Há uns tempos, fui cortar o cabelo. Uma das senhoras que frequentam o cabeleireiro e sabe que sou editora, estava preocupada: na escola da neta, que tem treze anos, a professora de Português mandara ler o primeiro romance de Valter Hugo Mãe, O Nosso Reino, e a mãe da miúda tinha espreitado o livro e achado que não era adequado para aquela faixa etária. Disse-lhe que, de facto, o acharia mais apropriado a estudantes do Secundário. Na semana seguinte, descobri no jornal Expresso uma polémica relativa à Escola Pedro Nunes, cujos professores também recomendaram o romance: os pais de muitos alunos discordam em absoluto da leitura da obra pelos seus filhos do oitavo ano (talvez porque inclui linguagem muito crua em certas passagens, embora poucas) e foram à escola indignar-se e propor a sua imediata substituição.
Enquanto a senhora que vai ao meu cabeleireiro já me avisou que, afinal, a professora da neta desistiu da ideia de os seus alunos lerem o livro (pelos vistos, ela própria ainda não o lera e, ao fazê-lo, acabou por concordar que era pesado para miúdos de 13 e 14 anos; que professora é esta que recomenda um livro que não leu?), na Escola Pedro Nunes houve professores que fizeram finca-pé e dizem que os alunos já não são crianças e que a literatura também serve para incomodar; além disso, o Plano Nacional de Leitura recomendava a obra para o 3º ciclo do Básico, ou seja, do 7º ao 9º ano (ao que parece, houve um erro informático na classificação). Ora, diante dessa decisão, houve pais que proibiram simplesmente os filhos de ler o livro (arcando com as consequências, entre elas a de que os miúdos o vão ler às escondidas, claro) e pais que se deram ao trabalho de pintar por cima das passagens mais vernaculares (como se a literatura pudesse ser amputada)…
Eu, que conheço bem este romance porque fui eu o publiquei pela primeira vez, acho que, para o ler – as suas páginas sem maiúsculas ou pontos de interrogação, a sua linguagem elaborada, as questões tratadas (políticas, filosóficas, místicas) –, é preciso já ter alguma maturidade intelectual e bons hábitos de leitura, e custa-me muito a crer que em turmas do oitavo ano haja alunos suficientes com estas características que possam realmente fruir o texto em todas as suas vertentes. Tenho uma sobrinha de 14 anos bastante boa aluna e informada (quis ir pessoalmente assinar o livro de condolências de Mário Soares, por exemplo), mas não me parece, mesmo assim, que ela fosse entender este romance em toda a sua grandeza.
Nunca proibiria um filho de o ler (eu própria li muita coisa em miúda que não era para a minha idade) só por causa de meia dúzia de palavras que, fora do contexto, podem parecer chocantes (os jovens, sempre com o nariz na Internet, já leram certamente coisas muito piores); mas, que me desculpe ou agradeça o Valter, parece-me que a sua leitura por gente desta idade pode simplesmente queimar futuros leitores para a sua obra.
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