— O quê?
— Macunaíma é o nome dela. Um livro de Mário de Andrade que me fascinou na juventude: Nunca ouviu falar? Macunaíma é o herói sem nenhum caráter.
— O autor?
— O personagem. E esta cadela que também é dona de muita personalidade. Feia como você está vendo. Raça passou longe dela. Mas ficou sendo a dona e rainha desta casa. Come na mesa, se duvidar no meu prato, sobe na minha cama à hora que bem entender, arrasou com minhas plantas, roeu meus tapetes persas. Fiquei sendo a melhor freguesa de seu Lauro, ali da Parede. Não há uma semana que não lhe leve um tapete, chame para acolchoar um braço de poltrona. Perdi uma empregada de anos, um jardineiro que tinha sido de minha mãe. Deixei de fazer uma excursão pela Europa.
— Manda embora esse bicho. Dá pra alguém, há tanta gente que gosta de cachorro. A vida é uma só...
— E eu não sei disso? Essa vira-lata não estava há um mês em minha casa quando vi tudo o que ia ser o meu futuro. Soube a que ponto chegariam as minhas agruras com essa cadela de focinho triste. Vai longe com esse focinho.
— E o Luiz não implicou?
— Ameaçou sair de casa no dia em que a viu aqui dentro. Quis mudar para o clube. Cachorro em casa? Era o que faltava! O pior é que era mesmo e eu, burra, não percebi. O homem acabou criando carinho pelo bicho. Achei graça, logo o Luiz que não é dessas coisas. As caras que ela fazia quando ele chegava. Deu de esperar no portão, latindo quando o carro ainda estava longe. De manhã o acompanhava, fazendo festa até desaparecer na esquina, fazendo focinho triste quando o via descer a escada.
— Cheia de truques?
— O truque, minha filha. O próprio. Uma bastarda dessas, quem diria. Se o Luiz me escutasse! O homem deu de chegar em casa mais cedo. Quietarrão como você sabe, ficava lendo o jornal na poltrona, o raio desse bicho, muito quieta, encostada na barriga da perna, seguindo-lhe cada gesto com esses olhos mansos. Às vezes que ficou chorando baixinho na porta do nosso quarto.
— Até que ele abriu.
— Como é que você sabe? Nunca mais dormiu noutro lugar. Só come da mão dele. Jejua se ele fica resfriado. Emburra comigo se tenho a veleidade de discutir com seu amo e senhor. Ficou dois dias sem comer, chorando perto da porta, quando ele foi para o Algarve sem ela. A empregada contou tudo quando ele chegou. E isso a instalou nas profundas do seu coração.
— Aí você começou a implicar?
— Não aguento mais a cara desse bicho. Olha o focinho, o jeito de nem-te-ligo com que me olha, a descarada. Queria que você visse o Luiz entrando pela porta. A gritaria...
— Os latidos?
— Os latidos, seja. Os abraços e beijos. A festa. A lua de mel daqueles dois. Nasceram um para o outro. São almas irmãs, inseparáveis. Passei a acreditar na transmigração das almas, na metempsicose, nessas esquisitices todas. Meu marido está irreconhecível, é outro homem. Vi-lhes as lágrimas correndo pela barba no dia em que foi atropelada. Uns arranhões à toa. E o homem queria tirar revólver, chamar a polícia.
— É... O negócio está grave... Eu, no seu caso, tomava uma resolução.
— Tomei. Ele que decidisse. Eu não aguentava mais esta senhora dentro da minha casa, seus estragos, prejuízos, caprichos. Aquela lamechice toda. Ele que escolhesse, ela ou eu.
— Você tinha todíssima razão. Quando é que ela vai embora?
— Acho que só a morte nos vai separar. Ele escolheu ela. E de desaforo, fiquei.
Elsie Lessa

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