sexta-feira, dezembro 29

Vamos pescar

Portafolio de Ilustraciones: Incentivar la Lectura infantil
O Ano será novo, então faça com que seja Bom
Feliz 2018
(Voltamos logo)

Receita de Ano Novo

Ilustración interior de Paloma Valdivia para "Los cuentos del libro tonto" (Faktoría K.).
Paloma Valdivia 
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade





O ano que esperamos

Árbol de los libros: buena cosecha la de 2017 (ilustración de Rainer Ehrt)
 Rainer Ehrt

Erda, a schnauzer

Havia diversos cães rasteiros na casa, nunca menos de quatro, mas quando nascia uma nova ninhada, me antes dos cachorrinhos terem bastante idade para ser dados de presente aos conhecidos, o seu número elevava-se por vezes a dez. A linhagem começara anos atrás com um elegante animalzinho de cor castanha clara, chamado Elsa, em homenagem à exasperante heroína do Lohengrin e todos os seus descendentes tinham recebido nomes wagnerianos. Elsa era agora uma matrona de idade respeitável e deveria ter juízo; seu aspecto era, com efeito, sossegado, mas ainda ardiam nela as chamas da mocidade como, infelizmente, sucede muitas vezes com a fêmea da espécie humana depois que a idade lhe embotou de maneira por demais visível a infinita variedade, e em certas quadras do ano, era difícil fazer-lhe ver que, tendo posto no mundo uma progênie tão numerosa, convinha agora dar por terminada a sua missão. Tantos filhos e netos tivera que se tornava cada vez mais trabalhoso encontrar-lhes nomes adequados, e Erda recebera o seu porque não pudemos imaginar outro. Era preta e bege, pequenina, com uma bela cabeça, mas com um corpo atarracado que herdara do pai, o qual pertencia a um arquidiácono e, apesar do seu pedigree inatacável, adquirira, devido a essa ligação com a igreja anglicana, uma aparência maciça e algo pomposa. Erda pertencia a uma ninhada de seis cachorros e, por motivos que só ela conhecia, adotara-me desde tenra idade como sua posse exclusiva. Indignava-se quando me via dispensar atenções aos outros dachs e, se eu insistia, cortava toda relação comigo por um ou dois dias. Teimava em dormir na minha cama, não nos pés como costuma fazer todo dachs bem comportado, mas no meio, com grande inconveniente para mim, e todas as reclamações que eu fazia eram inúteis. Estava convencida de que aquele lugar era seu de direito. Seguia-me como uma sombra. Quando tinha três meses, acompanhara-me uma vez em que fui tomar banho de mar. Mergulhei do alto de uma pedra e, pensando que eu me afogaria, infalivelmente, ela saltou na água para me salvar. Mas o elemento lhe era completamente estranho e assustou-se. Tentou sair, mas a pedra era íngreme e não pode trepar por ela; foi tomada de pânico e quando a agarrei, debateu-se violentamente no seu terror. Tive alguma dificuldade de levá-la para terra firme. Desde então, acompanhava-me sempre durante parte do caminho, mas quando percebia a minha intenção parava, ladrava-me uma ou duas vezes para me advertir do perigo e abalava para casa o mais depressa que podia. Seu pensamento era claro: se esse imbecil faz questão de se afogar, eu pelo menos não quero estar presente.

L. Riedler 
Quando Erda via trazerem para baixo malas e maletas, compreendia que eu ia ausentar-me, punha-se a vaguear triste e amuada pela casa; mas quando eu regressava a sua alegria era tumultuosa. Corria como doida pelo aposento, saltava sobre mim e deitava-se de costas para que eu lhe afagasse o ventre; mas no meio dessas festas lembrava-se de que eu fora tremendamente injusto em abandoná-la e punha-se a soluçar. Isso era tocante ao extremo e fazia com que eu me sentisse em bruto egoísta. Ela nunca amou ninguém senão a mim. Nas estações apropriadas tinham-lhe sido arranjados casamentos com noivos de incomparável beleza e da mais aristocrática linhagem, mas Erda invariavelmente lhes recebia as propostas com tão violenta hostilidade que desencorajava até o mais ardoroso pretendente. Talvez pensem que os seus gostos eram vulgares e que não teria ficado indiferente às persuasões de um admirador plebeu. Seria fazer-lhe injustiça. Mastins, schnauzers, alsacianos, cães-d’água, terriers, a todos repeliu e, como a grande filha de Henrique VIII, a Rainha Virgem, optou por uma vida de celibato.
William Somerset Maugham, Assunto pessoal

quinta-feira, dezembro 28

Ainda aproveitando os presentes

listentothestories:
“ “Just a few more pages” by Lucy Fleming
”
Lucy Fleming

Do diário do coroa

Acabou o ano, o tempo passa cada vez mais depressa. Hoje vai aparecer ainda mais gente, lá no boteco. Já viraram tradição da casa os cumprimentos de fim de ano, bons desejos, muita paz, muita saúde, essas frescuras automáticas que todo mundo diz da boca para fora e em que ninguém presta atenção. Eu retribuo tudo o que me dizem, mas cada dia me exaspera mais a parte do “você está muito bem”. Só quem ouve essa conversa do “você está muito bem” é velho, ninguém diz isto a um jovem. É um saco, até porque muitos falam estas coisas somente para receber a retribuição e a gente tem de cumprir o ritual. Ôi, tudo bem, mas, cara, o tempo não passa para você, você está muito bem, em grande forma! Não, você é que está ótimo – e fica essa nênia ridícula de lá para cá, um bando de despencados caquéticos querendo engabelar o calendário, para mim é triste.

E também procuram empregar palavras mágicas, como se alguma palavra melhorasse a condição do velho ou de alguma maneira a homenageasse. Essas palavras e expressões são ofensivas, porque dão a entender que a velhice é uma condição tão vergonhosa que deve esconder-se por trás de eufemismos detestáveis. Idoso é a mãe, ancião é a mãe, vovozinho é a mãe, melhor idade, terceira idade, feliz idade, tudo isso é a mãe, não se discute. O certo é “velho”, no máximo “coroa”. Os que são contrários ao uso da palavra “velho” alegam que ela soa preconceituosa ou discriminatória. Mas é claro que soa, velhice é defeito. Ninguém diz em voz alta que é defeito, mas todo mundo acha que é. É semelhante ao que ocorre com “pobreza”. Pobreza também é defeito. Do contrário não se diria “pobre, porém honesto”. Por que o “porém”, por que a adversativa? Se ser pobre não fosse defeito, dir-se-ia “pobre e honesto”. Mas, claro, o que a frase afirma é que, apesar de pobre, o sujeito é honesto. “Velho” é a mesma coisa, gosta muito de ser seguido por uma adversativa, como, por exemplo, em “ele é velho, mas entende tudo o que a gente fala”.

Bem, o fato é que hoje deve aparecer no boteco um grande número de velhotes, de todos os estilos. Tem seu lado bom. Vamos reconhecer que a juventude impacienta um pouco os mais velhos e, como já se observou, conversar com jovem cansa muito, porque se tem que falar demais. Vão chegando os velhotes, todos invariavelmente cumprindo o ritual do “você está bem, você está muito bem”. Em seguida, a troca de novidades. Um tomou um porre de gim em agosto que o deixou torto até hoje, de maneira que não tem saído. Outro está usando fraldão, mas sai numa boa. Outros se foram definitivamente, ou estão com a partida mais ou menos marcada. Dois ficaram viúvos, três viajaram a Buenos Aires e seis deixaram de beber destilados. No mais, alguns relatórios de praxe, o animado cotejo de resultados de exames e remédios, papos acalorados sobre colesterol, triglicerídios, PSA, glicose, antidepressivos, artrite, implantes dentários, pontes de safena, colonoscopia, esteatose hepática, função cognitiva, câncer de pele, ultrassonografia abdominal, cataratas, perda óssea, estatinas, próstata e o renomado exame da dedada. E, finalmente, todos professarão horror à ideia de ver os fogos do réveillon.

Feliz Navidad lectora / Merry Christmas reader
(ilustración de Francesc Rovira)
Francesc Rovira
Quando eu era jovem, achava bonito ter nascido num primeiro de janeiro, começando a vida junto com o ano e fazendo aniversário num dia de festas e foguetes. Quem me viu, quem me vê, hoje é exatamente o contrário. E quanto mais velho fico, a sensação piora. Não gosto de confessar isto nem a meu diário, mas a verdade é que, todo dia 31 de dezembro, quando os fogos começam a estourar, eu acho que chegou minha hora, dali não passo. Já consultei até dois psiquiatras por causa dessa maluquice, mas o medo de estuporar no fim do ano não passou, só que agora eu tomo umas bolas que eles me receitaram e fico calmo. Cheguei a pensar em me encher dessas bolas e romper o ano dormindo, mas dormir achando que não vai acordar também não é uma boa, não tem jeito para minha situação.

Quem mais fez aniversário este ano? Às vezes parece que eu sou o único no boteco que fica mais velho. Bem, as mulheres mentem ou escondem. Nessa questão de idade, mulher não vale, elas diminuem a idade até para o IBGE. Mas os homens não ficam muito atrás. O Silveirinha nega a idade sem a menor dúvida, já o peguei em contradição mais de uma vez, ele não decorou direito o ano em que nasceu de mentirinha. O Afonso, o Geraldo e, com quase toda a certeza, o Mariano diminuem a idade. Para não falar no Macedinho, que não revela a idade, mas que todo mundo sabe que foi proeiro da arca de Noé. Um dia destes eu me aporrinho e corto uns dois anos também. Tenho mais cabelo que o Afonso, o Geraldo e o Silveirinha e a menor barriga da mesa.

Se fizer sol, vamos viver um começo de tarde animado, com as mulheres passando para a praia e a gente apreciando, na medida do possível. De modo geral, as damas despertam nostalgia e às vezes memórias talvez um tantinho fantasiosas. E há os rabugentos despeitados, como o Linhares e seu compadre Arnaldinho, que desdenham a mulher atual e proclamam a superioridade da mulher do tempo deles. Para eles, as mulheres daquele tempo eram melhores e não se barateavam, se exibindo e transando a torto e a direito, como as de hoje em dia. E os homens, claro, também eram melhores, não eram como esses meninões atuais, que vivem tomando anabolizantes e surfando, deixando o mulherio completamente desatendido. Eu fico assim olhando para o Linhares e o Arnaldinho falando besteira e sempre recordo o grande filósofo que disse que o verdadeiro mal da nova geração é que nós não pertencemos mais a ela. Bom domingo, querido Diário. Mais um, quantos mais ainda?

João Ubaldo Ribeiro

quarta-feira, dezembro 27

Leitor vai às nuvens

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O homem na vitrine

Sentado à grande janela deste café, na esquina da Marechal com a João Negrão, bebo um expresso. Sou um homem na vitrine, e me sinto estupidamente feliz e seguro. Lá fora esfriou e cai uma garoa; aqui dentro estou seco e aquecido, escoltado por meu guarda-chuva. A essas dádivas quase mínimas, eu sei, uma sombrinha e uma bebida, devo minha felicidade temporária. Mas também à impressão de me sentir um pouco como aquele narrador de Edgar Allan Poe, que de repente descobre, em si mesmo, um calmo e inquisitivo interesse por tudo.

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Pela calçada, por exemplo, passeia este sujeito pequenino que, apesar do tamanho, se destaca na multidão apressada. Ele me interessa. Primeiro, por andar devagar, zombando da garoa. Depois, por ostentar orelhas imensas, incompatíveis com sua miudeza. Ao passar por mim, se detém e me encara. Ou melhor, o homenzinho não me vê, apenas confere o próprio reflexo na vidraça do café. Penteia com as mãos a cabeleira molhada, não a fim de embelezar-se, mas com o intuito, talvez, de ajustar sua silhueta a um ideal qualquer de ordem e discrição. Sobe o zíper da japona até encostá-lo no gogó, e apruma-se. Com o novo arranjo dos cabelos, porém, suas orelhas se projetam para longe de seu crânio, e se desdobram, finas asas de cartilagem.

O que lhe segreda a lata de lixo? Nem imagino

Súbito, o homenzinho se vira para trás, como se alguém o tivesse chamado. Vai até uma lixeira, perto do meio-fio, e examina o seu interior. Aproxima o rosto da boca da lata. Intrigado, oferece a ela um ouvido e então se transfigura, parecendo escutar, vindo do íntimo do lixo, uma revelação pessoal. Nada particularmente trágico, ou que lhe cause uma reação de susto ou repugnância. Pelo contrário. Se é que ouve mesmo uma mensagem, ela só pode ter um fundo amorável, pois sua expressão até se suaviza, e um sorriso intercede a seu favor, tornando-a mais interessante.

Mas o que lhe segreda a lata de lixo? Nem imagino. Só sei que o vejo balançar assertivamente a cabeça alada, em luminosa concordância. Fecha os olhos e, ao fazê-lo, me lembra um menino a ouvir o oceano numa concha desabitada, intuindo a indiferença do mundo a partir daquela minúscula morte, ou seja, na irrevogável ausência do molusco que ali morava.

A chuva engrossa e o desperta do transe. Encabulado, ele se afasta da lata, agora com pressa. Pago a conta e saio à rua. Nem sinal do homenzinho. Não sei aonde foi, mas nem se soubesse o seguiria por aí, não sou um personagem de Poe, romântico, ou gótico, ou atormentado. Bastará à minha curiosidade sondar o oco daquela lixeira e, quem sabe, resgatar de lá a pérola de uma crônica, uma Vênus em gestação (ou decomposição), um canto de sereia transmitido via satélite, a quem interessar possa.

Me ponho à disposição do lixo, e me inclino sobre ele, é o trabalho do cronista. Mas não farejo nada. Nada ouço, nada vejo, além da escuridão estéril que caracteriza as lixeiras vazias, e que por fim me faz sorrir da constatação algo atrasada de estar, também eu, aqui fora, me molhando na chuva fria.

Só então me dou conta de que alguém me vigia. É o homenzinho, que me observa da mesa do café, de trás da vitrine, diante de uma xícara vaporosa, enquanto ouve, interessado, as sombrias confidências do meu guarda-chuva.

terça-feira, dezembro 26

Levando o livro a passeio

Sarah Wilkins.

Valor das leituras

chiakiida:
“森の図書館 2014/5/30
”
Fiz 80 anos de idade este ano, e o tempo se tornou algo extremamente valioso. Não posso perdê-lo com leituras insignificantes
Marina Colasanti 

Perfeita natureza desfeita

yesterdaysprint:
“Higher Education, Webster Murray, 1926
”
Webster Murray
Uma borboleta é melhor do que inúmeras palavras. Tanto é a afeição que tenho por elas que qualquer uma recebe-me com delicadeza. Considero que essa surpresa do ar é pura curtição da natureza que se reinventa com o brilho da estação. Quando acontece o seu encontro com a flor certamente esta é a vida do ar, a de beijar e amar. Tremor de asas sedosas, perfume em carícia de lenço, eis que aqui esplende com o seu minúsculo lirismo um lindo amor.

A borboleta brinca com os raios de sol na roseira, como disse o poeta Firmino Rocha, mal a manhã desperta. Fundamental é o amanhecer, que a esta hora os ponteiros do relógio do tempo não marcam o passado, o presente e o futuro, pois o que importa é extrair o néctar do amor em que somos apenas os convidados.

Em bando, as borboletas enfeitavam os verdes da grama no barranco, que dava para o rio. Voavam acima das águas, forjavam o balé de séculos na manhã luminosa, ofertavam o espetáculo que impregnava os meus olhos de encanto e beleza. Naturalmente uma canção suave as conduzia, uma fábula ali havia na dança que contava a história da inocência tecida com a seda que adornava o dia. O traje que nesse instante eu usava era o da vida com pureza e alegria.

Os passarinhos saltitavam nos ramos da primavera. Costumavam, bicar as manhãs ardentes do verão. A melhor receita para afastar a tristeza, se é que existia, estava no canto do sabiá. De tanto ouvir esse músico divino, de repente virava um passarinho. Lá fora, gotas da manhã repercutiam no orvalho com o meu canto sedento de afeto. Assíduo, daqui a instante, lá estava junto à mangueira onde os raios de sol fabricavam aranhas, que desciam e subiam pelo tronco com suas patas de ouro.

O verde de todas as chuvas escorria em chão de infância, amado nas flores ideais. O verde de todos os ventos brincava na várzea intensa de eterna paz. O verde no voo dos pássaros convidava para que fôssemos receber o vento com a sua aragem feita de rações iguais. O verde de todos os sóis ofertavam doces geografias, que se tornavam possíveis graças à sua armadura de colheitas matinais. Tinha a sensação de que eu saía em algazarra dos quintais frutíferos, espalhados na pequena cidade, e ia pousar nas nuvens de onde, carregado de verde, molhava o mundo fero e solitário pelos quatro cantos cardeais.

Deparava-me com uma garça em cima da pedra, fazendo uma pose pernalta para a foto de noiva. Alçava voo no azul , eternas de amor as asas, deslizava com brancura e graça. Para norte ou sul voava, voava, mas sempre voltava. Era aquela, entre todas as alvuras da manhã translúcida, a minha garça preferida, a mais elogiada.

Entrava ano, saía ano, as estações estáveis temperavam o tempo generoso, que me levava pela campina com suas mãos de música.

Viver não era preciso, conviver com a natureza, sim, sabia disso quando afoito percorria as ruas do mato. Passados tantos anos, lembro algumas aventuras de antigamente, no chão em que os frutos de ouro caíam aos montes e no lugar deles os verdes brotavam. O prazer estava lá. E porque era cantante recuso-me agora na travessia da última etapa da vida não ter as flores de ontem, quem tanto amor viveu não concebe esses passos tristes, essa mudança na paisagem onde tomba a aurora. O rio morre de sede, a terra debaixo da nuvem que tosse. Esse vento que sopra ameaças com o seu hálito cortante, zombador, dizendo que como apenas uma arma do crime, verso do bicho único, insano, o tudo pode ser o nada.

Sofredor de um mal, que despreza a natureza com fragrâncias, a vida nomeia um animal soberbo como o orgulho incansável da sanha na fauna e na flora. Sorridente de novo com a arma engatilhada, quanto mais a vítima ele soubesse onde mora.

Cyro de Mattos

sexta-feira, dezembro 22

Feliz Natal...


...Não faltem livros para acompanhar as comemorações
(Voltamos logo que abrirmos os presentes)

Natal com Machado

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Comecei a escrever crônicas na passagem do século XX para o XXI, convidado pelo amigo e escritor Marco Túlio Costa, que, naquela época, ajudava a reerguer um antigo jornal de Passos. (Portanto, se há um culpado, é ele.) Apesar desses dezessete anos, este é meu primeiro texto que sai justamente no dia do Natal. É verdade que escrevi uma crônica natalina, e nela contei de uma ceia, na casa da tia Yole, quando vi as renas e o Papai Noel cruzarem os céus. Essa visão, ao contrário do que se pudesse esperar, me fez descrer de vez da figura do velhinho de barba branca. Vi para descrer, o que São Tomé diria disso?

Nada disso importa mais, hoje escrevo para ser lido na mais celebrada festa cristã. Quero fugir das platitudes, do senso comum, o que não é, adianto, fácil. Eventos repetitivos nos levam a buscar repetidas formas de lidar com ele. Feliz Natal! Que Cristo nasça e renasça em seus corações. Que o bom velhinho não se esqueça de você. O meu amigo oculto é vesgo, mas enxerga longe. Tudo isso embalado pela Simone, que, ao cantar a versão traduzida de “Happy Xmas (War is over)” do John Lennon, viu-a transformada em canção para embalar o comércio, destituída da mensagem pacifista.

Não pretendo seguir o caminho oposto, aquele no qual muita gente procura macular o espírito da festa, trazendo à tona tudo de desumano que brota no meio de nós. 2016 é um ano propício a isso, haja vista o número de pessoas que têm fugido de seus lugares de nascimento para tentar, sem estrutura alguma, a vida em outro país — são sírios, são moçambicanos, a lista é grande. Sem contar nossas tragédias caseiras, muitas evitáveis, como essa que acomete o jovem negro, vítima preferida da guerra contra o tráfico.

Não quis escrever platitudes, e eis que estão escritas. Não quis escrever sequer duas linhas que borrassem a festa, e eis que estão escritas. Preciso buscar uma compensação a meu deslize e a minha incapacidade de trazer algo novo para sua leitura. Já sei, um poema, um pequeno poema, e pronto. Escolho este de Machado de Assis por identificação, pois me parece que ele também penou para escrever qualquer coisa sobre o Natal.

Aonde chegamos? A Machado. Ótima companhia.

(Ah, antes que eu me esqueça, feliz 2017. (Se for possível.))

 Alexandre Brandão

Soneto de Natal

Um homem, — era aquela noite amiga,
noite cristã, berço no Nazareno, —
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,
quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto… A folha branca
pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?
Machado de Assis

Natal de música

Livros, livros, livros

A velha estante que eu tinha na sala foi embora, substituída por uma outra, mais simples, mas que abriga o dobro de livros da antecessora. O processo da troca — tira livro, tira estante, limpa livro, põe estante, arruma livro — me fez pensar muito na nossa relação com os livros. Pois ainda que ler em papel continue sendo uma experiência muito mais completa do que ler em formato digital, e presentear e receber livros continue sendo uma felicidade, guardá-los em casa já não é mais tão necessário quanto era antes dos tempos da nuvem.

Guardamos livros por vários motivos: ou porque têm dedicatórias, ou porque gostamos particularmente deles, ou porque nos lembram momentos específicos das nossas vidas. Alguns, porém, guardamos apenas para garantir o acesso ao seu conteúdo caso tenhamos necessidade disso no futuro; mas, podendo encontrá-los tão rapidamente on-line, fica cada vez mais fácil passá-los adiante. É por isso que iniciativas como o book crossing ou a liberação de livros, em que eles são abandonados ao acaso para que outros leitores os encontrem, se tornaram tão populares.
© Nathalie Jomard
Nathalie Jomard

Nossa relação com os livros está mudando muito rápido, sob todos os aspectos. Quando os primeiros CD-ROMs (lembram deles?) com enciclopédias foram lançados, não botei muita fé na sua universalização. Entendi imediatamente o seu potencial e o que representavam em termos de difusão cultural, mas continuei apegada à minha Britannica e aos dicionários de papel, que me permitiam encontrar, ao acaso, muitas palavras e verbetes interessantes enquanto buscava por outras coisas: esbarrar em “decalcomania”, por exemplo, na busca por “Decamerão”, era uma alegria que o mundo digital não nos proporciona mais. Eu achava, então, que jamais abriria mão do prazer de folhear a minha rica enciclopédia — mas entre ir até a estante, pegar um volume e procurar o verbete que me interessa, ou digitar uma palavra na barra de comando, acabou vencendo a alternativa mais simples.

Livros de referência e o formato digital foram sem dúvida feitos uns para o outro, mas o mesmo não se pode dizer de todos os livros, indistintamente. Quando os primeiros leitores de e-books chegaram ao mercado, muitas matérias foram escritas decretando o fim dos livros em papel. A substituição da velha tecnologia pela nova seria apenas uma questão de tempo, pensava-se então. Mas o tempo, ele mesmo, tem provado que nada é tão simples: no ano passado, as vendas de livros impressos cresceram mais do que as vendas de e-books em mercados como Estados Unidos e Inglaterra, impulsionadas, quem diria, pela preferência dos jovens adultos pelo papel.

Na verdade, nota-se menos uma guerra entre os dois formatos do que um convívio bastante pacífico. Quem gosta de ler compra impressos e e-books indistintamente, dependendo das circunstâncias. Muitas vezes, o mesmo título acaba sendo comprado duas vezes pelo mesmo leitor, em papel para ficar em casa, em formato eletrônico para poder ser levado para cá e para lá. A parte mais recente da minha biblioteca, por exemplo, está tanto na estante quanto na bolsa. Continuo gostando mais dos meus livrinhos em papel, mas também adoro o meu Kindle, cada vez mais bem recheado.

Cora Rónai

quinta-feira, dezembro 21

No jardim de casa

Entre Lápis e Pincéis: Mónica Carretero
Monica Carretero

Mais um Natal

Aviso num restaurante de Brighton, que o dono fez imprimir no cardápio, à revelia dos garçons:
"Somos seus amigos e lhe desejamos um Feliz Natal. Por favor, não nos ofenda, dando-nos gorjetas.”
Junto à porta de saída, entretanto, os garçons fizeram dependurar uma caixinha sob o letreiro: “Ofensas”.

Papá Noel ha publicado su autobiografía: Seguro que será un superventas en esta Navidad. (ilustración de Lionel Le Néouanic)
Lionel Le Néouanic
E no dia de Natal, como sempre, todos os bares de Londres permanecem fechados. Mas consegui realizar o milagre de encontrar em Chelsea um bar aberto, lá para as dez horas da noite. Meio desconfiado, fui entrando — logo um dos fregueses se adiantou, copo de cerveja na mão:

— Perdão, cavalheiro, mas o senhor já foi à igreja hoje?

E se justificou estendendo o braço ao redor, para apontar os demais fregueses, que bebiam cerveja em silêncio.

— Porque aqui dentro, nós todos já fomos.

E sem esperar resposta, passou-me o seu copo de cerveja, pedindo ao barman outro para si.

Festejou-se o Natal, já se festeja o Ano Novo. Há, porém, muita gente na triste perspectiva de passar ambas as festas em completa solidão. Como é o caso de Ethel Denham, ma velhinha com mais de oitenta anos de idade.

Dona Ethel não tem filhos nem marido: nunca chegou a se casar. Mora sozinha numa pequena casa de Exeter, fruto de sua aposentadoria. Para que não lhe aconteça alguma coisa sem ter a quem apelar, foi instalada à porta de sua casinha uma luz vermelha, que ela pode acender para pedir socorro, em caso de necessidade.

Na noite de Natal esta necessidade veio, mais imperiosa do que nunca. A boa velhinha não agüentava a idéia de estar sozinha e passar o Natal sem ninguém. Então acendeu luz de socorro e aguardou os acontecimentos.

Em pouco chegava um guarda de serviço, para ver o que tinha acontecido. E viu que não tinha acontecido nada.

— Fique um pouquinho — pediu ela. — Vamos conversar um pouco.

O guarda teve pena e resolveu ficar. Para não estar sem fazer nada, enquanto conversava fiado com a velhinha, fez um chá, aproveitou e lavou a louça, limpou a cozinha, deu ma arrumação na casa.

Para quê! Há gestos de solidariedade e compreensão que exigem outros, pois acostumam mal. Ou acostumam bem, ainda que na simples necessidade de participar da humana convivência. A dona da casa, encantada, na noite seguinte, depois de fazer o jantar, ficou esperando o seu Papai Noel tornar a aparecer. Como ele nunca mais viesse, não teve dúvida: acendeu a luz do pedido de socorro. Em pouco surgia outro guarda, para saber o que havia.

— Fique um pouquinho — pediu ela: — O senhor não aceita uma xícara de chá?

Mas este estava de serviço mesmo, não era mais noite de Natal nem nada. Então confortou a velhinha como pôde e caiu fora.

Ela, desde então, está esperando o primeiro guarda voltar — aquele sim, tão bonzinho que ele é. Não se conformando mais, depois de três noites de espera, vestiu um capote­, enrolou-se num chale e saiu para o frio da rua até a guarnição local, a fim de saber onde andava o seu amigo. Mas não lhe guardara o nome, de modo que o comandante da guarnição, apesar de sua boa vontade, não conseguiu localizá-lo. Agora, a velhinha apela através do jornal, pedindo ao próprio que apareça uma noite dessas, para um dedinho de prosa, para uma xícara de chá.

Outros, cuja necessidade material é mais imperiosa ainda que o convívio, tiveram quem apelasse em nome deles durante o Natal. O vigário da minha paróquia, em West Hampstead, resolveu perder a cerimônia, durante a prédica:

— Vou ser claro e quem tiver ouvidos para ouvir, ouça: estamos nas vésperas do Natal, é preciso ser generoso, proporcionarmos aos pobres um fim de ano decente. Eles também têm direito. Quero hoje uma coleta mais abundante que nos outros domingos. Falei claro? Pois vou lançar mão de uma parábola, para não perder o hábito, e porque fica mais bonito. Já usei essa parábola em outros Natais, e com grande sucesso. Lá vai ela, prestem atenção.

E pôs-se a contar a história daquele inglês que estava passeando pelo campo, como só os ingleses costumam fazer, quando de repente caiu uma chuvarada. Ele, naquele descampado, não tinha onde se esconder. Avistou ao longe uma árvore solitária, correu para lá — mas era uma árvore desgalhada e desfolhada, quase que só tinha tronco. No tronco havia um oco — o homem não teve dúvida: meteu-se no oco da árvore, para se esconder da chuva.

Vai daí, no que a chuva amainou, o homem quis sair do oco da árvore, não houve jeito: a água tinha feito inchar a madeira e a passagem, já estreita, estreitara-se ainda mais. Ali estava ele, prisioneiro da árvore, sozinho no meio do campo, jamais sairia dali, certa­mente morreria entalado. Então começou a meditar na estupidez que fora sua vida, sempre preocupado com o próprio bem-estar, sem jamais pensar em seus semelhantes. Nunca lhe ocorrera dar uma esmola para os pobres no Natal, por exemplo. Se frequentasse a igreja da sua paróquia (e aqui o vigário fazia um parêntese: “que certamente podia ser esta aqui mesmo, ele podia ser um dos senhores que estão me ouvindo”), ele seria sensível a este apelo à sua generosidade. Mas não: gastava dinheiro à toa, com bobagem, nunca abrira mão de um mínimo que fosse para atender à necessidade de alguém. E foi-se sentindo cada vez mais ínfimo, diminuindo diante de si mesmo, com a consciência da sua própria iniqüidade. Deu-se então o milagre: tanto diminuiu, ficou tão pequenino, que conseguiu sair do oco da árvore.

E o vigário arremata:

— Vamos ter uma estação bem chuvosa este fim de ano! Cuidado com o oco da árvore em que se meterem! Lembrem-se da própria pequenez! Deem esmolas aos meus pobres!

Já o dono de uma área de estacionamento de automóveis onde costumo parar o meu carro, em pleno centro de Londres, deixa-se impregnar à sua maneira do espírito de generosidade reinante no Natal. Tanto assim, que dei com o seguinte aviso ali afixado:
“Feliz Natal! Hoje o estacionamento aqui é gratuito.
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Em tempo: a paz na terra aos homens de boa vontade termina impreterivelmente à meia-noite.”
Fernando Sabino 

quarta-feira, dezembro 20

Leitura em clima natalino

Leyendo y preparando la navidad (ilustración de Katya Maleev )
Katya Maleev 

Reaberta no Sinai uma das bibliotecas mais antigas do mundo

O ministro de Antiguidades do Egito, Khaled al Anani, reabriu no último sábado a biblioteca histórica do Mosteiro Ortodoxo de Santa Catarina, no sul da península do Sinai. Ela havia permanecido fechada durante três anos para trabalhos de reforma, informou a agência de notícias estatal Mena.

A reabertura aconteceu após o término das obras de restauração da cúpula bizantina do mosteiro, que cobre uma superfície de 46 metros quadrados. Ali se encontra uma das primeiras representações icônicas do cristianismo.


Fundado no século 6°, o Mosteiro Ortodoxo de Santa Catarina é um dos mais antigos do mundo, tendo sido declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco.

O diretor de Estudos e Pesquisas Arqueológicas no Sinai, Abdelrahman Rihan, ressaltou que a biblioteca, que detém cerca de 3 mil manuscritos, é considerada a segunda mais importante do mundo, depois do Vaticano.

Alguns desses manuscritos estão entre os mais antigos do cristianismo, como partes de uma Bíblia do século 4°.

"A inauguração é uma mensagem de segurança e paz para todo o mundo", disse na ocasião o ministro das Antiguidades, Khaled al Anani.

O Mosteiro de Santa Catarina é um dos destinos turísticos mais importantes do Egito. O país está trabalhando para fortalecer a indústria do turismo, que sofreu com os levantes de 2011 e vários ataques terroristas.

Em abril, houve um ataque mortal perto do mosteiro, reivindicado pelo grupo terrorista Estado Islâmico.

Deutsche Welle

Leitoras na janela


Pascal Campion Esta imagen trajo a mi memoria "Un árbol crece en Brooklyn", de Betty Smith

Ольга Самарина. Девушка с котами. (Olga Samarina)

Clássicos

Escassas disciplinas haverá de maior interesse que a etimologia: isto se deve às imprevisíveis transformações do sentido primitivo das palavras, ao longo do tempo. Dadas essas transformações, que podem atingir as raias do paradoxal, de nada ou de pouquíssimo nos servirá para o esclarecimento de um conceito a origem de uma palavra. Saber que cálculo, em latim, quer dizer "pedrinha" e que os pitagóricos as usaram antes da invenção dos números, não nos permitem dominar os mistérios da álgebra; saber que hipócrita era actor, e pessoa, máscara, não é nenhum instrumento valioso para o estudo da ética. Analogamente, para fixar o que hoje em dia entendemos por clássico, é inútil saber que esse adjectivo descenda do latim classis, frota, que a seguir ganharia o sentido de ordem. (De passagem, recordemos a formação análoga de ship-shape.)

O que é, agora, um livro clássico? Tenho à mão as definições de Eliot, de Arnold e de Sainte-Beuve, sem dúvida razoáveis e luminosas, e ser-me-ia muito grato estar de acordo com esses ilustres autores, mas não vou consultá-los. Já completei sessenta e tantos anos; na minha idade, as coincidências ou as novidades importam menos do que aquilo que julgamos verdadeiro. Limitar-me-ei , portanto, a declarar o que sobre esse ponto tenho pensado.


O meu primeiro estímulo foi uma História da Literatura Chinesa (1901) de Herbert Allen Giles. No seu capítulo segundo li que um dos cinco textos canônicos que Confúcio promulgou é o Livro das Transformações ou I Ching, feito de 64 hexagramas, que esgotam as possíveis combinações de duas linhas inteiras. Um dos esquemas, por exemplo, consta de duas linhas inteiras, de uma partida, e de três inteiras, verticalmente dispostas . Um imperador pré-histórico tê-los-ia descoberto na casca de uma das tartarugas sagradas. Leibniz julgou ver nos hexagramas um sistema binário de numeração; outros, uma filosofia enigmática; outros, como Wilhelm, um instrumento para a adivinhação do futuro, visto que as 64 figuras correspondem às 64 fases de qualquer empreendimento ou processo; outros ainda, um vocabulário de certa tribo; outros, um calendário. Lembro-me de que Xul Solar costumava reconstruir esse texto com palitos ou fósforos. Para os estrangeiros, o Livro das Transformações corre o risco de parecer uma mera chinoiserie; mas gerações milenares de homens cultíssimos têm-no lido e relido com devoção e continuarão a lê-lo. Confúcio declarou aos seus discípulos que se o destino lhe oferecesse mais cem anos de vida, consagraria metade deles ao seu estudo e ao dos comentários, ou alas.

Deliberadamente escolhi um exemplo extremo, uma leitura que reclama um acto de fé. Chego, agora, à minha tese. Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se nas suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim. Previsivelmente, essas decisões variam. Para os Alemães e os Austríacos, o Fausto é uma obra genial; para outros, uma das mais famosas formas do tédio, como o segundo Paraíso de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o Livro de Job, A Divina Comédia”, Macbeth (e, para mim, algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada sabemos do futuro, esalvo que diferirá do presente.Uma preferência pode muito bem ser uma superstição.


Não tenho vocação de iconoclasta. Pelos anos trinta, sob a influência de Macedónio Fernández, acreditava que a beleza é privilégio de uns poucos autores; agora sei que é comum e que nos espreita nas casuais páginas do medíocre ou num diálogo de rua. Assim, o meu desconhecimento das letras malaias ou húngaras é total, mas tenho a certeza de que se o tempo me oferecesse a oportunidade para o seu estudo, iria encontrar nelas todos os alimentos que requer o espírito . Além das barreiras linguísticas, intervêm as barreiras políticas ou geográficas. Burns é um clássico na Escócia; no sul do Tweed, interessa menos que Dunbar ou que Stevenson. A glória de um poeta depende, em suma, da excitação ou da apatia das gerações de homens anônimos que a põem à prova, na solidão das bibliotecas.

As emoções que a literatura suscita são talvez eternas, mas os meios têm constantemente de variar, nem que seja de um modo levíssimo, para não perderem a sua virtude. Vão-se gastando à medida que os reconhece o leitor Daí o perigo de se afirmar que existem obras clássicas e que o serão para sempre.

Cada qual descrê da sua arte e dos seus artifícios. Eu, que me resignei a pôr em dúvida a indefinida perduração de Voltaire ou Shakespeare, acredito (nesta tarde, num dos últimos dias de 1965) na de Schopenhauer e na de Berkeley.

Clássico não é um livro (repito-o) que necessariamente possua tais ou tais méritos; é um livro que as gerações dos homens, instadas por diversas razões, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade.

Jorge Luis Borges

terça-feira, dezembro 19

A cidade dos leitores

Vivo en una ciudad llena de libros, de vecinos lectores. Una ciudad de novela, con calles de poesía y plazas de teatro. (ilustración de Adolfo Serra)
Adolfo Serra

A descoberta do tesouro

Jez Tuya Illustration
Jez Tuya
Quando eu tinha 8 ou 9 anos, peguei sarampo e fiquei de cama. Quer dizer, como bom cearense, eu não fiquei de cama, fiquei de rede. Minha irmã mais velha levou para mim um livro que pegou na biblioteca da escola, para que eu lesse nos dias em que eu estava deitado na rede sem poder fazer nada. E esse livro mudou completamente a minha percepção do mundo. Era uma obra do Monteiro Lobato chamada A chave do tamanho, que ele escreveu durante a Segunda Guerra Mundial. Aí fiquei bom do sarampo e, para espanto dos meus colegas de turma, nos recreios, em vez de jogar bola, eu ia para a biblioteca. E eles ficavam intrigados: “O que você fez para ir para a biblioteca?”. Eu dizia: “Não fiz nada. Lá tem um tesouro”. E que tesouro era esse? Era a obra infantil do Lobato.
Lira Neto

O dia começou bem

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Assim começa o livro...

Naquela noite sonhei que retornava ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Voltava a ter dez anos e acordava no meu antigo quarto sentindo que a lembrança do rosto da minha mãe tinha me abandonado. E eu sabia, do jeito que se sabem as coisas nos sonhos, que a culpa era minha e só minha, porque não merecia recordá-lo e porque não tinha conseguido lhe fazer justiça.

Logo depois meu pai entrava, alertado por meus gritos de angústia. Meu pai, que no sonho ainda era jovem e ainda tinha todas as respostas do mundo, me abraçava para consolar-me. Depois, quando as primeiras luzes já pintavam uma Barcelona de vapor, íamos para a rua. Meu pai, por algum motivo que eu não conseguia entender, só me acompanhou até o portão. Ali soltou minha mão e me deu a entender que aquela era uma viagem que eu devia fazer sozinho.

Comecei a andar, mas lembro que a roupa, os sapatos e até a pele me pesavam muito. Cada passo que eu dava exigia mais esforço que o anterior. Quando cheguei às Ramblas percebi que a cidade estava suspensa em um instante infinito. As pessoas haviam interrompido seus passos e apareciam congeladas como figuras de uma velha fotografia. Um pombo levantando voo esboçava o rascunho impreciso de um bater de asas. Filamentos de pólen flutuavam imóveis no ar como luz em pó. A água da fonte de Canaletas brilhava no vazio e parecia um colar de lágrimas de cristal.

Lentamente, como se tentasse caminhar debaixo d’água, consegui entrar no feitiço daquela Barcelona paralisada no tempo até chegar à entrada do Cemitério dos Livros Esquecidos. Lá chegando, parava, exausto. Não conseguia entender que carga invisível era aquela que eu arrastava comigo e que quase não me deixava avançar. Levantei a aldraba e bati na porta, mas ninguém veio abrir. Bati várias vezes com os punhos no grande portão de madeira. Mas o vigia ignorava a minha súplica. Exânime, afinal caí de joelhos. Só então, ao ver o feitiço que eu tinha arrastado, fui tomado pela terrível certeza de que a cidade e o meu destino ficariam congelados para sempre naquele sortilégio e de que eu nunca mais iria lembrar o rosto da minha mãe.

segunda-feira, dezembro 18

Velha leitora

Light leer, siempre (ilustración Randy Otter)

Soltinhos e talvez crocantes

dead-molchun:
“John Lavery (1856-1941) Lady Reading.
”
John Lavery (1856-1941)
Sou dos que acreditam que uma musa nórdica pode melhorar a obra e a biografia de qualquer poeta.

***

Tínhamos tanto a dizer. Dissemos amor – e tínhamos dito tudo.

***

Personagens antigos davam tratos à bola, ficavam com a pulga atrás da orelha e falavam com seus botões.

***

Que o julgamento alheio, se não me tornar mais belo, não me torne mais feio.

***

De modo geral, o que se pode dizer dos defuntos é que muitos deles teriam melhor aspecto se morressem dez anos mais jovens.

***

Minhas mãos descobriram pacientemente o formato de minha melancolia, sabem que ela é como um bebê e a embalam cada vez mais maternalmente.

***

Quando os frutos desandaram a despencar sobre sua cabeça, o poeta concretista lamentou ter feito sua macieira com areia, tijolos e cimento.

***

O caminho do poeta, por mais longo que seja, é sempre um retorno à simplicidade da infância.

***

Se for dividir o sofá com um gato, você deve reservar-lhe o melhor lugar, aquele que, quando ele sai por uns minutos, é imediatamente ocupado pelo sol.

***

Editor é aquele tipo que estaria disposto a atender o rapazinho metido a Rimbaud, se não fosse hora do cafezinho.

***

Os gênios que conheci e que sonhavam com Estocolmo não passaram do Tucuruvi.

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A simpatia que causam certos mortos dura só até a abertura do seu testamento.

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Rejeitareis a poesia – e a poesia vos deixará. Conquistareis a verdade – e a verdade vos entediará.

***

Triste o espetáculo dos poetas velhos que, metidos a declamar, transformam rosas em perdigotos.

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Tenho, talvez, duas qualidades: sou tolo e perseverante.

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Uma regra elementar de decoração é: a melhor poltrona é a do gato. O resto se ajeita por si só.

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Acho curioso dizerem que alguém se dedica inteiramente à literatura. Existe algum outro modo?

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De vez em quando o poeta deve falar de amor, para não pensarem que ele é sempre fútil na escolha dos temas.

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Aprendemos como são falsos os elogios quando passamos a depender deles.

***

Em 2020, possivelmente antes, ninguém falará de mim. Como em 1937 ou 1854.

Raul Drewnick

Depois do café

tacomablue:
“Woman reading
”

Conversa de cego

Leniro foi meu aluno e é uma pessoa muito interessante.

Leniro Alves é cego. Sei que deveria chamá-lo de deficiente visual, que é a expressão politicamente correta. Mas nem ele mesmo faz questão desse tratamento que os bons modos recomendam dispensar aos portadores de um defeito... está bem, de uma deficiência física. Assim como um medicamento às vezes produz efeito paradoxal, contrário ao pretendido, o uso desses eufemismos pode disfarçar uma piedade preconceituosa. Quando Leniro por acaso ouve a observação "tão bonitinho e cego", ele não deixa passar: "Você quer dizer que, além de cego, eu tinha que ser feio, ter pé grande e morar longe?"

Ele me relata por e-mail uma série de casos e situações, a maioria fazendo parte do show "Ceguinho é a mãe", de seu colega de deficiência, o humorista mineiro Geraldo Magela, que criou um espetáculo, como ele mesmo diz, "diferente, irreverente e conscientizador, testado e aprovado pelo público brasileiro em várias oportunidades".
Resultado de imagem para Blind Singer - William Henry Johnson [1940]
Blind Singer (William Henry Johnson)
"Muitas pessoas acham que, por eu ser cego, todo mundo na minha casa tem que ser também: a mulher, os filhos, o cachorro, o papagaio". Às vezes ocorrem diálogos assim:

- Sua mulher é normal?

- Não, ela tem antena, rodinha e entrada para CD!

- Você é cego total?

- Não, só até as 18h, depois eu dirijo um táxi.

Nós outros, o colunista careca, os gordos, os baixinhos e os muito altos somos sempre pontos de referência. Eu, por exemplo, já cansei de ouvir em salas de espetáculo: "Ainda tem um lugar ali perto do careca". Que ainda é menos ridículo do que "o senhor calvo" ou "com pouco cabelo". Mas segundo o meu leitor cego, a pior referência é a do tipo: "Quero ficar ceguinho se estiver mentindo". Ele comenta: "Fica parecendo que todo cego é mentiroso".

Leniro acha que num certo sentido "ser cego é como ser brasileiro: viver aqui é uma fonte inesgotável para os bem-humorados e/ou humoristas exercerem seu talento". Segundo ele, "como os cegos são vistos em geral como cegos em todos os sentidos e não apenas no físico, isso lhes dá o ensejo de viver situações muito engraçadas".

O mais curioso, além do humor incomplacente e autogozador presente nessas histórias, é a revelação da atitude piegas dos que se aproximam dos deficientes com a melhor das intenções e a pior das práticas estigmatizantes. Sem querer, acabam fazendo a cara de como se estivessem dizendo: "Pobrezinho coitado" ou "coitado do ceguinho". Cheios de pena,às vezes mal disfarçam o sentimento de superioridade que os move involuntariamente.

Uma das maiores dificuldades dos cegos é atravessar uma rua, principalmente numa cidade como o Rio, onde os motoristas, se pudessem, retirariam das pistas tudo o que não se move sobre quatro rodas, ou então passariam por cima, como às vezes passam. Leniro, por intermédio de Geraldo, me orienta:

"A maneira mais correta de atravessar um cego na rua é você deixar que o cego segure o seu braço, pois assim ele sente todos os seus movimentos. Você pode correr, descer escada, subir escada, pular buraco que não tem problema. A maioria das pessoas pega o cego pelo braço, suspende e aperta, mas aperta com tanta força que dá a impressão de que o cego quer fugir. E o cego não quer fugir, ele só quer atravessar a rua".

O cotidiano de um cego é cheio de imprevistos. "Outro dia mesmo, eu estava com uma pressa danada e queria atravessar a rua, mas ninguém me dava o braço. Olhei para um lado, olhei para o outro e não vi ninguém, até porque sou cego. E decidi: ‘o primeiro que me roçar o braço, eu agarro e atravesso’. Dito e feito: o primeiro que me esbarrou o braço eu agarrei nele e nós atravessamos em meio às buzinas. Ao chegar ao outro lado, fui agradecer:

- Muito obrigado.

- Não, eu é que agradeço, eu sou cego.

- Uai, você também!

O que esses cegos nos ensinam, com esse comportamento irreverente e inesperado, politicamente incorreto na aparência, é que o preconceito e a discriminação não se corrigem só pelo uso bem-comportado da linguagem, por mais importante que ela seja como portadora de clichês e estereótipos.

Não adianta evitar palavras e expressões como "denegrir", "judiar", "cego de raiva", sem mudar a cabeça. Assim, como a retórica, o politicamente correto serve apenas para disfarçar o preconceito e tornar o nosso racismo mais cordial.

Zuenir Ventura

domingo, dezembro 17

A verdadeira Torre de Babel

Arriba, arriba, arriba de una gran montaña de libros (ilustración de Lisa Aisato)
 Lisa Aisato

Natal

É noite de Natal, e estou sozinho na casa de um amigo, que foi para a fazenda. Mais tarde talvez saia. Mas vou me deixando ficar sozinho, numa confortável melancolia, na casa quieta e cômoda. Dou alguns telefonemas, abraço à distância alguns amigos. Essas poucas vozes, de homem e de mulher, que respondem alegremente à minha, são quentes, e me fazem bem, "Feliz Natal, muitas felicidades!"; dizemos essas coisas simples com afetuoso calor; dizemos e creio que sentimos; e como sentimos, merecemos. Feliz Natal!

Préparatifs.... - PENTY DE VAL
Desembrulho a garrafa que um amigo teve a lembrança de me mandar ontem; vou lá dentro, abro a geladeira, preparo um uísque, e venho me sentar no jardinzinho, perto das folhagens úmidas. Sinto-me bem, oferecendo-me este copo, na casa silenciosa, nessa noite de rua quieta. Este jardinzinho tem o encanto sábio e agreste da dona da casa que o formou. É um pequeno espaço folhudo e florido de cores, que parece respirar; tem a vida misteriosa das moitas perdidas, um gosto de roça, uma alegria meio caipira de verdes, vermelhos e amarelos.

Penso, sem saudade nem mágoa, no ano que passou. Há nele uma sombra dolorosa; evoco-a neste momento, sozinho, com uma espécie de religiosa emoção. Há também, no fundo da paisagem escura e desarrumada desse ano, uma clara mancha de sol. Bebo silenciosamente a essas imagens da morte e da vida; dentro de mim elas são irmãs. Penso em outras pessoas. Sinto uma grande ternura pelas pessoas; sou um homem sozinho, numa noite quieta, junto de folhagens úmidas, bebendo gravemente em honra de muitas pessoas.

De repente um carro começa a buzinar com força, junto ao meu portão. Talvez seja algum amigo que venha me desejar Feliz Natal ou convidar para ir a algum lugar. Hesito ainda um instante; ninguém pode pensar que eu esteja em casa a esta hora. Mas a buzina é insistente. Levanto-me com certo alvoroço, olho a rua e sorrio: é um caminhão de lixo. Está tão carregado, que nem se pode fechar; tão carregado como se trouxesse todo o lixo do ano que passou, todo o lixo da vida que se vai vivendo. Bonito presente de Natal!

0 motorista buzina ainda algumas vezes, olhando uma janela do sobrado vizinho. Lembro-me de ter visto naquela janela uma jovem mulata de vermelho, sempre a cantarolar e espiar a rua. É certamente a ela quem procura o motorista retardatário; mas a janela permanece fechada e escura. Ele movimenta com violência seu grande carro negro e sujo; parte com ruído, estremecendo a rua.

Volto à minha paz, e ao meu uísque. Mas a frustração do lixeiro e a minha também quebraram o encanto solitário da noite de Natal. Fecho a casa e saio devagar; vou humildemente filar uma fatia de presunto e de alegria na casa de uma família amiga.
Rubem Braga

sábado, dezembro 16

Pescaria

Pescando nuevos lectores (ilustración de Kait Baird)
Kait Baird

O lobo

Libros de lobos, con lobos… y sin Caperucita (ilustración de Sebastien Mourrain)
Sebastien Mourrain
Nunca houvera um inverno tão frio e comprido nas montanhas francesas. Havia semanas que o ar estava límpido, áspero e frio. Durante o dia, os grandes e inclinados mantos de neve, de um branco baço, estendiam-se infinitamente por baixo do céu azul ofuscante; de noite, a Lua passava, pequena e clara, por cima deles, uma Lua terrível a indicar geada com o seu brilho amarelo, cuja luz forte se tomava azul e sombria em cima da neve, assemelhando-se à própria geada. Os homens evitavam todos os caminhos e particularmente as altitudes; indolentes, soltavam injúrias nas cabanas da aldeia cujas janelas, vermelhas à noite, pareciam, ao lado da luz azul da Lua, revestidas de uma opacidade fumarenta e rapidamente se apagavam.Era um tempo difícil para os animais da região. Os mais pequenos morriam de frio, e mesmo os pássaros sucumbiam à geada, os seus cadáveres franzinos eram presa de lobos e açores. Poucas famílias de lobos ali viviam, e a necessidade impeliu-as a formar sociedades mais firmes. De dia saíam individualmente. Aqui e acolá passava um sobre a neve, magro, esfomeado e alerta, silencioso e acanhado, como um fantasma. A sua sombra estreita deslizava a seu lado, sobre a superfície da neve. Farejando, esticava o focinho bicudo na direcção do vento, e, por vezes, soltava um uivo seco e angustiado. Mas à noite saíam todos em conjunto e circundavam as aldeias soltando gritos roucos. Ali, o gado e as aves encontravam-se bem guardados e, atrás das fortes portadas, as espingardas estavam em posição. Só muito raramente lhes calhava uma pequena presa como um cão, e dois da sua alcateia já tinham sido mortos a tiro.

A geada ainda perdurava. Muitas vezes os lobos permaneciam aninhados, silenciosamente, aquecendo-se uns aos outros e perscrutando angustiados o ermo morto; até que um deles, atormentado pelos terríveis sofrimentos da fome, saltava de repente soltando um bramido horripilante. Então, todos os outros viravam o focinho na sua direcção, tremiam e deixavam escapar um grito terrível, ameaçador e clamoroso.

Finalmente, a parte mais pequena da alcateia decidiu emigrar. Cedo, de manhã, deixaram os seus covis, juntaram-se e farejaram excitados e cheios de medo o ar gelado. Abalaram então, num trote rápido e regular. Os que ficaram ainda os perseguiam com olhos dilatados e vidrados, trotaram alguns passos atrás deles e voltaram devagar para as suas covas vazias.

Os emigrantes separaram-se ao meio-dia. Três deles dirigiram-se para o Jura suíço a leste, os outros rumaram ao sul. Os primeiros três eram animais belos e fortes, mas terrivelmente emagrecidos. A sua barriga clara estava chupada e era estreita como uma correia; no peito, as costelas sobressaíam deploravelmente, tinham as bocas secas e os olhos dilatados e desesperados. Os três conseguiram entrar no Jura profundo. No segundo dia, apresaram um carneiro, no terceiro, um cão e um potro e acabaram por ser furiosamente perseguidos, por todo o lado, pelos camponeses. Na região, rica em aldeias e cidades, espalhou-se o terror e o medo perante os insólitos intrusos. Os trenós do correio foram armados, ninguém ia sem espingarda de uma aldeia à outra. Nesta região forasteira, após um saque tão bom, os três animais sentiam-se muito bem. mas ao mesmo tempo com medo; tornaram-se mais atrevidos do que alguma vez o tinham sido em casa em pleno dia, penetraram no estábulo de uma granja. Mugidos de vaca, o estalar de barreiras de madeira a lascar, o patear de cascos e uma respiração quente e sequiosa encheram o espaço apertado e quente. Mas desta vez houve intervenção humana. Dois deles foram abatidos, o pescoço de um foi atravessado por um tiro de espingarda, o outro foi chacinado com um machado. O terceiro escapou e correu, até cair meio morto na neve. Era o mais novo e mais belo dos lobos, um animal orgulhoso de urna força poderosa e formas ágeis. Arfando, ficou deitado durante muito tempo. Frente aos seus olhos giravam círculos vermelhos de sangue.

Por vezes, soltava um gemido silvante e doloroso. Fora atingido nas costas por um golpe de machado. Mas recuperou e conseguiu levantar-se novamente. Só agora se apercebia da grande distância que correra. Não se viam homens nem casas em parte alguma. Mesmo à sua frente ficava uma montanha imponente e cheia de neve. Era o Chasseral. Decidiu torneá-lo. Como a sede o atormentava, comeu bocadinhos da crosta gelada e dura da superfície da neve.

Do outro lado da montanha deparou imediatamente com uma aldeia. O fim do dia estava a aproximar-se. Esperou num denso bosque de abetos. Então colou-se cautelosamente às cercas dos jardins, seguindo o cheiro dos estábulos quentes. Não havia ninguém na rua. Tímido e cobiçoso, pestanejava entre as casas. Soou um tiro. Esticou a cabeça e alongou o passo para correr, quando se ouviu o segundo tiro. Foi atingido. Um dos lados do seu abdómen esbranquiçado estava manchado do sangue, que corria em gotas grossas e viscosas. Mesmo assim conseguiu escapar, em grandes saltos, e alcançar o bosque do outro lado da montanha. Ali esperou um momento, escutando, e ouviu vozes e passos vindos de duas direcções. Cheio de medo, olhou montanha acima. Era íngreme, arborizada e penosa para subir. Mas não teve outra escolha. Com o fôlego arquejante, escalou a parede alcantilada, e, lá em baixo,á volta da montanha, estendia-se uma confusão de injúrias, ordens e luzes de lanternas. Tremendo, o lobo ferido subiu o bosque de abetos meio escurecido, enquanto o sangue castanho corria lentamente do seu flanco.

O frio abrandara. A oeste, o céu estava enevoado e parecia prometer um nevão.

Finalmente, o animal esgotado alcançou o cume. Encontrava-se agora num grande campo de neve ligeiramente inclinado, perto de Mont Crossin, muito acima da aldeia de que escapara. Não sentia fome, mas sim a dor indistinta e persistente da sua ferida. O seu focinho descaído emitiu um latido baixinho e doentio e o seu coração bateu pesada e dolorosamente, sentindo passar sobre ele a mão da morte como um peso indescritível. Um abeto solitário de largos ramos atraiu-o; ali se sentou e fitou melancolicamente a noite cinzenta de neve. Passou meia hora. Caía agora uma luz vermelho-pálida sobre a neve, estranha e suave.

O lobo levantou-se, gemendo, e virou a sua bela cabeça para a luz. Era a Lua, gigante e vermelha de sangue, que nascia a sudeste e subia lentamente pelo horizonte enevoado. Há semanas que não era tão grande e vermelha. Tristemente, o olho do animal desfalecido fixou o disco baço da Lua, e, mais uma vez, um fraco uivo rompeu penosa e silenciosamente na noite. Seguiram-se então luzes e passos. Camponeses com sobretudos fortes, caçadores e rapazes jovens com gorros de peles e grosseiras polainas passavam pesadamente pela neve. Soaram gritos de júbilo. O lobo moribundo fora descoberto, dispararam dois tiros sobre ele e ambos falharam. Então viram que já estava prestes a morrer caíram-lhe em cima com paus e cacetes. Ele ja não sentiu nada.

De membros quebrados, carregaram-no montanha abaixo até St. Immer. Riam-se, gabavam-se, já se deliciavam com a aguardente e o café, cantavam e praguejavam. Ninguém reparou na beleza da floresta coberta de neve, nem no brilho do planalto, nem na Lua vermelha pendurada por cima do Chassera, cuja fraca luz se quebrava nos canos das espingardas, nos cristais de neve e nos olhos mortiços do lobo abatido.

Hermann Hesse

sexta-feira, dezembro 15

Acabando de acordar

Los que leen, leen mucho. Los que no leen, no leen nada (ilustración de Elisa Ansuini)
Elisa Ansuini

O livro tem futuro?

O que vai acontecer com o livro? Ele continuará existindo no papel ou apenas digitalmente? Neste caso, não acabará sendo ultrapassado por mídias mais modernas? Muitos acham que pelo fato de eu ser autor, editor e historiador tenho a obrigação de saber o que o futuro reserva ao livro.

Confesso aos interlocutores, um pouco contrariado, não ter instrumentos adequados para prever o futuro. Tento explicar que o historiador é, por profissão, um camarada modesto: ele tenta explicar o que já aconteceu, e por vezes até elabora uma narrativa coerente. Não tem a pretensão dos economistas que insistem em fazer previsões... e quase invariavelmente erram. Nem dos adivinhos de plantão que a cada final de ano cometem a proeza de profetizar sobre coisas óbvias e genéricas: garantem que ocorrerá a queda de alguma aeronave; que um artista muito famoso morrerá; que guerras continuarão assolando o Mundo Árabe e a fome não abandonará a África subsaariana (minha avó Sara é capaz de fazer “previsões” como essas...).

Já o historiador, no máximo consegue explicar os “comos” do passado, raramente os “porquês”. E esses são os bons profissionais. Pior são aqueles que não têm pudor em alterar os fatos acontecidos para que se encaixem melhor em suas teorias. Historiador que se preza também não se dispõe a produzir ficção fingindo que é História, ou, em um neologismo descarado, uma “reportagem do passado”... Nada disso. O historiador é modesto, mas é sério.

Ele sabe que o futuro é difícil de prever, muito difícil. E o motivo é simples: olhando para trás temos clareza sobre o caminho percorrido, ele nos parece lógico, óbvio até. Olhando para frente nosso cenário é de muitos trajetos, todos aparentemente viáveis. Qual deles será o mais adequado, qual nos levaria a um beco sem saída? Não sabemos.

liquidnight:
“ Werner Bischof - Reading by candlelight - Rovaniemi, Finland, 1948
From Werner Bischof Pictures
”
Werner Bischof
Que historiador poderia ter previsto que em 1985 que teríamos um presidente eleito pelo Congresso e morto antes de tomar posse, pelo menos dois outros depostos antes de completar o mandato, um intelectual, um operário e uma mulher eleitos pelo voto direto? Quem sonharia em ver banqueiros, grandes empresários e políticos importantes atrás das grades, marqueteiros denunciando antigos chefes, governadores desonestos condenados, candidatos a candidatos tremendo de medo? Ninguém. 

Mais ainda: há meio século imaginava-se para o século XXI o tráfico urbano com veículos zanzando nas alturas, aviões supersônicos ligando os continentes, viagens rotineiras para a Lua, um mundo de robôs nos servindo em tudo e para tudo. Nada disso aconteceu. Por outro lado ninguém previu algo que provocou mudanças radicais na vida cotidiana dos habitantes do planeta: a Internet, com celulares, mídias sociais e todo o resto. É pouco?

Assim, o prudente é seguir um conselho que me dava Francisco Iglesias, talentoso e machadiano historiador mineiro, já falecido: “Não se arrisque a fazer previsões para o ano que vem, fale sobre o que vai acontecer daqui um ou dois séculos. Mesmo que erre, nenhum leitor estará aqui para cobrar seus enganos”. Seguirei o sábio ensinamento. Cobrem meus acertos ou erros em 2117. E aí vai minha primeira previsão:

O livro vai continuar existindo.

E a segunda: haverá leitores de livros.

Não bastassem essas duas, arrisco uma terceira: editoras continuarão sendo fundamentais. ?
Contudo...

A era de Gutemberg está acabando. A leitura de livros como hábito universal (estamos, é claro, falando de pessoas plenamente alfabetizadas e com acesso ao livro, comprando ou tomando emprestado de bibliotecas) está se esgotando. Países desenvolvidos tiveram sua fase de cultura oral, que foi, em grande parte, substituída pela cultura escrita. Países como o nosso nem chegaram a ter um período com prevalência da cultura livresca: saltamos diretamente do oral para o virtual... Com isso, a maior parte da população se satisfaz com truísmos repetidos à saciedade, com bobagens pomposas, com pseudoverdades profundas deslocadas de seu contexto circulando pelo ar que nos cerca (tem gente que acha até que eles colaboram na poluição das cidades).

Mas sempre haverá uma elite cultural, originária de diferentes extratos socioeconômicos da população, que lerá, aprenderá coisas com profundidade e será a criadora de softwares que serão utilizados pela manada. Esta continuará postando bobagens dentro de um universo de referências criado pela elite cultural, gente criativa. Os leitores de livros, enfim... 

quinta-feira, dezembro 14

A melhor cabana

Acampada lectora (ilustración de Marie Caudry)
 Marie Caudry

Ler e crescer

bibliolectors:
“What novel are you reading? / Qué novela está leyendo? (ilustración de Zenina)
”
Zenina
O indivíduo que lê, além do conhecimento adquirido, seja pedagógico ou ficcional, será um cidadão capaz de decisões conscientes. Isto é, será capaz de contextualizar a sua vida, as suas escolhas. E, mais que isso: será capaz de ser dono de opinião perante o estado/status das coisas.

E é esta, a meu ver, a colheita mais importante: o ser cidadão construído através de seus conhecimentos.

Quando criança, ao observar a conversa entre adultos ( fui uma criança muito curiosa) ,me lembro de que tinha um forte desejo: o de um dia ter a minha opinião. Não a que meus pais tinham, mas a minha.

Se hoje aqui escrevo é porque o consegui. Não digo que ela é verdade absoluta e nem que não a mudarei, mas com certeza, adquiri conhecimento e vivência para tê-la: minha própria!

1
– um dia minha sobrinha, Laura, me perguntou o porquê de eu preferir livro ao cinema.

Gosto muito de cinema, mas o livro me proporciona o uso de minha imaginação. Os meus cenários, as trilhas sonoras das histórias que leio são parte minha e não a mostrada pelo diretor. Além de desenhar os personagens e de ter os diálogos e a narrativa mais próximos. Além de, às vezes, em segredo, me colocar na trama. Na época, ela tinha assistido ao filme do Harry Potter. Depois da nossa conversa, ela leu todos os livros da saga. Mais uma leitora!

2- em 2010, fiz parte de um grupo de Leitores Itinerantes. Líamos Carlos Drummond de Andrade, nas escolas do ensino fundamental, da cidade.

Tinha acabado de ler E, agora José quando uma aluna me disse que já estava vendo um homem sentado em uma cadeira de rodas, numa esquina, se perguntando: – E, agora?

Outros acontecimentos, neste projeto: – Se eu colocar Itabira, no Google, consigo ver a cidade onde ele nasceu?; – Na biblioteca tem livros dele? Vou fazer a carteirinha, hoje mesmo; – Eu também; – Eu também!; – Nossa! Vocês também são escritores e não estão mortos?

Além de apresentar o nosso Poeta aos alunos, incentivamos a leitura e, acredito, a escrita, pois éramos escritores, estávamos vivos e morávamos na mesma cidade deles (Santo André-SP).

3- há pouco tempo: você só lê e escreve ou lava louça, limpa a casa?

Sim, faço tudo e mais um tanto. E, assim: mais uma escritora diante da normalidade da vida.

Hoje, não faço mais leituras para crianças, mas proporciono, em meus projetos líteroculturais, contações de histórias; oficinas de criação literária e oficinas de leitura crítica, sempre com profissionais de excelência. Divulgo livros e autores no facebook e em palestras. Resultado: os comentários nas postagens e nos e-mails que recebo: -Estou lendo; Estou escrevendo um livro… Fora os originais que me são entregues.

Sim, a leitura transforma, acrescenta e faz crescer moralmente, culturalmente e desperta a criatividade. Também, uma pessoa que lê terá um vocabulário e conhecimento que o fará ser um cidadão mais completo. Nunca só mais um.

Ah! Menti: leio para os meus netos, Arthur e Cesar.

Rosana Banharoli