domingo, fevereiro 22

Um domingo com o velho Braga


Domingueira carnavalesca de vasculhar velhos alfarrábios e antigas revistas. Encontrar amigos perdidos em estantes e gavetas, tirar o pó do esquecimento e por a conversa em dia. E há sempre encontro oportuno como o texto (abaixo) inédito em livro, escrito pelo cronista Rubem Braga (1913-1990) e publicado há 50 anos na revista Leitura (outubro/1958). Uma raridade e um enorme prazer.

Um livro
Então lhe aconteceu parar diante de uma grande vitrina de livraria. Parou de um mo­do quase mecânico, fatigado de ter cami­nhado tanto tempo pelas ruas do centro: e atraído pelos títulos. Lembrou-se que antiga­mente freqüentava livrarias; sabia as novida­des que chegavam da Europa, encomendava livros de que via notícias em revistas estran­geiras, vasculhava lentamente os "sebos", ho­ras e horas, escolhendo pequenas brochuras encardidas que o interessavam. E se lembrou do estranho fascínio que subitamente exer­ciam sobre ele certos assuntos - por exem­plo, da impaciência dolorosa com que espe­rou ter dinheiro suficiente para comprar aquele grosso livro francês sobre heredita­riedade, que folheava de vez em quando e namorava todos os dias.
Eram gostos arbitrários, que duravam sema­nas ou meses, e variavam de história das re­ligiões a livros de aventuras polares. Várias vezes formou pequenas bibliotecas absurda­mente variadas que ia dispersando ao sabor de suas mudanças e viagens. E quando dis­tribuía esses livros por amigos ocasionais, na hora de arrumar a mala, sentia um grande prazer em se desfazer deles e de tudo o mais que possuía, de sair outra vez para outra ci­dade qualquer com sua pequena mala de poucas roupas, leve e livre.
Nunca aprendeu nada a rigor: acumumulava noções úteis e inúteis sobre mil coisas, guia­do apenas pelo capricho e pela curiosidade. Mas a verdade é que uma parte de sua vida estava nos livros, nos horizontes que eles abriam na vaga esperança de achar neles um caminho ou inspiração para não sabia o quê. E agora reparava - só agora repara­va - que no turbilhão medíocre de sua vida que ia passando, ele se afastara dos livros como quem insensivelmente vai deixando ve­lhos amigos.
E agora ali, diante da vitrina cheia de novi­dades, e alguns antigos livros raros, sentiu uma vontade de comprar muitos volumes, de fugir para alguma casa do interior com lon­gas tardes sossegadas, e passar os dias lon­ge da vida, lendo, sem pensar mais nada.
Mas a ideia de comprar trouxe-lhe a ideia de dinheiro: pensou em duas dívidas desa­gradáveis, e saiu andando com uma espécie de raiva humilde, que era uma espécie de resignação.

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