quarta-feira, fevereiro 1

Naqueles tempos bárbaros e góticos

Sofro, com frequência, semanalmente, diariamente, horariamente, quando me ponho a ler colunas, livros, ensaios, ficções, testemunhos dos jovens e aclamados turcos do nosso mercado literário. Sinto-me, ai de mim, posto de lado, excluído, arrumado numa prateleira, de cada vez que mergulho naquela algaraviada debitada numa prosa "inovadora", que ofende o bom senso, a gramática essencial e a mais elementar lógica do discurso. As palavras combinam-se, ali, naquela prosa intemerata e louca, de modo anárquico e perturbante - e deixam-me os olhos e o espírito enviesados . Palavra puxa palavra, na razão directa da falta de senso e na inversa da mais desejável higiene mental. Escreve-se uma prosa "fresquinha" e "novinha", em que nada faz muito sentido, mas em que tudo soa muito a uma " revolução de linguagem" ( sic). Aquela prosa não dá para pensar, reflectir, para exprimir , dá apenas para parecer que está ali para prospectar territórios "novos", mesmo à custa de uma falta total de senso e de uma pungente ausência de sentido de ridículo.

O grande escritor americano James Baldwin observou que " a função radical da linguagem é a de controlar o universo, na medida em que o descreve." Descrever com acuidade o universo exige rigor, honestidade mental e um cuidado particular com a manipulação das palavras. Não é com combinações arbitrárias de palavras, com aproximações novinhas entre aquelas que mutuamente se não desejam, que se poderá descrever adequadamente o universo, quanto mais controlá-lo.

Leio, diariamente - e disso sofro - afirmações tontas, debitadas em ar de grande regozijo e descoberta. Observava Cervantes que uma observação tonta pode ser feita tanto em latim como em espanhol. Eu acrescentaria que o português também se presta maravilhosamente a acolher o dislate. Fazer isto à linguagem, levianamente desta maneira, é coisa mui piadosa de ver. " Talvez que, de todas as criações do homem, a linguagem seja a mais assombrosa", disse esse grande biógrafo que se chamou Lytton Strachey. Talvez, por isso mesmo, essa assombrosa criação devesse estar cuidadosamente preservada, até aos ossos, de tanta irresponsável e quotidiana agressão. Tal como Churchill sentia, até aos ossos, a estrutura essencial da frase inglesa mais comum, eu sinto, também, até aos meus ossos lusitanos, a estrutura essencial da frase lusa. Por isso me confrange este mergulho diário nesta prosa contentinha e magnificamente festejada - e galardoada! - com que os nossos jovens turcos inundam a praça literária. Confrange-me até porque seria de supor que um mínimo de bom senso lexical e gramatical presidisse, geneticamente, à empresa dos perpetradores da prosa. Dizia o grande linguista Noam Chomsky que " cada pessoa tem, programada nos seus genes, a faculdade chamada gramática universal." Seria como se os nossos próprios genes nos impedissem de derraparmos em relação a um discurso claro e límpido. " Fazer sentido" estaria por assim dizer inscrito no nosso código genético. Como se enganava o grande linguista! Derrapar, vagabundear, juntar, à toa, elementos lexicais que mutuamente se não toleram - parece ser a grande vocação dos geniais inovadores que atordoam a nossa praça literária.


Meditando sobre tudo isto, Anatole France, que, no seu tempo fora atingido por um sofrimento não muito diferente do meu, observava melancolicamente : " Era naqueles tempos bárbaros e góticos, em que as palavras tinham um significado; naqueles dias, os escritores exprimiam pensamentos." Tempos remotos , bárbaros e góticos , em que o pensamento era claro e as palavras se não manipulavam de modo leviano ou mesmo arbitrário...

Ponho-me a ler estes textinhos inovadores e sinto a maior dificuldade em navegar no meio daquela frondosa " floresta de enganos". Tudo me perturba , me intriga, me coloca fora de qualquer realidade palpável. A sintaxe, a morfologia, o bom senso - retraem-se, afrouxam, fazem caretas, dissolvem-se. Sinto-me, não no meio de um discurso clarificador e enriquecedor, mas , sim, no centro de um ruído ensurdecedor e altamente criador de vertigem e de confusão. " As palavras , como é sabido", observava Joseph Conrad, " são grande inimigos da realidade." Estas palavras, manuseadas à balda, pelos jovens turcos bafejados pela glória, bloqueiam qualquer minguado acesso à realidade. Fazem um ruído novo, inesperado, intrigante, mas é um ruído que veda, obstrui a entrada do mais pequeno raio de luz. Uma análise combinatória focada nestes textos enviesados lega-nos um tecido estranho, feito de arranjos de palavras contranatura, de acasalamentos improváveis e de um guião sintáctico arrevesado. Busca-se , não a finura e a luz, mas, antes, a obscuridade sonora e espessa. Tropeça-se, a cada passo, no contra-senso, na metáfora mal amanhada, na adjectivação forçada ou absurda, na dedução claudicante... Em vez da pureza gramatical, o pântano linguístico, que nos enlameia a alma e conspurca o espírito.

Esta prosa imatura feita de palavras que não apanharam sol - estou a lembrar-me do saudoso João de Araújo Correia - perturba-me de um modo quase físico: lê-se mal, ouve-se mal, respira-se mal. Causa dor física porque entope os pulmões e ofende a respiração. Feita de palavras míopes que mal enxergam outras cuja companhia melhor lhes convenha, vive de associações enviesadas e trôpegas que entulham o texto de neoplasias incómodas e dolorosas. Alheia ao discurso límpido concebido para gente chã, a prosa dos jovens turcos desconhece a claridade do amanhecer, saltando directamente de uma noite para outra noite.

O velho Samuel Johnson, que Boswell laboriosamente biografou, para a posteridade, observou um dia que tinha trabalhado " para refinar a linguagem até uma pureza gramatical e para a clarear de barbarismos coloquiais, de idiomas licenciosos e de combinações irregulares. " É este trabalho de refinaria da linguagem, para a libertar de " combinações irregulares", que proponho aos jovens perpetradores de atropelos gramaticais que visam inculcar como inovações aurorais , mas que não passam de tumores incómodos e opacos. As palavras dão para tudo: para fazer luz ou para fazer noite.Tudo depende de quem as usa e de que como as usa. Ou nos elevam acima dos brutos ou nos põem ao nível deles: escolha quem pode.

Eugénio Lisboa ( JL, 18-31 de Janeiro de 2017)

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