quarta-feira, maio 31
Inimitável perfil de cada um
Clovis Didier |
Cada um tem o destino universal de fazer consigo mesmo o modelo de mais uma estátua humana. E esta fabrica-se apenas com íntimo pessoal.
O nosso íntimo pessoal é inatingível por outrem. E é este o fundamento de toda a humanidade, de toda a Arte e de toda a Religião. O nosso íntimo pessoal é de ordem humana, estética e sagrada. Serve apenas o próprio. E o seu único caminho. O melhor que se pode fazer em favor de qualquer é ajudá-lo a entregar-se a si mesmo. Com o seu íntimo pessoal cada um poderá estar em toda a parte, sejam quais forem as condições sociais, as mais favoráveis e as mais adversas. Sem ele, nem para fazer número se aproveita ninguém.
A individualidade e a personalidade são florescências desse invisível do nosso ser a que chamamos o nosso íntimo. Tudo quanto de bom ou de mau, de óptimo ou de péssimo exista em cada qual nasceu com ele e formou-se secretamente, intimamente, a despeito de todo o aspecto que lhe venha do exterior, de toda a educação e acção alheias.
O papel da sociedade é imediatamente mais evidente sobre cada pessoa do que o atropelado movimento das gerações que a antecederam e lhe determinaram o seu sangue, mas aquela não vale esta. Que uma pessoa tome a seu cargo dirigir o próprio destino que lhe coube, é com ela. Que seja a sociedade quem se proponha dirigi-lo, é ingenuidade. O mais que neste caso poderá a sociedade é eliminar esse destino pessoal. A sociedade só tem que ver com todos, não tem nada que cheirar com cada um!
Cada um nasce já bem ou mal educado. E depois de nascido bem ou mal educado, tudo quanto se faça pode pouco para imediatamente. Vereis gentes humildes, analfabetos, simples e perfeitamente bem educados, sabendo medir as distâncias entre pessoas, sem se atrapalharem com as escalas sociais, e perfeitamente uníssonos com o seu próprio caso pessoal. Vereis, por outra, gentes de opinião, passados superiormente por cursos, e, uma vez na altura oficial, não saberem distinguir pessoas de formigas, e outras vertigens dos sítios altos, e, o que é pior, de costas voltadas para si mesmos como para o diabo. Isto é, aquilo em que eles poderiam merecer o nosso interesse é precisamente ao que eles voltaram as costas!
O autor destas páginas também desenha e não sabe expressar por palavras a extraordinária impressão que recebe sempre que copia o perfil de qualquer pessoa. A natureza chega tão complexa às feições de cada um, que somos forçados a não poder aceitar cada qual resumido ao lugar em que a sociedade o põe. Através dos séculos, uma linha única e incessantemente seguida acabou por tornar inimitável o perfil de cada um. Essa linha passa agora desde o alto da testa até por baixo do queixo, e às vezes lembra a de outros, mas é intransmissível.
Almada Negreiros
segunda-feira, maio 29
Os sete capítulos esquecidos de 'Cem anos de solidão'
Meses antes de terminar Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez amargava sérias dúvidas sobre a qualidade de um romance que se tornaria um clássico da literatura. "Quando li o que tinha escrito", confessou por carta a um amigo, "tive a desmoralizante impressão de estar metido numa aventura que tanto podia ser afortunada quanto catastrófica". Algo pouco conhecido é que García Márquez publicou sete capítulos de Cem Anos de Solidão para aplacar essas dúvidas. E fez isso antes de acabar o livro (o que aconteceu em agosto de 1966) e de assinar o contrato com a Editorial Sudamericana, que firmou em 10 de setembro do mesmo ano. A obra foi lançada em 30 de maio de 1967. Na próxima terça-feira fará 50 anos.
Os sete capítulos foram publicados em jornais e revistas que circulavam em mais de 20 países. Representam mais de um terço do livro, que ao todo tem 20 capítulos. Nem sequer há cópias deles no arquivo pessoal de García Márquez no Harry Ransom Center, no Texas, que abriga seu legado. Para encontrar seu rastro é preciso percorrer bibliotecas na França, Estados Unidos, Colômbia e Espanha.
Os capítulos caíram no esquecimento porque se acreditava que eram idênticos aos publicados na primeira edição, de 1967, do livro. Só que a comparação das versões revela outra realidade. Desde a primeira página há mudanças na linguagem, na estrutura e na descrição dos personagens. Isso dá aos capítulos esquecidos grande valor literário para entender como a obra foi escrita. García Márquez afirmou que tinha queimado as notas e os manuscritos preparatórios depois de receber a primeira cópia do livro.
O primeiro capítulo saiu em 1º de maio de 1966 no El Espectador, de Bogotá, quando ainda faltavam três meses para finalizar a obra. Entre essa versão e a edição final de 1967 há 42 alterações significativas, que aparecem desde a primeira página. As casas de Macondo, por exemplo, não eram "de barro e taquara" como na edição final, e sim simplesmente de "adobe". O escritor buscava uma linguagem mais precisa.
Também há modificações importantes na estrutura geral do livro. Por exemplo, na edição de 1967, a ação destruidora dos cupins, que anuncia o declínio da casa da família Buendía, é descrita mais para o final da obra. Mas na versão de El Espectador, "o cupim minava os alicerces da casa" desde o primeiro capítulo. Referências tão no começo aos insetos davam dramaticidade à futura decadência da casa.
Na edição definitiva, Macondo é um povoado isolado da civilização, com localização exata desconhecida. Ao contrário, no capítulo de El Espectador, Macondo é localizada com facilidade, pois fazia fronteira "a Oeste com as dunas do rio La Magdalena", na Colômbia. García Márquez suprimiu esse e outros detalhes sobre a localização precisa da cidadezinha para criar no leitor a impressão de que poderia ser um lugarejo típico de qualquer país latino-americano.
Outra mudança surpreendente tem a ver com o nascimento do coronel Aureliano Buendía. Na edição final, o coronel "tinha chorado no ventre de sua mãe e nasceu com os olhos abertos", enquanto no capítulo de El Espectador o herói recebia tratamento pouco heroico e até prosaico: a parteira lhe dá "três palmadas enérgicas" para fazê-lo chorar.
O capítulo seguinte que García Márquez testou com os leitores saiu na revista Mundo Nuevo em agosto de 1966. Publicada em Paris, essa revista se tornou a principal vitrine da literatura do boom latino-americano. Seus 6.000 exemplares mensais eram vendidos em 22 países, incluindo Estados Unidos, Holanda, Espanha, Portugal e quase toda a América Latina. Nesse capítulo encontrei 51 diferenças em relação à edição final. Por exemplo, José Arcadio, cuja mãe, Úrsula, temia que nascesse com rabo de porco, veio ao mundo como "um filho saudável", ao passo que na edição final o autor aumenta a dramaticidade ao escrever: "Deu à luz um filho com todas as suas partes humanas".
A alquimia, tão importante nos capítulos iniciais, era mencionada em Mundo Nuevo usando o termo especializado "a Opera Magna". O escritor simplificou a leitura e optou somente por alquimia.
Após a publicação do segundo capítulo, passaram-se cinco meses até a saída do seguinte. García Márquez deve ter empregado esse intervalo para revisar a obra, porque o novo capítulo era o mais arriscado: a ascensão ao céu de Remedios, a bela. O escritor escolheu para sua divulgação Amaru, uma revista peruana dedicada à literatura de vanguarda internacional. Seus leitores eram exigentes escritores e críticos literários. García Márquez não só comprovou a solidez literária desse capítulo com eles, como também o leu em voz alta a seu círculo de amizade em sua casa na Cidade do México. "Convoquei aqui as pessoas mais exigentes, competentes e francas", escreveu em carta endereçada a seu amigo Mendoza no verão de 1966. "O resultado foi formidável, especialmente porque o capítulo lido era o mais perigoso: a subida ao céu, em corpo e alma, de Remedios Buendía."
Na revista literária colombiana Eco surgiu outro capítulo "perigoso": a morte de Úrsula, depois de viver entre 115 e 122 anos. Entre as alterações mais notáveis se destaca a eliminação de uma frase, ausente na edição de 1967, de Fernanda del Carpio, após a viagem de Amaranta Úrsula à Europa: "Meu Deus —murmurou Fernanda—, esqueci de lhe dizer para olhar para os dois lados antes de atravessar a rua".
Em março de 1967, saiu na revista Mundo Nuevo o capítulo da peste da insônia, que flagelou Macondo. Como García Márquez explicou em várias entrevistas, seu intento era que a linguagem de Cem Anos de Solidão fosse mais antiquada na primeira parte (por exemplo, usou termos arcaicos para "instrumentos musicais" e "grande alvoroço"). Depois, afirmou o escritor, a linguagem se modernizaria conforme o romance chegasse ao final.
Último tiro
García Márquez disparou seu último tiro em abril de 1967, quando a revista mexicana Diálogos imprimiu o capítulo da chuva que cai sobre Macondo durante quatro anos. Entre as mudanças importantes figura uma que revela não apenas como o autor suprimia frases ou trocava palavras como também sua técnica para acrescentar conteúdo. Quando Fernanda del Carpio termina de repreender severamente seu marido, Aureliano Segundo, depois de um monólogo que ocupa várias páginas, na versão da Diálogos ela conclui que seu marido estava "acostumado a viver das mulheres". Mas na edição de 1967, Fernanda culmina sua bronca monumental com uma frase pletórica, carregada de força mitológica e religiosa. Afirma que seu marido estava "acostumado a viver das mulheres, e convencido de que tinha se casado com a esposa de Jonas, que ficou tão calma com a história da baleia".
Por último, na semana anterior ao lançamento do livro, a revista argentina Primera Plana publicou um fragmento do capítulo sobre as 32 guerras do coronel Aureliano Buendía. Primera Plana era voltada ao grande público, e seus 60.000 exemplares semanais circulavam dentro e fora da Argentina. Embora já não tivesse tempo de fazer mudanças, García Márquez enviou um capítulo que deveria cativar o público de um continente que continuava marcado pelas guerrilhas insurgentes contra o poder, como a guerrilha do próprio coronel Aureliano Buendía.
Como revela a correspondência de García Márquez, ao publicar os capítulos mais inventivos e "perigosos", o escritor anotou bem as sugestões feitas por amigos e leitores. A história por trás desses capítulos esquecidos de Cem Anos de Solidão revela o árduo trabalho de edição feito por García Márquez, em especial para aplacar aquela "desmoralizante impressão" que teve ao ler o que havia escrito de uma obra que a partir de 30 de maio de 1967 mudaria o rumo da literatura.
Álvaro Santana-Acuña
Os sete capítulos foram publicados em jornais e revistas que circulavam em mais de 20 países. Representam mais de um terço do livro, que ao todo tem 20 capítulos. Nem sequer há cópias deles no arquivo pessoal de García Márquez no Harry Ransom Center, no Texas, que abriga seu legado. Para encontrar seu rastro é preciso percorrer bibliotecas na França, Estados Unidos, Colômbia e Espanha.
Os capítulos caíram no esquecimento porque se acreditava que eram idênticos aos publicados na primeira edição, de 1967, do livro. Só que a comparação das versões revela outra realidade. Desde a primeira página há mudanças na linguagem, na estrutura e na descrição dos personagens. Isso dá aos capítulos esquecidos grande valor literário para entender como a obra foi escrita. García Márquez afirmou que tinha queimado as notas e os manuscritos preparatórios depois de receber a primeira cópia do livro.
O primeiro capítulo saiu em 1º de maio de 1966 no El Espectador, de Bogotá, quando ainda faltavam três meses para finalizar a obra. Entre essa versão e a edição final de 1967 há 42 alterações significativas, que aparecem desde a primeira página. As casas de Macondo, por exemplo, não eram "de barro e taquara" como na edição final, e sim simplesmente de "adobe". O escritor buscava uma linguagem mais precisa.
Também há modificações importantes na estrutura geral do livro. Por exemplo, na edição de 1967, a ação destruidora dos cupins, que anuncia o declínio da casa da família Buendía, é descrita mais para o final da obra. Mas na versão de El Espectador, "o cupim minava os alicerces da casa" desde o primeiro capítulo. Referências tão no começo aos insetos davam dramaticidade à futura decadência da casa.
Na edição definitiva, Macondo é um povoado isolado da civilização, com localização exata desconhecida. Ao contrário, no capítulo de El Espectador, Macondo é localizada com facilidade, pois fazia fronteira "a Oeste com as dunas do rio La Magdalena", na Colômbia. García Márquez suprimiu esse e outros detalhes sobre a localização precisa da cidadezinha para criar no leitor a impressão de que poderia ser um lugarejo típico de qualquer país latino-americano.
Outra mudança surpreendente tem a ver com o nascimento do coronel Aureliano Buendía. Na edição final, o coronel "tinha chorado no ventre de sua mãe e nasceu com os olhos abertos", enquanto no capítulo de El Espectador o herói recebia tratamento pouco heroico e até prosaico: a parteira lhe dá "três palmadas enérgicas" para fazê-lo chorar.
O capítulo seguinte que García Márquez testou com os leitores saiu na revista Mundo Nuevo em agosto de 1966. Publicada em Paris, essa revista se tornou a principal vitrine da literatura do boom latino-americano. Seus 6.000 exemplares mensais eram vendidos em 22 países, incluindo Estados Unidos, Holanda, Espanha, Portugal e quase toda a América Latina. Nesse capítulo encontrei 51 diferenças em relação à edição final. Por exemplo, José Arcadio, cuja mãe, Úrsula, temia que nascesse com rabo de porco, veio ao mundo como "um filho saudável", ao passo que na edição final o autor aumenta a dramaticidade ao escrever: "Deu à luz um filho com todas as suas partes humanas".
A alquimia, tão importante nos capítulos iniciais, era mencionada em Mundo Nuevo usando o termo especializado "a Opera Magna". O escritor simplificou a leitura e optou somente por alquimia.
Após a publicação do segundo capítulo, passaram-se cinco meses até a saída do seguinte. García Márquez deve ter empregado esse intervalo para revisar a obra, porque o novo capítulo era o mais arriscado: a ascensão ao céu de Remedios, a bela. O escritor escolheu para sua divulgação Amaru, uma revista peruana dedicada à literatura de vanguarda internacional. Seus leitores eram exigentes escritores e críticos literários. García Márquez não só comprovou a solidez literária desse capítulo com eles, como também o leu em voz alta a seu círculo de amizade em sua casa na Cidade do México. "Convoquei aqui as pessoas mais exigentes, competentes e francas", escreveu em carta endereçada a seu amigo Mendoza no verão de 1966. "O resultado foi formidável, especialmente porque o capítulo lido era o mais perigoso: a subida ao céu, em corpo e alma, de Remedios Buendía."
Na revista literária colombiana Eco surgiu outro capítulo "perigoso": a morte de Úrsula, depois de viver entre 115 e 122 anos. Entre as alterações mais notáveis se destaca a eliminação de uma frase, ausente na edição de 1967, de Fernanda del Carpio, após a viagem de Amaranta Úrsula à Europa: "Meu Deus —murmurou Fernanda—, esqueci de lhe dizer para olhar para os dois lados antes de atravessar a rua".
Em março de 1967, saiu na revista Mundo Nuevo o capítulo da peste da insônia, que flagelou Macondo. Como García Márquez explicou em várias entrevistas, seu intento era que a linguagem de Cem Anos de Solidão fosse mais antiquada na primeira parte (por exemplo, usou termos arcaicos para "instrumentos musicais" e "grande alvoroço"). Depois, afirmou o escritor, a linguagem se modernizaria conforme o romance chegasse ao final.
Último tiro
García Márquez disparou seu último tiro em abril de 1967, quando a revista mexicana Diálogos imprimiu o capítulo da chuva que cai sobre Macondo durante quatro anos. Entre as mudanças importantes figura uma que revela não apenas como o autor suprimia frases ou trocava palavras como também sua técnica para acrescentar conteúdo. Quando Fernanda del Carpio termina de repreender severamente seu marido, Aureliano Segundo, depois de um monólogo que ocupa várias páginas, na versão da Diálogos ela conclui que seu marido estava "acostumado a viver das mulheres". Mas na edição de 1967, Fernanda culmina sua bronca monumental com uma frase pletórica, carregada de força mitológica e religiosa. Afirma que seu marido estava "acostumado a viver das mulheres, e convencido de que tinha se casado com a esposa de Jonas, que ficou tão calma com a história da baleia".
Por último, na semana anterior ao lançamento do livro, a revista argentina Primera Plana publicou um fragmento do capítulo sobre as 32 guerras do coronel Aureliano Buendía. Primera Plana era voltada ao grande público, e seus 60.000 exemplares semanais circulavam dentro e fora da Argentina. Embora já não tivesse tempo de fazer mudanças, García Márquez enviou um capítulo que deveria cativar o público de um continente que continuava marcado pelas guerrilhas insurgentes contra o poder, como a guerrilha do próprio coronel Aureliano Buendía.
Como revela a correspondência de García Márquez, ao publicar os capítulos mais inventivos e "perigosos", o escritor anotou bem as sugestões feitas por amigos e leitores. A história por trás desses capítulos esquecidos de Cem Anos de Solidão revela o árduo trabalho de edição feito por García Márquez, em especial para aplacar aquela "desmoralizante impressão" que teve ao ler o que havia escrito de uma obra que a partir de 30 de maio de 1967 mudaria o rumo da literatura.
Álvaro Santana-Acuña
domingo, maio 28
Um habitante de Carcosa
Pois há diversos tipos de morte. Em algumas, o corpo é preservado; em outras desaparece, junto com o espírito. Geralmente isso ocorre quando o indivíduo está só (esta é a vontade de Deus) e, como não nos é dado conhecer o fim, dizemos que o homem desapareceu, ou que se foi numa longa jornada — o que é verdade. Mas, às vezes, o fato ocorre diante da vista de muitos, como provam vários testemunhos. Num determinado tipo de morte o espírito também morre e sabe-se de casos em que isso aconteceu quando o corpo ainda continuaria vivo por muitos anos. Em outras vezes, como tem sido provado, o espírito morre com o corpo, mas algum tempo depois volta a erguer-se, naquele mesmo lugar onde o corpo se decompôs.Refletindo a respeito dessas palavras de Hali (que descanse em paz) e perguntando-me sobre seu verdadeiro significado — como o faria alguém que, tendo recebido um sinal, ainda tivesse dúvidas e pressentisse algo por trás daquilo que compreendera —, eu seguia sem prestar atenção no caminho, até que um vento gelado no rosto reavivou meus sentidos para o que havia em torno.
O dia já ia alto, imaginei, embora não pudesse ver o sol. E apesar de perceber o ar frio e úmido, minha consciência de tal fato era mais mental do que física — não tinha qualquer sensação de desconforto. Acima daquela terra lúgubre, nuvens baixas, cor de chumbo, formavam uma cobertura, como se fosse uma maldição visível. Em tudo havia ameaça e presságio — um toque maligno, o sinal do juízo final. Pássaro, animal, inseto — nada disso existia. O vento suspirava nos galhos nus das árvores mortas e o capim cinzento curvava-se para sussurrar à terra seus segredos terríveis. Mas nenhum outro som ou movimento quebrava a imobilidade daquele lugar sombrio.
Notei que havia, por entre o capim, algumas pedras gastas pelo tempo, parecendo ter sido moldadas por mãos humanas. Estavam partidas, recobertas de limo e meio enterradas no chão. Algumas caídas, outras inclinadas em vários ângulos. Nenhuma estava de pé. Com toda a certeza, eram lápides de sepulturas, embora as sepulturas em si já não existissem, nem em forma de montículos nem como depressões na terra. O passar dos anos nivelara tudo. Espalhados aqui e ali, blocos maiores de pedra apontavam o local onde alguma sepultura suntuosa ou monumento ambicioso lançara um dia seu débil desafio contra o esquecimento.
Tão antigas pareciam aquelas relíquias, aqueles vestígios da vaidade e da memória de afeições e piedades, tão batidos, gastos, manchados — e tão abandonado, deserto e esquecido aquele lugar — que não pude deixar de pensar que acabara de descobrir o cemitério de alguma raça pré-histórica, de homens dos quais até mesmo o nome estava há muito extinto.
Caminhava tão impregnado desses pensamentos, que por algum tempo vaguei sem prestar muita atenção no que fazia, até pensar: "Como vim parar aqui?" Um momento de reflexão pareceu tornar tudo muito claro e ao mesmo tempo explicar — embora de forma inquietante — o cará ter estranho com que minha imaginação revestira tudo o que via e ouvia. Eu estava doente. Agora lembrava-me de que estivera prostrado com uma febre repentina. Minha família me dissera que, em meus delírios, várias vezes eu gritara, pedindo ar e liberdade, tendo sido amarrado à cama para não fugir. Na certa eu vencera a vigilância de quem tomava conta de mim e saíra para — para onde? Não podia sequer imaginar. Claramente estava a uma imensa distância da cidade onde vivia — a antiga e famosa cidade de Carcosa.
Em parte alguma havia sinais audíveis ou visíveis da existência humana. Nenhum rolo de fumaça, nenhum cão latindo ou gado mugindo, nenhum barulho de crianças brincando. Nada. Apenas aquele cemitério sombrio, com seu ar de mistério e terror, consequências de meu cérebro comprometido. Não estaria eu tendo um novo delírio, ali, onde não havia ninguém para me ajudar? Não seria tudo, afinal, uma ilusão provocada por minha loucura? Gritei os nomes de minhas mulheres e filhos, estendendo os braços à sua procura enquanto caminhava por entre as pedras destroçadas, sobre o capim seco.
Um ruído atrás de mim fez com que eu me virasse. Um animal selvagem — um lince — se aproximava. E, de imediato, pensei: se eu desmaiar aqui, neste lugar deserto, se a febre voltar e eu perder os sentidos, esse animal voará em minha garganta. E corri na direção dele, gritando. Ele continuou seu caminho tranquilamente, passando quase ao alcance de minha mão e desaparecendo por trás de uma pedra.
Logo depois, a cabeça de um homem pareceu surgir do chão, a poucos metros de mim. Ele subia um aclive a uma certa distância, numa colina baixa cujo topo mal se podia distinguir do resto do terreno. Logo, todo ele ficou visível, sua figura recortada contra o céu cinzento. Estava meio nu, meio vestido, em farrapos. Seu cabelo desalinhado, a barba imensa e embaraçada. Em uma das mãos, levava um arco e uma flecha. Na outra, uma tocha acesa, de onde se desprendia um longo fio de fumaça negra. Caminhava devagar, com cuidado, como se temesse cair num túmulo aberto que o capim alto escondesse. Essa estranha aparição me deixou surpreso, mas não com medo. E comecei a caminhar em sua direção até que nos vimos frente a frente. Cumprimentei-o com a saudação usual: "Que Deus esteja com você.”
Mas ele não me deu atenção, nem parou de caminhar. "Meu bom amigo", continuei, "estou doente e perdido. Poderia me orientar, por favor? Preciso voltar para Carcosa.”
O homem começou a entoar um canto bárbaro, numa língua desconhecida, e seguiu em frente.
No galho de uma árvore morta, uma coruja soltou seu pio lúgubre, sendo respondida, a distância, por outra coruja. Erguendo a vista, através de um claro que subitamente se formara entre as nuvens, enxerguei as estrelas Aldebaran e Hy ades. Tudo fazia crer que era noite — o lince, o homem com a tocha, a coruja. E contudo eu enxergava — via até as estrelas, mesmo não havendo escuridão. Via, mas aparentemente não era visto, nem ouvido. Sob aquele estranho encantamento, será que eu existia?
Sentei-me na raiz de uma imensa árvore, tentando pensar no que fazer.
Já não duvidava que estivesse louco, porém reconhecia um resquício de dúvida naquela minha certeza. Não sentia febre. Além disso, tinha uma sensação de euforia e vigor que me eram desconhecidos — uma excitação física e mental.
Todos os meus sentidos estavam alerta. Podia perceber o ar como se fosse uma substância palpável. Era capaz de ouvir o silêncio.
Uma imensa raiz da gigantesca árvore em cujo tronco me apoiara estava enrolada em uma laje de pedra, parte da qual surgia por entre o vão formado por outra raiz. A pedra ficara assim parcialmente protegida das intempéries, embora bastante gasta. Seus cantos estavam arredondados, comidos pelo tempo, e a superfície muito sulcada e descamada. Partículas faiscantes de mica eram visíveis na terra sob a pedra — vestígios de decomposição. A pedra parecia ter marcado o túmulo do qual a árvore brotara, muitas eras antes. Suas raízes possessivas tinham tomado a sepultura, transformando a pedra em prisioneira.
Uma súbita lufada de vento varreu o punhado de folhas secas e gravetos que recobriam a lápide. E, vendo as letras em baixo-relevo de uma inscrição, curvei-me para lê-la. Deus! Era meu nome. A data de meu nascimento... e a data de minha morte!
Um raio de luz oblíqua iluminou todo o lado da árvore no mesmo instante em que me pus de pé, aterrorizado. O sol nascia a leste, no céu cor-de-rosa. Eu estava de pé entre a árvore e seu disco de fogo no horizonte — mas não havia qualquer sombra no tronco!
Um coro de lobos uivando saudou o amanhecer. Podia vê-los, sentados nas patas traseiras, solitários ou em grupos, nos topos dos montículos e dos túmulos, preenchendo em parte a visão desértica que se estendia até o horizonte.
E só então compreendi que estava nas ruínas da antiga e famosa cidade de Carcosa.
Tais fatos foram relatados ao médium Bayrolles pelo espírito de Hoseib Alar Robardin.
Ambrose Bierce
Café com leite
É preciso amar, sabe? Ter-se uma mulher a quem se chegue, como o barco fatigado à sua enseada de retorno. O corpo lasso e confortável, de noite, pede um cais. A mulher a quem se chega, exausto e, com a força do cansaço, dá-se o espiritualíssimo amor do corpo.
Como deve ser triste a vida dos homens que têm mulheres de tarde, em apartamentos de chaves emprestadas, nos lençóis dos outros! Como é possível deixar que a pele da amada toque os lençóis dos outros! Quem assim procede (o tom é bíblico e verdadeiro) divide a mulher com quem empresta as chaves.
Para os chamados “grandes homens”, a mulher é sempre uma aventura. De tarde, sempre. Aquela mulher, que chega se desculpando; e se despe, desculpando-se; e se crispa, ao ser tocada, e cerra os olhos, com toda força, com todo desgosto, enquanto dura o compromisso. É melhor ser-se um “pequeno homem”.
Amor não tem nada a ver com essas coisas. Amor não é de tarde, a não ser em alguns dias santos. Só é legítimo quando, depois, se pega no sono. E há um complemento venturoso, do qual alguns se descuidam. O café com leite, de manhã. O lento café com leite dos amantes, com a satisfação do dever cumprido.
No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo ascetismo da ioga... tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.
Antônio Maria
sábado, maio 27
A estante
Naquele novo apartamento da rua Visconde de Pirajá pela primeira vez teria um escritório para trabalhar. Não era um cômodo muito grande mas dava para armar ali a minha tenda de reflexões e leitura: uma escrivaninha, um sofá e os livros. Na parede da esquerda ficaria a grande e sonhada estante que caberia todos os meus livros. Tratei de encomendá-la a seu Joaquim, um marceneiro que tinha oficina na rua Garcia D’Avila com Barão da Torre.
O apartamento não ficava tão perto da oficina. Era quase em frente ao prédio onde morava Mário Pedrosa, entre a Farme de Amoedo e a antiga Montenegro, hoje Vinicius de Moraes. Estava ali há uma semana e nem decorara ainda o número do prédio. Tanto que, quando seu Joaquim, ao preencher a nota da encomenda, perguntou-me onde seria entregue a estante, tive um momento de hesitação. Mas foi só um momento. Pensei rápido: “Se o prédio do Mário é 228, o meu, que fica quase em frente, deve ser 227. “Mas lembrei-me de que, ao ir ali pela primeira vez, observara que, apesar de ficar em frente ao do Mário, havia uma diferença na numeração.
— Visconde de Pirajá 127 — respondi, e seu Joaquim desenhou o endereço na nota.
— Tudo bem, seu Ferreira. Dentro de um mês estará lá sua estante.
— Um mês, seu Joaquim! Tudo isso? Veja se reduz esse prazo.
— A estante é grande, dá muito trabalho… Digamos, três semanas.
Contei as semanas. Não via chegar o momento de ter no escritório a estante sonhada, onde enfim poderia arrumar os livros por assunto e autores. E,mais que isso, sentir-me um escritor de verdade, um profissional, cercado de livros por todos os lados. No dia da entrega, voltei do trabalho apressado para ver minha estante.
— Como é, veio? — perguntei ao entrar.
— Veio o quê?
— Como o quê? A estante!
Não viera. Seu Joaquim não cumprira com a palavra empenhada, ah português filho de… Telefonei para ele sem dissimular, no tom da voz, minha irritação. E ele:
— Como não cumpri? Andei com dois homens de cima para baixo da rua e não encontrei o tal número que o senhor me indicou. Não existe na rua Visconde de Pirajá o número 127, senhor Ferreira.
Fiquei sem ação. Dera a ele o número errado.
— Diga-me o número certo e sua estante estará em sua casa amanhã mesmo.
Fiquei sem palavra. Se não era 127, qual número seria? Não era 227, disso
tinha certeza… E o Joaquim ao telefone:
— Qual o número, seu Ferreira?
— É 217, seu Joaquim… É isso, 217.
— Muito bem, 217. Já anotei. Amanhã terá sua estante.
Não tive. Ao chegar em casa e verificar que a estante não estava lá, conclui que havia dado de novo o número errado ao marceneiro. E corri para o telefone a fim de me desculpar.
— Seu Joaquim, é o senhor Ferreira… da estante.
— O senhor está querendo brincar comigo?
Fui tomado por um frouxo de riso, enquanto seu Joaquim, indignado, dizia que não ia mais entregar estante nenhuma, que eu fosse buscá-la, pois já era a segunda vez que subira e descera a Visconde de Pirajá, carregando aquela estante enorme, etc. etc…
Ferreira Gullar
quarta-feira, maio 24
É de se espantar
Os livreiros, no Iraque, se atrevem a deixar livros empilhados à noite nas estreitas ruas. Segundo os iraquianos, não há por que trancafiar os volumes porque " leitor não rouba e não ladrão não lê"
Biblioteca acumula 15 mil livros doados em porão
Um acervo sem tratamento de pelo menos 15 mil livros doados por pessoas e empresas à Biblioteca Mário de Andrade se acumula em uma sala fechada. As obras não foram catalogadas e nem sequer se sabe exatamente a importância de tais peças, já que não foram totalmente analisadas pela equipe técnica. Por causa do acúmulo - a sala que recebe as doações está cheia - a biblioteca determinou a suspensão do recebimento de doações no local.
A pilha de livros tem coleções inteiras doadas por grandes editoras, como Massao Ohno, Saraiva, Cosac & Naify, além do Consulado da França, Biblioteca de Shanghai e até da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Até mesmo uma doação de livros do arquivo pessoal do jornalista Elio Gaspari feita em 2013 ainda está sem catalogar e segue indisponível ao público desde então.
“Com essa grande quantidade de títulos acumulados que temos, levaria alguns anos para terminar”, disse ao Estado o supervisor de acervo da Mário de Andrade, Henrique Ferreira. A Secretaria Municipal da Cultura estima em dois anos o prazo para catalogar e disponibilizar ao público todas as obras. A biblioteca tem cerca de 350,3 mil livros catalogados.
A Mário de Andrade, biblioteca mais importante da cidade e segunda maior do País, é a unidade que mais concentra doações de livros na capital, embora não haja uma estimativa oficial de quantas obras foram recebidas. Os livros são analisados na chegada e, caso constatado que a biblioteca já os possui em bom estado, são encaminhados a alguma das 54 bibliotecas da rede municipal.
O secretário de cultura André Sturm põe a responsabilidade do problema gestão do ex-prefeito Fernando Haddad. “Quando chegamos aqui, achamos uma pilha de livros jogados em um porão. Não se cataloga um livro recebido por doação na Mário de Andrade há pelo menos dois anos”, disse à reportagem. Já a gestão Haddad fala em desconhecimento do problema e descumprimento de ordem por parte dos servidores.
A pilha de livros tem coleções inteiras doadas por grandes editoras, como Massao Ohno, Saraiva, Cosac & Naify, além do Consulado da França, Biblioteca de Shanghai e até da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Até mesmo uma doação de livros do arquivo pessoal do jornalista Elio Gaspari feita em 2013 ainda está sem catalogar e segue indisponível ao público desde então.
“Com essa grande quantidade de títulos acumulados que temos, levaria alguns anos para terminar”, disse ao Estado o supervisor de acervo da Mário de Andrade, Henrique Ferreira. A Secretaria Municipal da Cultura estima em dois anos o prazo para catalogar e disponibilizar ao público todas as obras. A biblioteca tem cerca de 350,3 mil livros catalogados.
A Mário de Andrade, biblioteca mais importante da cidade e segunda maior do País, é a unidade que mais concentra doações de livros na capital, embora não haja uma estimativa oficial de quantas obras foram recebidas. Os livros são analisados na chegada e, caso constatado que a biblioteca já os possui em bom estado, são encaminhados a alguma das 54 bibliotecas da rede municipal.
O secretário de cultura André Sturm põe a responsabilidade do problema gestão do ex-prefeito Fernando Haddad. “Quando chegamos aqui, achamos uma pilha de livros jogados em um porão. Não se cataloga um livro recebido por doação na Mário de Andrade há pelo menos dois anos”, disse à reportagem. Já a gestão Haddad fala em desconhecimento do problema e descumprimento de ordem por parte dos servidores.
segunda-feira, maio 22
A tragédia dos livros
Este era o único aspecto trágico dos livros: eles mudavam as pessoas. Mas não as realmente más. Essas não se tornavam pais melhores, maridos melhores, amigos melhores. Continuavam sendo tiranos, torturavam seus funcionários, filhos e cães, eram odiosos nas pequenas coisas e covardes nas grandes, e se rejubilavam com o constrangimento das vítimas.
Karen Kinser |
— Os livros eram meus amigos — disse Catherine … — Acho que aprendi todos os meus sentimentos com os livros. Neles amei mais, sorri mais e aprendi mais do que em toda a minha vida sem leitura
Nina George, A livraria mágica de Paris
domingo, maio 21
Frases curtas, ideias simples
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Não era um poeta cabeça de vento como os outros. Tinha emprego na bolsa e terras no Parnaso.
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O que a vida merece mesmo de nós é ou o sarcasmo ou a chacota. E, no entanto, nós lhe oferecemos poesia.
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As maneiras de enaltecer o amor são tantas quantos os modos de maldizê-lo.
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Estamos tão escaldados com falsificações que, se uma estrela nos cair no quintal, a primeira coisa que faremos será cheirá-la.
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A pieguice surge quando a tristeza escolhe para si as metáforas mais cafonas.
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Uma flor faz mais sentido quando interrogada pelo vento.
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Um haicai pesa menos que o sonho de um morto.
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E quem defende os interesses das categorias gramaticais?
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Terminado o poema, o concretista o apalpa: lindo.
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Um haicai é uma perfeição instantânea, um milagre da concisão.
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Era um daqueles poetas românticos que apanhavam no próprio jardim as flores que punham na lapela.
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Vasculhou a cidade e não encontrou onde tirar xérox de sua querida cornucópia.
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Fazer poesia pode dar, a quem a faz, certa sensação de importância, embora ninguém mais note.
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Provérbios costumam ser tão verossímeis que se isentam de apresentar seu certificado no departamento da verdade.
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Uma das coisas que envelhecem mais rapidamente são as reformas ortográficas.
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Se valesses alguma coisa, não achas que alguém já teria dito?
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Na sessão, um espírito o chamou de tu, e ele pensou estar falando com Fernando Pessoa.
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Saibam os leitores que não preciso fazer nenhum esforço para soar triste. Quem me deu este papel na peça sabia o que estava fazendo.
Raul Drewnick
Mais vendido para outros venderem
sábado, maio 20
Em 2527
No futuro, a obra literária será apresentada sob forma de essências em frasquinhos ou de alguma especial eletricidade acumulada em bobinas. Sorvendo a essência ou pondo-se em contato com o fluido, o leitor terá, desdobrado na tela da imaginação, o romance que o autor enfrascou ou acumulou, e sentirá as mesmas emoções que o romancista sentiu.
Já em nossos tempos ao álcool, o ópio e outras drogas produzem visões e deliciosos estados d'alma. Indeterminados, porém, sem controle possível. No futuro, não. A seriação das imagens será perfeitamente ordenada pelo jogo dos estímulos..
Não se dirá cmo hoje: li um romance e sim - cheirei.
- Marieta, onde pôs você o Professor Jeremias que estive cheirando ontem?
- Caiu das mãos da Valéria e quebrou-se.
- Mande à farmácia comprar outro. E mais uns novos, Vida Ociosa, Condenados, por exemplo.
- Fluido ou comprimido?
- Em comprimidos. Com estas cridas, impossível uma biblioteca fluida...
Monteiro Lobato
sexta-feira, maio 19
Biblioteca digital de Obama começa a ser revelada em Chicago
O Centro Presidencial Obama deve ser mais que uma simples biblioteca presidencial. As primeiras imagens e detalhes do projeto indicam uma proposta inovadora — e não apenas arquitetonicamente. O centro tem tudo para ser um fator de revitalização da área sul de Chicago, uma das mais pobres da cidade, e base política para sonhos futuros de Barack e Michelle. Os estudos indicam que ele deverá ser inaugurado em 2021 e vai alterar uma das principais vias da cidade.
“O Centro Presidencial Obama será um centro de trabalho e de vida, um projeto em andamento no qual criaremos, juntos, o que significa ser um bom cidadão no século XXI”, afirma a página que apresenta os primeiros traços do projeto, que contará com um museu, uma biblioteca, um centro cívico, salas de aula e local para convenções.
A arquitetura ousada integrará três prédios — biblioteca, fórum e museu, este último o maior deles com 55 metros, ou o equivalente a 18 andares, que servirá como um “farol” para todo o complexo com a natureza na região, com parques e jardins interligados.
Não há ainda previsão de custo total da obra, que será paga com doações para a atividade sem fins lucrativos criada pelo casal Obama.
O desenho elaborado por Todley Billie Tsien Arquitetos (TWBTA) prevê muitas áreas abertas, tetos com terraços paisagísticos e uma perfeita integração com o Jackson Park, além de possuir as mais elevadas certificações ambientais. A ideia é permitir que o centro leve mais pessoas para o parque, sobretudo crianças, e que permita mais que as atividades naturais de uma biblioteca presidencial — ou seja, não deve ficar limitado a pesquisas históricas.
Esta será a primeira biblioteca presidencial sem papeis: todo o acervo será digitalizado. E, além disso, terá atividades de pesquisa, estudo e apoio a lideranças jovens, para mudar a cidadania e o futuro político dos EUA. Sobretudo da população mais pobre e negra — concentrada nesta região da cidade —, embora alguns líderes comunitários quisessem que o centro presidencial ficasse ainda mais no sul da cidade, em uma região mais complicada socialmente.
— Mais que um biblioteca ou um museu, queremos um centro vivo para incentivar projetos inovadores para a cidade, o país e o mundo — disse o ex-presidente na semana passada, ao apresentar as linhas gerais do seu centro. — Não é apenas um edifício, não é apenas um parque. Esperamos que seja um centro onde todos possamos ver um futuro melhor para o sul de Chicago.
Leia mais
É de pequeno...
O primeiro livro que ganhei na vida e li foi Alice no país das maravilhas, uma edição da Companhia Editora Nacional, com tradução assinada pelo Monteiro Lobato. Ganhei esse livro no dia do meu aniversário de 5 anos. Já sabia ler, tinha aprendido com a minha mãe, lendo jornais. Por acaso, lendo a coluna do Nelson Rodrigues, “A vida como ela é”.
Então aos 5 anos eu era capaz de ganhar um livro de presente, ler esse livro e gostar tanto que, dali uma semana ou duas, pedi ao meu pai para comprar um outro título. Ele me levou numa livraria e comprei Tarzan, o filho das selvas, uma edição linda, também da Companhia Editora Nacional, que era uma editora muito popular na época. Isso foi exatamente há 64 anos. Desde então eu não evoluí nada, continuo lendo, acumulando e me cercando de livros
Ruy Castro
quinta-feira, maio 18
Maldita profecia
Autora canadense escreve novo prefácio para 'O Conto da Aia', sobre uma ditadura anti-feminista. Texto é base de série com mesmo nome original, 'The Handmaid's Tale', que ainda não estreou no BrasilNa primavera de 1984 comecei a escrever um romance que inicialmente não ia se chamar O Conto da Aia. Escrevi à mão, quase sempre em uns cadernos amarelos com pauta, e depois transcrevia meus rabiscos quase ilegíveis com uma gigantesca máquina de escrever alugada, com teclado alemão.
Estava há um ou dois anos evitando enfrentar esse livro. Parecia um empreendimento arriscado. Tinha lido a fundo muita ficção científica, ficção especulativa, utopias e distopias, desde o tempo da escola, lá pelos anos cinquenta, mas nunca tinha escrito um livro desse tipo. Seria capaz?
Em 1984, a premissa principal parecia um tanto excessiva, mesmo para mim. Convenceria os leitores de que nos Estados Unidos tinha ocorrido um golpe de Estado que transformou a democracia liberal até então existente em uma ditadura teocrática que levava tudo ao pé da letra? No livro, a Constituição e o Congresso não existem mais; a República de Gilead se levanta sobre os fundamentos das raízes do puritanismo do século XVII, que sempre estiveram sob a América moderna que pensávamos conhecer.
No livro, a população está em declínio por causa da poluição ambiental e diminui a capacidade de ter filhos. Como nos regimes totalitários – ou em qualquer sociedade radicalmente hierarquizada –, a classe dominante monopoliza tudo que tem algum valor e a elite do regime consegue dividir entre si as fêmeas férteis como Aias. Isso tem um precedente bíblico na história de Jacó, suas duas esposas, Raquel e Lia, e as duas empregadas delas. Um homem, quatro mulheres e doze descendentes que as criadas não podiam reivindicar. Pertenciam às esposas.
Ao longo dos anos, O Conto da Aia adotou muitas formas diferentes. Foi traduzido a 40 línguas, ou talvez mais. Em 1989, foi adaptada ao cinema. Foi uma ópera e um balé. Está sendo feita uma graphic novel. E logo vai estrear uma série de televisão.
Participei nas filmagens desta última com uma pequena participação. É uma cena na qual as Aias recém-contratadas são submetidas a uma lavagem cerebral, no estilo praticado pelos Guardas Vermelhos. Devem aprender a renunciar a suas antigas identidades, a assimilar o lugar e as obrigações que correspondem, a entender que não têm nenhum direito real, mas que vão obter proteção, até certo ponto, desde que sejam capazes de se conformar e ter baixa estima para aceitar o destino que lhes é atribuído sem se rebelar ou fugir.
Ilustração de Anna e Elena Balbusso para a edição da The Folio Society |
Embora seja apenas uma série de TV, a cena me produziu um choque horrível. Era muito parecido, demais, com a história. Sim, as mulheres se unem para atacar outras mulheres. Sim, acusam as outras para se livrarem delas: vemos com absoluta transparência na era das redes sociais, que tanto favorecem a formação de enxames. Sim, aceitam encantadas situações que lhes dão poder sobre outras mulheres, mesmo – e talvez especialmente – em sistemas que no geral concedem escasso poder às mulheres: no entanto, todo poder é relativo e em tempos difíceis é evidente que ter pouco é melhor do que não ter nenhum. Algumas das Tias que exercem o controle são verdadeiras crentes e acham que estão fazendo um favor às Aias: pelo menos não foram enviadas para limpar resíduos tóxicos; pelo menos, neste mundo novo feliz, ninguém vai violá-las, ou não exatamente, ou pelo menos quem as violar não é um desconhecido. Entre as Tias algumas são sádicas. Outras são oportunistas. E serve para elas pegar algumas das reivindicações favoritas do feminismo de 1984 – como as campanhas contra a pornografia e a exigência de maior segurança contra os ataques sexuais – e usá-los em benefício próprio. Como dizia: a vida real.
O que me leva às três perguntas que me fazem com frequência. A primeira: O Conto da Aia é um romance feminista? Se isso significa que é um tratado ideológica no qual todas as mulheres são anjos ou estão vitimizadas e, portanto, perderam a capacidade de escolher moralmente, não. Se quer dizer que é um romance no qual as mulheres são seres humanos e além disso são interessantes e importantes, e o que acontece com elas é crucial para o tema, a estrutura e o enredo do livro... Então, sim. Nesse sentido, muitos livros são “feministas”.
Por que são interessantes e importantes? Porque na vida real as mulheres são interessantes e importantes. Não são um subproduto da natureza, não representam um papel secundário no destino da humanidade, e todas as sociedades souberam disso. Sem mulheres capazes de dar à luz, a população humana seria extinta. Por isso as violações em massa e o assassinato de mulheres, garotas e meninas foi uma característica comum das guerras genocidas, ou de qualquer ação destinada a subjugar e explorar uma população. O controle das mulheres e seus descendentes foi a base de todo regime repressivo do planeta. Napoleão e sua “bucha de canhão”, a escravidão e a mercadoria humana, uma prática eternamente renovada: ambos se encaixam aqui. Teríamos que perguntar àqueles que promovem a maternidade forçada: Cui bono? Quem se beneficia? Às vezes um setor, às vezes, outro. Nunca ninguém.
A segunda: O Conto da Aia é um romance contra a religião? Mais uma vez, depende do que se quer dizer. É verdade, um grupo de homens autoritários assume o controle e tenta estabelecer uma versão extrema do patriarcado no qual as mulheres (como os escravos americanos no século XIX) estão proibidos de ler. Mais ainda, não podem ter nenhum controle sobre o dinheiro ou trabalhar fora de casa. O regime usa símbolos bíblicos, como, sem dúvida, faria qualquer regime autoritário que quisesse dominar os Estados Unidos.
As roupas recatadas das mulheres em Gilead vêm da iconografia religiosa ocidental: as Esposas usam o azul da pureza, da Virgem Maria; as Aias usam vermelho pelo sangue do parto, mas também por Maria Madalena. Além disso, o vermelho é mais fácil de ver se você quiser fugir. Muitos regimes totalitários recorreram à roupa – tanto proibindo alguns itens, como obrigando a usar outros – para identificar e controlar as pessoas – pensemos nas estrelas amarelas, e no roxo dos romanos –, e em muitos casos se esconderam atrás da religião para governar. Assim é muito mais fácil apontar os hereges.
No livro, a religião dominante se ocupa de conseguir o controle doutrinário e consegue aniquilar as denominações religiosas que são familiares. Como os bolcheviques destruíram os mencheviques para eliminar a concorrência política, e as várias facções dos Guardas Vermelhos lutaram entre si até a morte, católicos e batistas se transformam em objeto de identificação e aniquilação. Os quakers passaram para a clandestinidade e montaram uma rota de fuga para o Canadá. Então, o livro não é contra a religião. É contra o uso da religião como uma fachada para a tirania: são coisas muito diferentes.
O Conto da Aia é uma previsão? É a terceira pergunta que costumam me fazer com mais frequência, à medida que certas forças da sociedade norte-americana ocupam o poder e aprovam decretos incorporando o que sempre tinham dito que queriam fazer, mesmo em 1984, quando comecei a escrever o romance. Não, não é. Digamos que é uma antiprevisão: se este futuro pode ser descrito em detalhe, talvez não chegue a ocorrer. Mas não podemos confiar muito nessa ideia bem-intencionada.
O Conto da Aia baseou-se em muitas facetas diferentes: execuções grupais, leis suntuosas, queima de livros, o programa Lebensborn da SS e o roubo de crianças na Argentina pelos generais, a história da escravidão, a história da poligamia nos Estados Unidos... A lista é longa.
Mas falta uma forma literária à qual não mencionei: a literatura testemunhal. Offread registra sua história apenas como pode; depois, esconde-a com a confiança de que, com o passar dos anos, será descoberta por algum ser livre, capaz de entender e compartilhar. É um ato de esperança: toda história pressupõe um futuro leitor. Robinson Crusoé mantinha um diário. Também Samuel Pepys, Roméo Dallaire e Anne Frank.
Depois das recentes eleições nos Estados Unidos, proliferam medos e ansiedades. Dá a impressão de que as liberdades civis básicas estão em perigo, também muitos dos direitos conquistados pelas mulheres nas últimas décadas, mesmo ao longo dos séculos passados. Neste clima de divisão, em que parece estar crescendo a projeção de ódio contra muitos grupos e extremistas de toda denominação expressam seu desprezo às instituições democráticas, temos a certeza de que, em algum lugar, alguém – muitas pessoas, ouso dizer – está anotando tudo o que acontece a partir de sua própria experiência. Ou talvez recordem e escrevam mais tarde, se puderem.
Suas mensagens ficarão escondidas e reprimidas? Vão aparecer, séculos mais tarde, em uma casa velha, dentro de uma parede Vamos manter a esperança de que não chegaremos a isso. Eu confio que isso não vai acontecer.
A morte, minha vizinha
Embora na minha infância morássemos em um cortiço na Vila Teresa, em Cataguases, nem por isso minha mãe deixou de cultivar um minúsculo jardim no quadrado existente entre a parede da cozinha e o muro que delimitava nosso lugar no mundo. Depois, quando mudamos para a casa própria, no Paraíso, com amplo quintal onde cultivávamos pés de frutas, ela estendeu o domínio das flores e das folhagens: não havia espaço vazio que não fosse tingido com rosas, margaridas, lírios, amores-perfeitos, antúrios, copos-de-leite, crisântemos, gardênias, girassóis, calêndulas, gerânios, jasmins.
De minha mãe não herdei joias, imóveis ou dinheiro, mas tudo o mais, inclusive o gosto por bichos e plantas. Desde que mudei para o apartamento onde hoje moro, há 15 anos, construí, pouco a pouco, um jardim na lateral do corredor externo – afora os outros inúmeros vasos que mantenho dentro de casa, entremeando as estantes abarrotadas de livros. Colorido e cheiroso, agradava aos olhos e aos narizes de todos aqueles que tive o privilégio de receber em visitas, curtas ou longas, sempre prazenteiras.
Na primeira semana deste maio infindo, o condomínio recebeu um comunicado do Corpo de Bombeiros anunciando que teríamos que liberar a área do corredor por razões de segurança, dando-nos um curtíssimo prazo para efetuar a desocupação. Como iria me ausentar por uns dias, viajando para palestras e conferências, rapidamente espalhei as plantas pelos cômodos para, na volta, pensar em uma solução para o problema – o “problema” é que elas não cabem todas decentemente dentro de casa. Não preciso dizer que a tristeza empoleirou em minhas costas, afinal o jardim evocava a memória de minha mãe, nunca suficientemente pranteada.
No corredor adjacente, minha vizinha, V., também cultivava um jardim. Por exigência da minha atividade, pouco permaneço em São Paulo, e por isso nosso convívio esparso. Mas, quando nos encontrávamos, trocávamos ós de admiração pelas flores e folhagens um do outro. Há tempos, no entanto, não a via, pois ela adoeceu e começou a passar longas temporadas internada em hospitais. G., a diarista, cuidava do jardim e sempre me informava sobre o estado de V., que parecia estável, mas incontornável.
No dia em que recebemos o comunicado do Corpo de Bombeiros, encontrei com G. e disse que lamentava profundamente ter que me desfazer do jardim. Ela me olhou e disse, Pois é, nem sei como falar sobre isso com a dona V. Quando vou visitá-la, a primeira coisa que ela faz é perguntar pelas plantas. Elas são tudo para a dona V. Nos despedimos, fiz a mala, viajei para Poços de Caldas, Juiz de Fora, Rio de Janeiro e Niterói, terminando a jornada em Cataguases, onde acompanhei Michael Kegler, tradutor alemão que tornou-se grande amigo, em visita de reconhecimento do palco privilegiado de minhas histórias. De regresso, ao entrar no prédio, o zelador me avisou, pesaroso, que V. havia morrido no dia mesmo em que terminava o prazo para a liberação dos corredores.
Envelheço e cada vez mais sinto imensa necessidade de arrumar uma maneira de manter plantas, bichos e amigos vivos e próximos... O tempo foge...
De minha mãe não herdei joias, imóveis ou dinheiro, mas tudo o mais, inclusive o gosto por bichos e plantas. Desde que mudei para o apartamento onde hoje moro, há 15 anos, construí, pouco a pouco, um jardim na lateral do corredor externo – afora os outros inúmeros vasos que mantenho dentro de casa, entremeando as estantes abarrotadas de livros. Colorido e cheiroso, agradava aos olhos e aos narizes de todos aqueles que tive o privilégio de receber em visitas, curtas ou longas, sempre prazenteiras.
Frank Bramley (English, 1857-1915) |
No corredor adjacente, minha vizinha, V., também cultivava um jardim. Por exigência da minha atividade, pouco permaneço em São Paulo, e por isso nosso convívio esparso. Mas, quando nos encontrávamos, trocávamos ós de admiração pelas flores e folhagens um do outro. Há tempos, no entanto, não a via, pois ela adoeceu e começou a passar longas temporadas internada em hospitais. G., a diarista, cuidava do jardim e sempre me informava sobre o estado de V., que parecia estável, mas incontornável.
No dia em que recebemos o comunicado do Corpo de Bombeiros, encontrei com G. e disse que lamentava profundamente ter que me desfazer do jardim. Ela me olhou e disse, Pois é, nem sei como falar sobre isso com a dona V. Quando vou visitá-la, a primeira coisa que ela faz é perguntar pelas plantas. Elas são tudo para a dona V. Nos despedimos, fiz a mala, viajei para Poços de Caldas, Juiz de Fora, Rio de Janeiro e Niterói, terminando a jornada em Cataguases, onde acompanhei Michael Kegler, tradutor alemão que tornou-se grande amigo, em visita de reconhecimento do palco privilegiado de minhas histórias. De regresso, ao entrar no prédio, o zelador me avisou, pesaroso, que V. havia morrido no dia mesmo em que terminava o prazo para a liberação dos corredores.
Envelheço e cada vez mais sinto imensa necessidade de arrumar uma maneira de manter plantas, bichos e amigos vivos e próximos... O tempo foge...
terça-feira, maio 16
Crónica da meia-noite
Lojas de bairro fechadas, apartamentos para venda, uma soturnidade que nos tolhe, nos embaraça e entristece quando passamos pelas ruas de Lisboa. Parte da minha juventude decorreu aqui e ali, conheço a cidade como poucos. Até pelo cheiro eu sabia onde estava. Anos substanciais, que me marcaram definitivamente, passei-os neste bairro, outrora de jornais, agora de bares e de lojas de modas. Há algo de absurdo nestas alterações, algo que nos diz da dolorosa impressão que estoutro tempo nos causa. Perguntava, há dias, um leitor de jornal: "Mas as coisas estão melhores?" Digo sempre que o nosso tempo é aquele em que vivemos, mas não é bem assim; sorrio para mim próprio, mas não é bem assim.
Cá em casa, todos dormem. Escrevo na meia-noite e em minha frente estão os retratos dos que me são queridos e que, de uma forma ou de outra, iluminaram a minha vida. Agora, é o meu neto, o Francisco, que me olha com malícia e atenção. Digo-lhe, dizendo para mim: força, miúdo, isto é difícil, ah!, tão difícil, mas vale a pena. O dia foi a rotina vulgar: comprei os jornais, sentei-me na leitaria a lê-los, a leitaria possui uma enorme vitrine e vêem-se as pessoas caminhar para os seus destinos certos. Às vezes, escrevo nesta mesa. As pessoas olham-se, discretas, quando reparo cumprimentam-me com um gesto e sorriem.
Por exemplo: se nunca me cansei com o que escrevo, nunca me cansei com o que leio. Sou um leitor permanentemente acicatado pela curiosidade. E aprecio indicar títulos de livros e nomes de autores que me estimulam. Porém, quando leio depoimentos nos jornais acho as pessoas que falam muito anchas de si mesmas, e dizem coisas absurdas e tolas, presumindo que são importantes. Depois, penso: sempre foi assim: os mais novos a pensar que descobriram o mundo. É assim e ainda bem que assim é e assim sempre será. As rotações são iguais à de sempre, as ideias de salvação do mundo animam os melhores de todas as juventudes, uma geração vai e uma geração vem, como ensina o Eclesiastes e A Isaura está postada no umbral: "Vem deitar-te. É tarde."
Baptista-Bastos, Tempo de Combate
Cá em casa, todos dormem. Escrevo na meia-noite e em minha frente estão os retratos dos que me são queridos e que, de uma forma ou de outra, iluminaram a minha vida. Agora, é o meu neto, o Francisco, que me olha com malícia e atenção. Digo-lhe, dizendo para mim: força, miúdo, isto é difícil, ah!, tão difícil, mas vale a pena. O dia foi a rotina vulgar: comprei os jornais, sentei-me na leitaria a lê-los, a leitaria possui uma enorme vitrine e vêem-se as pessoas caminhar para os seus destinos certos. Às vezes, escrevo nesta mesa. As pessoas olham-se, discretas, quando reparo cumprimentam-me com um gesto e sorriem.
Sam Kalda |
Em tempos, o Augusto Abelaira vinha para aqui escrever. Já estava muito mal, perdera o cabelo quase todo, mas mantinha aquele ar decente e bondoso que o acompanhou até ao fim. "Fui apanhado de lado", disse-me certa tarde. Respondi-lhe que, de um modo ou de outro, todos somos apanhados de lado, e que a vida é, como diz a Isaura, um constante processo de reconstrução. A doença espreita-nos e todos padecemos de qualquer coisa que nos aflige.
Ontem, fui gravar um depoimento sobre o Alves Redol, que fez cem anos, como o Manuel da Fonseca, sobre a data do seu nascimento (A frase não está muito correcta, mas é assim que a quero, desculpem). O realizador do documentário marcara o Jardim da Estrela como local de encontro. Acabámos por filmar no terraço da casa de um amigo dele, uma beleza de casa, com uma panorâmica do Tejo como há muito não via. Fui de táxi. O homem do táxi, largos ombros, cabeça teutónica, falou das coisas do mundo. "Que idade tem o senhor?" Disse-lhe a minha idade. Ele sorriu todo feliz. "A idade do condor." Percebeu que eu não percebera. Esclareceu: "Com dor; com dor todo o dia e por todos os lados. Com dor." Rimos. O homem pusera-me quase jubiloso. Pensei: "um dia destes tenho de escrever o episódio."
Agora, é meia-noite e sinto o respirar pausado da minha gente. Doem-me um pouco as pernas. Nestes últimos tempos fatigo-me com irremediável facilidade. A idade do condor. Não é relevante. Fiz sempre o trabalho que quis fazer. Batuco prosa há um ror de anos, e creio, modestamente creio, que algumas vezes acertei. Acertei e fiquei muito feliz. Direi, mesmo, que sou um homem feliz. Casado, bem casado, três filhos, e há meses, este neto sorridente, rodeado de amor e de ternura. É muito bom ser avô. Você verá, quando o for.
Numa entrevista recente perguntaram-me se a morte me assustava, tendo em conta a minha idade. Não é pergunta que se faça; ou é? Não sei bem, mas a verdade é que não me molestou.
Respondi que não pensava nessas coisas porque sentia que iria viver muitos mais anos. E iria viver muitos mais anos porque trabalhava, trabalhei quase sempre, num trabalho de que gosto e que me preenche.
Ontem, fui gravar um depoimento sobre o Alves Redol, que fez cem anos, como o Manuel da Fonseca, sobre a data do seu nascimento (A frase não está muito correcta, mas é assim que a quero, desculpem). O realizador do documentário marcara o Jardim da Estrela como local de encontro. Acabámos por filmar no terraço da casa de um amigo dele, uma beleza de casa, com uma panorâmica do Tejo como há muito não via. Fui de táxi. O homem do táxi, largos ombros, cabeça teutónica, falou das coisas do mundo. "Que idade tem o senhor?" Disse-lhe a minha idade. Ele sorriu todo feliz. "A idade do condor." Percebeu que eu não percebera. Esclareceu: "Com dor; com dor todo o dia e por todos os lados. Com dor." Rimos. O homem pusera-me quase jubiloso. Pensei: "um dia destes tenho de escrever o episódio."
Agora, é meia-noite e sinto o respirar pausado da minha gente. Doem-me um pouco as pernas. Nestes últimos tempos fatigo-me com irremediável facilidade. A idade do condor. Não é relevante. Fiz sempre o trabalho que quis fazer. Batuco prosa há um ror de anos, e creio, modestamente creio, que algumas vezes acertei. Acertei e fiquei muito feliz. Direi, mesmo, que sou um homem feliz. Casado, bem casado, três filhos, e há meses, este neto sorridente, rodeado de amor e de ternura. É muito bom ser avô. Você verá, quando o for.
Numa entrevista recente perguntaram-me se a morte me assustava, tendo em conta a minha idade. Não é pergunta que se faça; ou é? Não sei bem, mas a verdade é que não me molestou.
Respondi que não pensava nessas coisas porque sentia que iria viver muitos mais anos. E iria viver muitos mais anos porque trabalhava, trabalhei quase sempre, num trabalho de que gosto e que me preenche.
Por exemplo: se nunca me cansei com o que escrevo, nunca me cansei com o que leio. Sou um leitor permanentemente acicatado pela curiosidade. E aprecio indicar títulos de livros e nomes de autores que me estimulam. Porém, quando leio depoimentos nos jornais acho as pessoas que falam muito anchas de si mesmas, e dizem coisas absurdas e tolas, presumindo que são importantes. Depois, penso: sempre foi assim: os mais novos a pensar que descobriram o mundo. É assim e ainda bem que assim é e assim sempre será. As rotações são iguais à de sempre, as ideias de salvação do mundo animam os melhores de todas as juventudes, uma geração vai e uma geração vem, como ensina o Eclesiastes e A Isaura está postada no umbral: "Vem deitar-te. É tarde."
Baptista-Bastos, Tempo de Combate
segunda-feira, maio 15
Leitor, um ser essencial
Certa vez me perguntaram: “Ruy, você faz livros e trabalhou a vida inteira como jornalista, sente-se mais jornalista ou escritor?”. Respondi que as duas coisas, dependendo do instrumento que eu estou tocando no momento.
Mas trocaria essas duas atividades por uma outra, muito mais importante para mim, que é ser leitor. Eu deixaria de ser escritor tranquilamente para ser apenas leitor, se pudesse. Hoje mesmo dei um pulo num sebo aqui em Curitiba, o Fígaro, e o Paulo, dono do local, pediu que eu autografasse um livro para a loja. Escrevi o seguinte: “Quando morrer, não quero ir pro céu, quero vir pro Fígaro”. E é verdade, após a morte, eu iria para um sebo, para uma biblioteca ou para qualquer lugar que tivesse livros, jornais ou até mesmo bula de remédio para ler.Ruy Castro no projeto Um Escritor na Biblioteca na Biblioteca Pública do Paraná, que completou 160 anos em março
domingo, maio 14
Leitura de ouvido
Assim começa o livro...
O relógio deu duas e meia. No pequeno escritório dos fundos da livraria do sr. McKechnie, Gordon - Gordon Comstock, último membro da família Comstock, aos vinte e nove anos de idade e já bastante deteriorado - estava debruçado em sua mesa, abrindo e fechando uma carteira de cigarros Player's Weights com o polegar.
As batidas de outro relógio, mais distantes - vindas do Prince of Wales, do outro lado da rua -, vibraram no ar estagnado. Gordon fez um esforço, ergueu-se na cadeira e guardou sua carteira de cigarros no bolso interno do paletó. Estava morrendo de vontade de fumar. Mas só lhe restavam quatro cigarros. Hoje era quarta-feira, e ele só iria receber na sexta. E seria terrível demais ficar sem fumar a noite de hoje e mais todo o dia de amanhã.
Antecipadamente aborrecido pelas horas sem tabaco do dia seguinte, ele se levantou e rumou para a porta - uma figura miúda e frágil, de ossos delicados e movimentos nervosos. Seu paletó estava puído no cotovelo da manga direita, e o botão do meio tinha caído; as calças de flanela que comprara prontas estavam manchadas e disformes. Mesmo olhando de cima, era visível que seus sapatos precisavam de uma nova sola.
O dinheiro tilintou no bolso da calça quando ele se ergueu. E ele sabia a soma exata. Cinco pence e meio - dois pence e meio e mais um joey, a pequena moeda de três pence que todos detestavam. Fez uma pausa, tirou do bolso a miserável moeda e contemplou-a. Objeto medonho e inútil! E que imbecil ele fora de tê-la aceitado! Tinha acontecido na véspera, quando comprara cigarros. "O senhor se incomoda de receber uma moeda de três pence?", chilreara a cadelinha da caixa. E é claro que ele aceitara aquela moeda de troco. "Não, de maneira alguma!", respondera ele - imbecil, grande imbecil!
Sentiu náuseas só de pensar que tudo que lhe restava no mundo eram cinco pence e meio, três dos quais nem teria como gastar. Alguém poderia comprar alguma coisa com uma moeda de três pence? Mas se não era nem mesmo uma moeda, eis a resposta da charada. Qualquer um que tire aquela coisa do bolso fica com um absoluto ar de idiota, a menos que ela esteja perdida no meio de um punhado de outras moedas. "Quanto é?", você pergunta. "Três pence", responde a moça da caixa. E então você percorre as profundezas do seu bolso e de lá pesca aquela coisinha absurda e solitária, que se apresenta colada à ponta do seu dedo, como uma lantejoula. A moça fareja o ar. Percebe na mesma hora que são os últimos três pence que você ainda possui no mundo. Você a vê dirigir-lhe um olhar de esguelha - deve estar se perguntando se aquilo não terá sido encontrado como brinde dentro de um bolo de Natal. Você se retira da loja com o nariz para cima, e nunca mais poderá voltar. Não! Não vamos gastar nosso joey. Dois pence e meio é tudo que nos resta - dois pence e meio que precisam durar até sexta-feira.
Era a hora morta depois do almoço, quando só aparecia, se tanto, algum freguês ocasional. Ele estava a sós com sete mil livros. A salinha pequena e escura que dava para o escritório, com seu cheiro de poeira e papel envelhecido, estava cheia até o teto de livros, na maioria velhos e invendáveis. Nas prateleiras do alto, mais perto do teto, os volumes in quarto de enciclopédias extintas repousavam deitados de lado, em pilhas que lembravam caixões sepultados em valas comuns. Gordon afastou as cortinas azuis impregnadas de poeira que serviam de porta para a sala ao lado. Nesta, mais clara que a anterior, ficava a coleção de livros para empréstimo. Era uma dessas bibliotecas a dois pence sem depósito, as preferidas dos pequenos ladrões de livros. E os únicos livros que continha eram romances, claro. E que romances! Aqui também, contudo, isso era de se esperar.
Em número de oitocentos, esses romances forravam três paredes da sala até o teto, fileiras e mais fileiras de lombadas coloridas e oblongas, como se as paredes tivessem sido construídas com tijolos multicoloridos dispostos em pé. Organizados em ordem alfabética. Arlen, Burroughs, Deeping, Dell, Frankau, Galsworthy, Gibbs, Priestley, Sapper, Walpole. Gordon dirigiu-lhes um olhar de ódio inerte. Naquele momento ele detestava todos os livros, especialmente os romances. Era horrível imaginar todo aquele lixo viscoso e mal-acabado reunido no mesmo lugar. Um grande pudim, um grande pudim de banha. Oitocentas barras de pudim de banha, formando uma muralha à sua volta - uma sala-forte de tijolos de banha. A idéia era opressiva. Ele atravessou a porta aberta para a parte dianteira da loja. De passagem, ajeitou os cabelos num gesto automático. Afinal, poderia haver alguma garota do lado de fora da porta de vidro. Gordon não tinha uma aparência muito impressionante. Mal chegava a um metro e setenta de altura, e como geralmente seus cabelos estavam mais compridos do que deviam, tinha-se a impressão de que sua cabeça era grande demais para o corpo. Ele nunca era totalmente indiferente à sua baixa estatura. Quando percebia que alguém olhava para ele, erguia-se numa postura muito ereta, o peito projetado para a frente, com um ar de atrevimento que às vezes enganava as pessoas mais ingênuas.
As batidas de outro relógio, mais distantes - vindas do Prince of Wales, do outro lado da rua -, vibraram no ar estagnado. Gordon fez um esforço, ergueu-se na cadeira e guardou sua carteira de cigarros no bolso interno do paletó. Estava morrendo de vontade de fumar. Mas só lhe restavam quatro cigarros. Hoje era quarta-feira, e ele só iria receber na sexta. E seria terrível demais ficar sem fumar a noite de hoje e mais todo o dia de amanhã.
O dinheiro tilintou no bolso da calça quando ele se ergueu. E ele sabia a soma exata. Cinco pence e meio - dois pence e meio e mais um joey, a pequena moeda de três pence que todos detestavam. Fez uma pausa, tirou do bolso a miserável moeda e contemplou-a. Objeto medonho e inútil! E que imbecil ele fora de tê-la aceitado! Tinha acontecido na véspera, quando comprara cigarros. "O senhor se incomoda de receber uma moeda de três pence?", chilreara a cadelinha da caixa. E é claro que ele aceitara aquela moeda de troco. "Não, de maneira alguma!", respondera ele - imbecil, grande imbecil!
Sentiu náuseas só de pensar que tudo que lhe restava no mundo eram cinco pence e meio, três dos quais nem teria como gastar. Alguém poderia comprar alguma coisa com uma moeda de três pence? Mas se não era nem mesmo uma moeda, eis a resposta da charada. Qualquer um que tire aquela coisa do bolso fica com um absoluto ar de idiota, a menos que ela esteja perdida no meio de um punhado de outras moedas. "Quanto é?", você pergunta. "Três pence", responde a moça da caixa. E então você percorre as profundezas do seu bolso e de lá pesca aquela coisinha absurda e solitária, que se apresenta colada à ponta do seu dedo, como uma lantejoula. A moça fareja o ar. Percebe na mesma hora que são os últimos três pence que você ainda possui no mundo. Você a vê dirigir-lhe um olhar de esguelha - deve estar se perguntando se aquilo não terá sido encontrado como brinde dentro de um bolo de Natal. Você se retira da loja com o nariz para cima, e nunca mais poderá voltar. Não! Não vamos gastar nosso joey. Dois pence e meio é tudo que nos resta - dois pence e meio que precisam durar até sexta-feira.
Era a hora morta depois do almoço, quando só aparecia, se tanto, algum freguês ocasional. Ele estava a sós com sete mil livros. A salinha pequena e escura que dava para o escritório, com seu cheiro de poeira e papel envelhecido, estava cheia até o teto de livros, na maioria velhos e invendáveis. Nas prateleiras do alto, mais perto do teto, os volumes in quarto de enciclopédias extintas repousavam deitados de lado, em pilhas que lembravam caixões sepultados em valas comuns. Gordon afastou as cortinas azuis impregnadas de poeira que serviam de porta para a sala ao lado. Nesta, mais clara que a anterior, ficava a coleção de livros para empréstimo. Era uma dessas bibliotecas a dois pence sem depósito, as preferidas dos pequenos ladrões de livros. E os únicos livros que continha eram romances, claro. E que romances! Aqui também, contudo, isso era de se esperar.
Em número de oitocentos, esses romances forravam três paredes da sala até o teto, fileiras e mais fileiras de lombadas coloridas e oblongas, como se as paredes tivessem sido construídas com tijolos multicoloridos dispostos em pé. Organizados em ordem alfabética. Arlen, Burroughs, Deeping, Dell, Frankau, Galsworthy, Gibbs, Priestley, Sapper, Walpole. Gordon dirigiu-lhes um olhar de ódio inerte. Naquele momento ele detestava todos os livros, especialmente os romances. Era horrível imaginar todo aquele lixo viscoso e mal-acabado reunido no mesmo lugar. Um grande pudim, um grande pudim de banha. Oitocentas barras de pudim de banha, formando uma muralha à sua volta - uma sala-forte de tijolos de banha. A idéia era opressiva. Ele atravessou a porta aberta para a parte dianteira da loja. De passagem, ajeitou os cabelos num gesto automático. Afinal, poderia haver alguma garota do lado de fora da porta de vidro. Gordon não tinha uma aparência muito impressionante. Mal chegava a um metro e setenta de altura, e como geralmente seus cabelos estavam mais compridos do que deviam, tinha-se a impressão de que sua cabeça era grande demais para o corpo. Ele nunca era totalmente indiferente à sua baixa estatura. Quando percebia que alguém olhava para ele, erguia-se numa postura muito ereta, o peito projetado para a frente, com um ar de atrevimento que às vezes enganava as pessoas mais ingênuas.
sábado, maio 13
Os trabalhos dos escritores
Hoje, nos países que têm um mercado considerável na área do livro (não o nosso, infelizmente, que ainda é uma ervilha), o ofício de escrever já é visto como qualquer outro; em certos territórios, como os EUA, é inclusivamente muito bem pago (os autores que foram destacados na revista Granta de que aqui falei anteontem, por exemplo, devem receber adiantamentos milionários das editoras que os publicam). Nesses lugares, quase todos os autores de ficção vivem exclusivamente do que escrevem (e vivem bem); mas nem sempre foi assim e, no dia 1 de Maio, por ser Dia do Trabalhador, li num jornal espanhol um artigo muito interessante sobre os trabalhos que alguns escritores hoje conceituados tiveram de fazer para sobreviver e pagar a renda de casa quando estavam a começar. Juan Marsé, por exemplo, trabalhou desde muito jovem como ourives (e diz que isso o ajudou a ter atenção ao detalhe nas suas narrativas), enquanto Vargas Llosa foi, entre outras coisas, escritor-fantasma de novelas para uma senhora endinheirada (o que lhe terá servido certamente de inspiração para as radionovelas que aparecem em A Tia Júlia e o Escrevedor). Kafka, como se sabe, vendia seguros; Borges era bibliotecário (mas não me parece que tenha sido por precisar de dinheiro); Jack London foi caçador de baleias no Árctico; Colette trabalhou como cabeleireira e George Orwell saiu da Birmânia (onde era polícia) para ir lavar pratos em Londres. Bolaño vendeu quinquilharia e lâmpadas no México e Charles Bukowski foi carteiro durante muitos anos. Enfim, trabalhos que, pelos vistos, não prejudicaram o ofício de escritor.
sexta-feira, maio 12
Literatura sem gênero
Chris Silas Neal A escrita é, por natureza, ambígua. Portanto, ela circula pelos sexos do mundo. A escrita reflete o que nós somos. E ela não aprisiona pelos gêneros. Escrever é obrigatoriamente visitar o coração do pensamento. A mulher, embora recente no mundo canônico da cultura, é herdeira de todos os saberes humanos. Ela tem um coração tão polissêmico quanto o coração masculino. Você não fala em literatura masculina; você fala em literatura, e de preferência boa literaturaNélida Piñon
Assim começa o livro...
Esta
é a história da vida e dos sonhos de Mevlut Karataş, vendedor de boza
e de iogurte. Nascido em 1957 na fronteira ocidental da Ásia, numa aldeia pobre
que dava para um lago enevoado da Anatólia Central, aos doze anos
foi para Istambul, a capital do mundo, onde passou o resto da vida. Quando
tinha vinte e cinco anos, voltou para a província natal e de lá fugiu com
uma jovem, num estranho episódio que determinou o curso de seus dias. Voltou
para Istambul, casou-se, teve duas filhas e se pôs a trabalhar sem descanso —
vendeu iogurte, sorvete e arroz como ambulante, e exerceu o ofício de
garçom. Mas à noite nunca deixou de perambular pelas ruas de Istambul, vendendo
boza e sonhando sonhos estranhos.
Nosso
herói Mevlut era bem-apessoado, alto, forte mas esbelto. Tinha um
rosto pueril, cabelos castanho-claros, olhos vivazes e inteligentes, uma combinação
que despertava sentimentos ternos nas mulheres. O espírito de menino,
que Mevlut manteve mesmo depois dos quarenta, e o efeito que produzia
nas mulheres eram dois de seus traços fundamentais, e será útil vez por
outra lembrá-los aos leitores, para ajudar a explicar alguns aspectos da história.
Quanto ao otimismo e à cordialidade, que alguns chamariam ingenuidade, não
será preciso evocá-los, pois que evidentes. Se, como eu, meus leitores
tivessem conhecido Mevlut, iriam entender por que as mulheres nele admiravam
a beleza de menino, e veriam que não exagero só para impressionar. Com
efeito, aproveito a oportunidade para ressaltar que não há exagero em
parte alguma deste livro, que é totalmente baseado numa história real; vou
contar alguns acontecimentos insólitos que ocorreram, limitando-me a organizá- los
de modo a permitir que meus leitores os acompanhem e os entendam com
mais facilidade.
Assim,
para melhor narrar a história e os sonhos do nosso protagonista, vou
começar pelo meio, a partir do dia em que Mevlut fugiu com uma garota da
aldeia de Gümüşdere (ligada ao distrito de Beyşehir, na província de Konya e
vizinha da aldeia dele), em junho de 1982. A primeira vez que Mevlut viu a
moça com quem mais tarde fugiria foi em 1978, no casamento de Korkut, o filho
mais velho de seu tio, celebrado no bairro de Mecidiyeköy, em Istambul. Ele
mal podia acreditar que aquela jovem, então com treze anos — ainda uma
menina —, poderia corresponder a seus sentimentos. Ela era a irmã caçula
da noiva de seu primo Korkut, e até então nunca havia pisado em Istambul. Depois
disso, por três anos Mevlut lhe escreveu cartas de amor. A jovem nunca respondeu, mas Süleyman — o irmão caçula de Korkut —, que era o portador
das cartas, enchia Mevlut de esperança e o estimulava a insistir.
Agora
Süleyman ajudava de novo seu primo Mevlut, dessa vez a raptar a jovem.
Ao volante de sua caminhonete Ford, Süleyman levou Mevlut à aldeia de
sua infância. Os primos haviam bolado um plano de fuga para despistar as
pessoas: Süleyman os esperaria num lugar que ficava a uma hora de Gümüşdere,
e todos iriam imaginar que os dois pombinhos haviam fugido para
Beyşehir. Süleyman, porém, os levaria para o norte, além das montanhas, e
os deixaria na estação ferroviária de Akşehir.
Mevlut
repassou o plano mentalmente inúmeras vezes e fez duas incursões
secretas
de reconhecimento a lugares importantes como a fonte fria, o riacho
estreito, a colina coberta de matas e o quintal da casa da jovem. Meia hora
antes do combinado, ele passou pelo cemitério da aldeia, que ficava no caminho,
contemplou as lápides e rezou a Deus para que tudo desse certo. Embora
relutasse em admitir, não confiava muito no primo. E se Süleyman não
levasse a caminhonete até o local combinado, perto da fonte? Mevlut procurava
não pensar muito nisso — aqueles temores em nada o ajudariam.
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