sábado, maio 3

Quem tem olhos

Eu vinha andando na rua e vi a mulher na janela. Uma mulher como as de antigamente. De cabeça branca e braços pálidos apoiados no peitoril. Sentada, olhava para fora. Uma mulher como as de antigamente, posta à janela, espiando o mundo.

Mas a janela não era ao nível da rua, como as de antigamente. Nem era de uma casa. Era acima da entrada do prédio, acima da garagem, acima do playground. Era lá no alto. E diante daquela janela a única coisa que havia para se ver era, do lado oposto da rua, a parede cega de um edifício.

Não havia árvores. Ou outras janelas. Somente a parede lisa e cinzenta, manchada de umidade. Alta, muito alta.

De onde estava, assim sentada, a mulher não podia ver a rua, o movimento da rua, as pessoas passando. Teria tido que debruçar-se para vê-los. E não se debruçava.

Também não via o céu. Teria tido que esticar o pescoço e torcer a cabeça para vê-lo lá no alto, acima da parede cinzenta e do seu próprio edifício, faixa de céu estreita como uma passadeira. E a mulher mantinha-se composta, o olhar lançado para a frente.

Serena, a mulher olhava a parede cinzenta.

Não era como nas pequenas cidades onde ficar à janela é estar numa frisa ou camarote para ver e ser vista, é maneira astuciosa de estar na rua sem perder o recato da casa, de meter-se na vida alheia sem expor a própria. Não era uma forma de barricada de participação. Ali ninguém falava com ela, ninguém a cumprimentava ou via – a não ser eu que parada na calçada a observava – e não havia nada para ela ver.

A mulher olhava a parede cinzenta. E parecia estar bem.

E por um instante o bem-estar dela me doeu, porque acreditei que sorrisse em plena renúncia à vitalidade, que se mantivesse serena debaixo da canga de solidão e cimento que a cidade lhe impunha, tendo aberto mão de qualquer protesto. Desejei tirá-la dali ou dar-lhe uma vista. Depois, entendi.

A mulher olhava a parede cinzenta, mas diante dela não havia uma parede cinzenta. Havia um telão. Um telão imenso, imperturbável, onde histórias se passavam. Que ela própria projetava, mas das quais era devotada espectadora e eventual personagem. Suas fantasias, suas lembranças, seus desejos moviam-se sobre a parede que já não era cinzenta, que era o suporte do mundo, ao vivo e em cores. Só ela os via. Mas com que nitidez!

Bem diferente daquela cidadezinha da Dinamarca onde, em viagem, reparei que havia espelhos estrategicamente colocados nas janelas, permitindo que se visse a rua sem ter que abrir os vidros. Espelhos redondos, como retrovisores, onde às pessoas quase escondidas o mundo certamente aparecia pequeno e distorcido, enevoado pelos vidros e cortinas.

A mulher da parede não, era grandiosa. Uma dama em seu elevado posto de observação. Teria podido passar a vida ali, se apenas alguém lhe desse comida.

E vendo-a tão entretida diante do nada, e do tudo, ocorreu-me que muitas pessoas olham televisão exatamente como ela olhava a parede. Sem ver, vendo outra coisa. A família reunida na sala, aquela luz azulada banhando todos no mesmo tom lunar, imagens na tela pequena, e alguém em meio à família projetando por cima das imagens criadas em estúdio outras imagens, mais vívidas, pessoais, criadas no laboratório dos desejos. Ninguém, na sala, suspeita da sua fuga, ninguém a sabe ausente. Olhando para o mesmo ponto acreditam estar vendo a mesma coisa. E se tranquilizam na falsa semelhança.

Olho da rua a mulher à janela e me alegro. Fechada num apartamento provavelmente pequeno, sem ninguém que lhe dê muita atenção, acima de uma rua estreita e sem árvores, diante de uma parede alta e cinzenta, ainda assim não está sozinha nem entediada. Tira de si, como um ectoplasma, as imagens que o mundo teima em lhe negar, as imagens da vida. E delas se alimenta. Cria, embora ninguém – talvez nem ela – lhe reconheça a criação. E com seu olhar planta árvores, acende luzes, faz festa.

Quem tem ouvidos ouça, disse o profeta. E, ele não disse mas digo eu, quem tem olhos veja.

Marina Colasanti, "Crônica brasileira contemporânea"

Nenhum comentário:

Postar um comentário