Um dia destes, o Manel leu-me o primeiro parágrafo de um livro que tinha entre mãos. Rezava assim: "Decididamente, o Romão alquilé, com o seu carão brunido do sol, achamboirado e alegre, a jaleca de astracan a enxalmar-lhe o arcaboiço, a espora tilintando no sapatão de bezerro, todo o seu ar de alentejano ricaço, testudo como os asnos de Alvalade e torto como as azinheiras da sua terra "– decididamente, ia eu dizendo, o Romão alquilé era o mais patego dos troquilhas de Portugal. Conhecido como cão ruivo, tratava de igual para igual ciganos e marialvas, marchantes e rascoas de viela. Bom coração, é verdade; mas olho sobre o ombro, poucas falas, desconfiado como sete e parvo como vinte. Tinha aquele fraco: os alborques das cavalgaduras. Era uma tentação.» Não conhecia a passagem e avancei que tinha algo de Aquilino. Mas estava longe, porque, sobretudo em termos políticos, era um escritor acarinhado pelo Estado Novo, nada mais nada menos do que Júlio Dantas. A minha geração foi marcada pelo manifesto que Almada lhe dedicou e – talvez por isso – passou sem ler este homem do sistema, crendo parvamente que nada valia em termos literários. E, se é verdade que aprecio o fado conhecido por Rua do Capelão (o seu título verdadeiro é Novo Fado da Severa) na voz de Amália – com letra de Júlio Dantas –, confesso a minha ignorância em relação a outros escritos do autor, que não devo ter sequer espreitado, percebo agora, por puro preconceito. E, todavia, este parágrafo que transcrevi é uma descrição formidável de uma personagem (podia ser usado em cursos de Escrita Criativa!) e faz-me pensar que, mesmo que não me agrade a figura, há que ler depressa o romance "A Severa", que foi donde tirei a passagem.
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