domingo, maio 4

Consciência de juiz

– Nadie podia pretenderlo,
porque esta entrada era
solamente para ti. Ahora
voy a cerrarla.
Kafka

Bem próximo da aposentadoria. Poucos meses faltavam. Trinta e cinco anos de exercício na nobre função de prestar justiça aos que são ofendidos por atos ilegítimos. Por ele mesmo continuava na função até a última gota de vida, aposentadoria nem falar, só se não tivesse jeito. Acostumado a julgar demandas como um fato natural nos movimentos cotidianos da vida. De todos os tipos. Sentenças memoráveis, dignas da mulher com a venda nos olhos, a balança com o peso ideal de cada lado, a espada sustentando a luta pelo direito.

Neutro acima de tudo, aplicando o direito ao fato conforme o conjunto de provas nos autos, dando a cada pessoa o que é seu, reparando os danos, preservando a vida individual do homem na história como ser social, cumpridor de seu destino gregário.

Sem a prestação da justiça, não haveria a paz, sobrevivência da espécie humana, o caos instalado pela lei do mais forte. A esperança banida pelos instintos impiedosos do insano animal sem trégua.


A sentença justa, fundamentada nas provas documentais, periciais, testemunhais. O que estava fora dos autos não tinha valia para formar convicções. Não adiantava dizer, senhor juiz estou inocente, juro pelo amor a Deus, pela alma de minha mãe, por todos os santos, amém. Rogasse o réu, derramasse lágrimas: Acredite, eu vos peço, de joelho, absolva-me, quero criar meus filhos, não tenho marido, sou uma pobre viúva, vivo de catar as coisas no lixo, não quero morrer na prisão. Roubei para não morrer de fome com meus filhos. Não adiantava a cena convulsiva, o direito não se media pela condição da pessoa, tamanho do dano, todos eram iguais perante a lei. A razão sempre esteve acima da emoção, ajustada nos artigos, parágrafos, proclamada nos considerados, no final da lide a sentença reta e certa.

Determinava categórico, retirem essa mulher do recinto, procedimento inadequado, precisamos ouvir as testemunhas de acusação.

Uma máscara sólida o rosto, a pele enrugada, não se via um sorriso, os olhos absorvidos pelas cavidades grandes das órbitas, sobrancelhas grossas, unidas na curva das pontas, como se fossem uma, os cabelos brancos, bem penteados, alisados, lustrados com brilhantina, a camada espessa dos fios grossos não esvoaçava ao vento.

Aposentado, andava equilibrado, passos meticulosos, concentrado, o rosto com a expressão fechada por onde passava. Passeio matinal pelo jardim. Parecia fora do mundo. Não escutava o gorjeio dos pássaros. Não se encantava com os raios de sol no tronco das árvores inventando aranhas. Foi quando ouviu os gritos da menina, estava sendo estuprada por dois homens grandes e fortes. A cena desalmada não lhe perturbara.

A polícia chegou rápida, a área isolada pelo cinturão dos guardas e viaturas. O sargento perguntou-lhe se tinha visto a cena brutal que vitimou a menina. Disse que viu tudo, mas não tinha palavras para descrever o que presenciara. Ainda não se acostumara com o mundo visto aqui de fora, seus movimentos diversos, inesperados, na dura lei da vida com suas abomináveis ciladas.

Destituído de emoção, discípulo da razão reta, que julgava os fatos com a letra fria da lei, desaprendera a ter sentimentos que acompanham a espécie humana desde tempos imemoriais.

Sem essa condição, que dá ao homem o que lhe pertenceu sempre, razão e emoção, escutara os gritos lancinantes da menina, sem sentir a crueldade da cena: a menina morta com a força dos estupradores na sanha inconcebível, o que indubitavelmente deixaria qualquer pessoa perplexa ante a cena abominável. O que valia para ele não era o mundo de fora, mas o que estava nos autos com o conjunto de provas pendendo para a condenação ou inocência do réu.

Segundo o pensamento fixado na ideia adquirida com os anos, uma das qualidades que o juiz devia ter estava na objetividade, na capacidade de julgar em consciência, com conhecimento, retidão, sem dolo, malícia ou fraude. Conforme o brocardo latino, dura lex sed lex. Só valia o que estava dentro dos autos, o que havia acontecido fora não importava, mesmo que fosse um caso notório e público.

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