipnotizando em serpente.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
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