Leniro Alves é cego. Sei que deveria chamá-lo de deficiente visual, que é a expressão politicamente correta. Mas nem ele mesmo faz questão desse tratamento que os bons modos recomendam dispensar aos portadores de um defeito... está bem, de uma deficiência física. Assim como um medicamento às vezes produz efeito paradoxal, contrário ao pretendido, o uso desses eufemismos pode disfarçar uma piedade preconceituosa. Quando Leniro por acaso ouve a observação "tão bonitinho e cego", ele não deixa passar: "Você quer dizer que, além de cego, eu tinha que ser feio, ter pé grande e morar longe?"
Ele me relata por e-mail uma série de casos e situações, a maioria fazendo parte do show "Ceguinho é a mãe", de seu colega de deficiência, o humorista mineiro Geraldo Magela, que criou um espetáculo, como ele mesmo diz, "diferente, irreverente e conscientizador, testado e aprovado pelo público brasileiro em várias oportunidades".
Blind Singer (William Henry Johnson) |
- Sua mulher é normal?
- Não, ela tem antena, rodinha e entrada para CD!
- Você é cego total?
- Não, só até as 18h, depois eu dirijo um táxi.
Nós outros, o colunista careca, os gordos, os baixinhos e os muito altos somos sempre pontos de referência. Eu, por exemplo, já cansei de ouvir em salas de espetáculo: "Ainda tem um lugar ali perto do careca". Que ainda é menos ridículo do que "o senhor calvo" ou "com pouco cabelo". Mas segundo o meu leitor cego, a pior referência é a do tipo: "Quero ficar ceguinho se estiver mentindo". Ele comenta: "Fica parecendo que todo cego é mentiroso".
Leniro acha que num certo sentido "ser cego é como ser brasileiro: viver aqui é uma fonte inesgotável para os bem-humorados e/ou humoristas exercerem seu talento". Segundo ele, "como os cegos são vistos em geral como cegos em todos os sentidos e não apenas no físico, isso lhes dá o ensejo de viver situações muito engraçadas".
O mais curioso, além do humor incomplacente e autogozador presente nessas histórias, é a revelação da atitude piegas dos que se aproximam dos deficientes com a melhor das intenções e a pior das práticas estigmatizantes. Sem querer, acabam fazendo a cara de como se estivessem dizendo: "Pobrezinho coitado" ou "coitado do ceguinho". Cheios de pena,às vezes mal disfarçam o sentimento de superioridade que os move involuntariamente.
Uma das maiores dificuldades dos cegos é atravessar uma rua, principalmente numa cidade como o Rio, onde os motoristas, se pudessem, retirariam das pistas tudo o que não se move sobre quatro rodas, ou então passariam por cima, como às vezes passam. Leniro, por intermédio de Geraldo, me orienta:
"A maneira mais correta de atravessar um cego na rua é você deixar que o cego segure o seu braço, pois assim ele sente todos os seus movimentos. Você pode correr, descer escada, subir escada, pular buraco que não tem problema. A maioria das pessoas pega o cego pelo braço, suspende e aperta, mas aperta com tanta força que dá a impressão de que o cego quer fugir. E o cego não quer fugir, ele só quer atravessar a rua".
O cotidiano de um cego é cheio de imprevistos. "Outro dia mesmo, eu estava com uma pressa danada e queria atravessar a rua, mas ninguém me dava o braço. Olhei para um lado, olhei para o outro e não vi ninguém, até porque sou cego. E decidi: ‘o primeiro que me roçar o braço, eu agarro e atravesso’. Dito e feito: o primeiro que me esbarrou o braço eu agarrei nele e nós atravessamos em meio às buzinas. Ao chegar ao outro lado, fui agradecer:
- Muito obrigado.
- Não, eu é que agradeço, eu sou cego.
- Uai, você também!
O que esses cegos nos ensinam, com esse comportamento irreverente e inesperado, politicamente incorreto na aparência, é que o preconceito e a discriminação não se corrigem só pelo uso bem-comportado da linguagem, por mais importante que ela seja como portadora de clichês e estereótipos.
Não adianta evitar palavras e expressões como "denegrir", "judiar", "cego de raiva", sem mudar a cabeça. Assim, como a retórica, o politicamente correto serve apenas para disfarçar o preconceito e tornar o nosso racismo mais cordial.
Zuenir Ventura
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