Sebastien Mourrain |
Nunca houvera um inverno tão frio e comprido nas montanhas francesas. Havia semanas que o ar estava límpido, áspero e frio. Durante o dia, os grandes e inclinados mantos de neve, de um branco baço, estendiam-se infinitamente por baixo do céu azul ofuscante; de noite, a Lua passava, pequena e clara, por cima deles, uma Lua terrível a indicar geada com o seu brilho amarelo, cuja luz forte se tomava azul e sombria em cima da neve, assemelhando-se à própria geada. Os homens evitavam todos os caminhos e particularmente as altitudes; indolentes, soltavam injúrias nas cabanas da aldeia cujas janelas, vermelhas à noite, pareciam, ao lado da luz azul da Lua, revestidas de uma opacidade fumarenta e rapidamente se apagavam.Era um tempo difícil para os animais da região. Os mais pequenos morriam de frio, e mesmo os pássaros sucumbiam à geada, os seus cadáveres franzinos eram presa de lobos e açores. Poucas famílias de lobos ali viviam, e a necessidade impeliu-as a formar sociedades mais firmes. De dia saíam individualmente. Aqui e acolá passava um sobre a neve, magro, esfomeado e alerta, silencioso e acanhado, como um fantasma. A sua sombra estreita deslizava a seu lado, sobre a superfície da neve. Farejando, esticava o focinho bicudo na direcção do vento, e, por vezes, soltava um uivo seco e angustiado. Mas à noite saíam todos em conjunto e circundavam as aldeias soltando gritos roucos. Ali, o gado e as aves encontravam-se bem guardados e, atrás das fortes portadas, as espingardas estavam em posição. Só muito raramente lhes calhava uma pequena presa como um cão, e dois da sua alcateia já tinham sido mortos a tiro.
A geada ainda perdurava. Muitas vezes os lobos permaneciam aninhados, silenciosamente, aquecendo-se uns aos outros e perscrutando angustiados o ermo morto; até que um deles, atormentado pelos terríveis sofrimentos da fome, saltava de repente soltando um bramido horripilante. Então, todos os outros viravam o focinho na sua direcção, tremiam e deixavam escapar um grito terrível, ameaçador e clamoroso.
Finalmente, a parte mais pequena da alcateia decidiu emigrar. Cedo, de manhã, deixaram os seus covis, juntaram-se e farejaram excitados e cheios de medo o ar gelado. Abalaram então, num trote rápido e regular. Os que ficaram ainda os perseguiam com olhos dilatados e vidrados, trotaram alguns passos atrás deles e voltaram devagar para as suas covas vazias.
Os emigrantes separaram-se ao meio-dia. Três deles dirigiram-se para o Jura suíço a leste, os outros rumaram ao sul. Os primeiros três eram animais belos e fortes, mas terrivelmente emagrecidos. A sua barriga clara estava chupada e era estreita como uma correia; no peito, as costelas sobressaíam deploravelmente, tinham as bocas secas e os olhos dilatados e desesperados. Os três conseguiram entrar no Jura profundo. No segundo dia, apresaram um carneiro, no terceiro, um cão e um potro e acabaram por ser furiosamente perseguidos, por todo o lado, pelos camponeses. Na região, rica em aldeias e cidades, espalhou-se o terror e o medo perante os insólitos intrusos. Os trenós do correio foram armados, ninguém ia sem espingarda de uma aldeia à outra. Nesta região forasteira, após um saque tão bom, os três animais sentiam-se muito bem. mas ao mesmo tempo com medo; tornaram-se mais atrevidos do que alguma vez o tinham sido em casa em pleno dia, penetraram no estábulo de uma granja. Mugidos de vaca, o estalar de barreiras de madeira a lascar, o patear de cascos e uma respiração quente e sequiosa encheram o espaço apertado e quente. Mas desta vez houve intervenção humana. Dois deles foram abatidos, o pescoço de um foi atravessado por um tiro de espingarda, o outro foi chacinado com um machado. O terceiro escapou e correu, até cair meio morto na neve. Era o mais novo e mais belo dos lobos, um animal orgulhoso de urna força poderosa e formas ágeis. Arfando, ficou deitado durante muito tempo. Frente aos seus olhos giravam círculos vermelhos de sangue.
Por vezes, soltava um gemido silvante e doloroso. Fora atingido nas costas por um golpe de machado. Mas recuperou e conseguiu levantar-se novamente. Só agora se apercebia da grande distância que correra. Não se viam homens nem casas em parte alguma. Mesmo à sua frente ficava uma montanha imponente e cheia de neve. Era o Chasseral. Decidiu torneá-lo. Como a sede o atormentava, comeu bocadinhos da crosta gelada e dura da superfície da neve.
Do outro lado da montanha deparou imediatamente com uma aldeia. O fim do dia estava a aproximar-se. Esperou num denso bosque de abetos. Então colou-se cautelosamente às cercas dos jardins, seguindo o cheiro dos estábulos quentes. Não havia ninguém na rua. Tímido e cobiçoso, pestanejava entre as casas. Soou um tiro. Esticou a cabeça e alongou o passo para correr, quando se ouviu o segundo tiro. Foi atingido. Um dos lados do seu abdómen esbranquiçado estava manchado do sangue, que corria em gotas grossas e viscosas. Mesmo assim conseguiu escapar, em grandes saltos, e alcançar o bosque do outro lado da montanha. Ali esperou um momento, escutando, e ouviu vozes e passos vindos de duas direcções. Cheio de medo, olhou montanha acima. Era íngreme, arborizada e penosa para subir. Mas não teve outra escolha. Com o fôlego arquejante, escalou a parede alcantilada, e, lá em baixo,á volta da montanha, estendia-se uma confusão de injúrias, ordens e luzes de lanternas. Tremendo, o lobo ferido subiu o bosque de abetos meio escurecido, enquanto o sangue castanho corria lentamente do seu flanco.
O frio abrandara. A oeste, o céu estava enevoado e parecia prometer um nevão.
Finalmente, o animal esgotado alcançou o cume. Encontrava-se agora num grande campo de neve ligeiramente inclinado, perto de Mont Crossin, muito acima da aldeia de que escapara. Não sentia fome, mas sim a dor indistinta e persistente da sua ferida. O seu focinho descaído emitiu um latido baixinho e doentio e o seu coração bateu pesada e dolorosamente, sentindo passar sobre ele a mão da morte como um peso indescritível. Um abeto solitário de largos ramos atraiu-o; ali se sentou e fitou melancolicamente a noite cinzenta de neve. Passou meia hora. Caía agora uma luz vermelho-pálida sobre a neve, estranha e suave.
O lobo levantou-se, gemendo, e virou a sua bela cabeça para a luz. Era a Lua, gigante e vermelha de sangue, que nascia a sudeste e subia lentamente pelo horizonte enevoado. Há semanas que não era tão grande e vermelha. Tristemente, o olho do animal desfalecido fixou o disco baço da Lua, e, mais uma vez, um fraco uivo rompeu penosa e silenciosamente na noite. Seguiram-se então luzes e passos. Camponeses com sobretudos fortes, caçadores e rapazes jovens com gorros de peles e grosseiras polainas passavam pesadamente pela neve. Soaram gritos de júbilo. O lobo moribundo fora descoberto, dispararam dois tiros sobre ele e ambos falharam. Então viram que já estava prestes a morrer caíram-lhe em cima com paus e cacetes. Ele ja não sentiu nada.
De membros quebrados, carregaram-no montanha abaixo até St. Immer. Riam-se, gabavam-se, já se deliciavam com a aguardente e o café, cantavam e praguejavam. Ninguém reparou na beleza da floresta coberta de neve, nem no brilho do planalto, nem na Lua vermelha pendurada por cima do Chassera, cuja fraca luz se quebrava nos canos das espingardas, nos cristais de neve e nos olhos mortiços do lobo abatido.
Hermann Hesse
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