sábado, maio 3

A quinta

Já nessa época tomava o pequeno almoço às sete da manhã e era sempre a primeira a chegar à sala. Os pais diziam que ela era o galo lá de casa, pois punha em movimento a criadagem logo de manhã.

Sentava-se na mesa, no lugar que lhe fora destinado desde que era gente, e enquanto não lhe colocassem o leite à frente não parava de o reclamar. Olhava à sua volta e as paredes enormes da sala de pé direito muito alto pareciam protegê-la. A madeira e a pedra que as revestiam transmitiam-lhe uma refinada solidez que ao longo da vida sempre a aquietou. Sentia-se bem naquela sala, mesmo estando sozinha na mesa.

O silêncio da casa era um borbulhar surdo de ruídos melodiosos, eufónicos. Começava na cozinha com os passos abafados da cozinheira até ao roçar da louça na bandeja, estendia-se depois aos toques do relógio de pé do corredor que compassadamente se iam fazendo ouvir e então vinham, em correria deslumbrante, os sons do jardim, dos pássaros imensos, das folhas das árvores, das abelhas em constante laboração, dos cães latindo baixinho, das vozes arrastadas dos trabalhadores anunciando a apanha dos frutos, a recolha das verduras, a passagem dos animais … Enfim, eram tantos os sons que entravam magicamente pelas janelas da sala que lhe pareciam ser o apelo da vida rodopiando à sua volta. E assim se sentia alegre e feliz logo bem cedo, de manhã.

A mãe só aparecia às sete e meia seguida sucessivamente dos irmãos. A essa hora já estava a respirar cá fora, reconhecendo o seu mundo.

Corria, então, para a garagem seguida pelos cães e apanhava a bicicleta e lá ia directa ao rio que atravessava a quinta. Pelo caminho, ia olhando cada árvore pois conhecia o nome de todas e a todas ia saudando numa interminável e quase ininteligível lengalenga que só ela e as árvores reconheciam. Os cães, a seu lado, iam ladrando com carinho como que a anunciar que ela estava a passar.
A luz penetrava através do arvoredo que se alterava conforme se aproximava do rio. Aqui, as árvores eram mais espessas, mais imponentes no seu porte e apesar de tão grandiosas acabavam abruptamente numa vasta clareira verde, onde inesperadamente surgia o rio.

E a alegria, o prazer e aquele bater descompassado do coração tomavam conta dela. O rio era a sua paixão. Todos os dias assim que o avistava, emergia nela uma plêiade de sentimentos num turbilhão descontrolado que tinha de parar e obrigar-se a arfar o ar com sofreguidão para não morrer logo ali.

E era assim que imaginara a morte! Deveria ser o transbordar de tanta alegria que entupia a respiração, deixando o coração sem ar. Quem lhe dissera fora a Benta, num dia que a acompanhara ao rio.

“-Ai menina –dissera ela – respire, porque se não meter ar nesse coração, morre já de tanta alegria.”

Saltava da bicicleta e lançava-se em correrias pela margem do rio até o cansaço tomar conta dela. Então, estendia-se na erva e começava a olhar o céu e a chamar os pássaros pelos nomes, reconhecendo o chilrear de cada um antes mesmo de o avistar.

Antero, o filho do caseiro, tinha sido o seu mestre, embora fosse mais novo que ela um ano. Ele era o seu companheiro mais fiel e inteligente. Sabia de tudo da quinta e do rio.

Todas as manhãs, ele vinha para o rio, mas só depois da ordenha das vacas, tarefa que realizava com o pai. Assim, era ela sempre a primeira a chegar.
Quando ele aparecia, trazia o sol nos cabelos e a luz nos olhos. Todo ele brilhava e esse brilho encantava-a.

Ficavam, então, horas a fio reconhecendo a mata para além do rio ou descobrindo novas plantas que germinavam pela quinta. Por vezes, ele desenterrava a jangada de madeira que encontraram num recanto escondido da quinta e lá iam rio abaixo encenando descobertas que retiravam dos livros de aventuras que o pai lhe oferecia.

Era ele que lhe ensinava o nome das flores, das árvores, dos frutos, dos pássaros e lhe traduzia os sinais que a natureza apresentava para anunciar a mudança das estações.

Assim passou a reconhecer o arco-íris, as falsas marés do rio e até o prenúncio da chuva e da trovoada.

A Primavera era a sua estação preferida. Quando vinha a casa, nas férias da Páscoa, era um deslumbramento permanente.

Antero tinha sempre um novo segredo que ia demoradamente revelando. Recordava-se da ninhada de coelhos numa toca recôndita, junto à nascente que abastecia a quinta. Da coruja que ficara presa no galinheiro, do cordeirinho quase um anjo de tão branco, enfeitado com um grande laçarote pastando no jardim à sua espera e de tantos e tantos outros.

Nessa altura, as mimosas e as túlipas enchiam a quinta de cor. O amarelo salpicando a verdura e o contraste colorido dos canteiros cheios de túlipas variadas eram uma visão que a emocionava logo à chegada.

Os cheiros frescos da terra espalhavam-se no ar e aí ela reconhecia o seu lugar. Era este o cheiro que Antero trazia com ele.

Que saudade tinha de Antero quando estava longe. Que saudade teria sempre dele.

Maria José Vieira de Sousa, "O lugar, memórias de um romance"

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