O olhar perde-se à procura dos personagens, ora surpreso, ora recompensado.
Agora o olhar – pureza e encantamento – se perde ainda mais ao longe, mas ainda não encontra o meu.
Estou certo que notará neste todo bobo a ânsia de uma gratificação. Farei gestos de um cachorrinho à espera de osso? Será caricato demais. Afinal, outros – que não ela – perceberão e estarei ali fazendo o mais completo papel de idiota.
Todos os apaixonados parecem idiotas, estarei já apaixonado? Com alguma piedade, ela me lançará o olhar enviesado através do jogo de espelhos e aí, mosca no mel.
Estou a milímetro do delírio. Ela parece amar os livros. Amo mulheres que amam livros. Amo as mulheres que folheiam livros com dedos longos. Perfeita para fazer-me companhia nesse mundo sem razão; já não durarei muito: mereço o sorriso desse olhar. Será minha liberdade amanhã.
Abre Quincas Borba na cena da queda do carteiro: “às vezes, nem é preciso que ele caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginá-lo ou recordá-lo. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projeta-se no meio da paixão mais aborrecível, e o sorriso vem às vezes à tona da cara, leve que seja – um nada”.
Certo tédio, sorriso pálido, meio à mofa, oculta algum capricho; menos enigmático do que a Mona Lisa.
Ela vai olhar, mais do que olhar, desta vez, vai me ver e, ao ver-me, perceberá que sou mais do que um verme; sou alguém que poderá revelar-se por inteiro, o melhor companheiro, daqueles capazes de beijar-lhe os pés. Nos dias úteis e nos inúteis também. De manhã, de tarde e à noite; dedicarei a ela todo o tempo. Já não durmo bem: hemoptise.
Acendo o cigarro pela ponta errada – talvez, com esse ato falho, queira chamar atenção – e, meio desajeitado – agora sim, para chamar atenção, deliberado aceno. Como ela não desvia o olhar do maldito livro, finjo cumprimentar o amigo Olivar que passa ao largo. Tem um cacoete. Um sesto, mania que oculta alguma compulsão.
Talvez esse amigo possa gritar: Rubem! E ela afinal saberá meu nome e me revelará o dela e sairemos para um chope, talvez um chá, e seremos felizes para sempre.
Não me parece cínica. Aparenta certo desdém, talvez muito mimada pela avó; deve ser do tipo que só diz ‘tipo assim’ o tempo todo e acabará por ser enfadonha como uma mesóclise.
Prometo, no primeiro encontro, contar-lhe todos os meus segredos e, melhor, ouvirei todos os seus. Serei capaz de ouvi-la horas, concordando sempre, sorrindo sem interrompê-la uma vez. Pecado e perdição. Jogaremos cartas e ela vencerá. Mostrarei minha coleção de selos raros.
Revela alguma tristeza, esconde um desencanto, talvez desengano. Provavelmente perdeu o noivo na véspera do casamento. Recuperará a alegria de viver: não tenho ciúmes do passado.
Passeia por Balzac, folheia agora Flaubert, Madame Bovary provavelmente. Pode ser uma devassa; não haverá tédio em Tostes. Que não se aproxime da estante de Zola; Nana terá a pureza conspurcada.
Poderei dar-lhe conselhos, dissertar sobre a verdadeira felicidade. Ela agora gira os anéis dos lindos longos dedos como se os quisesse recolocar no mesmo lugar em que estão. Sou fascinado pelo enigma das mulheres que movem os anéis e mordiscam a ponta dos óculos. Pode ser psicopata e não se deve discutir com doidos.
Recitarei a passagem da enigmática mulher persa de Pitigrilli: “Não sei quem é. Senhorita? Casada? Viúva? Rouba nos hotéis? Há alguém que a mantém? Algum de seus avôs foi general em Maratona? Ou almirante em Salamina? Seu pai será produtor de vinhos em Shiraz?”
Sequer percebera os óculos... Agora que chega aos franceses, poderá olhar para esse inútil sobrevivente, que andou pensando em suicídio até que lhe caiu às mãos o Camus ali à direita: “le suicide n’est pas um remède”...
Equilibra a bolsa e a pasta. Se for advogada, azar, essas dão trabalho; já entram num relacionamento elucubrando como sair. Bem, não estou assolado em dívidas, não será a ruína: poderei deixar-lhe um bom pecúlio.
Um certo bocejo, seguramente não deve ter bons modos revelando enfados assim. Não confio em mulheres que escondem os pés em sapatos fechados; sempre estão a esconder algo mais. Acho que posso, no primeiro encontro, fazer aquela digressão sobre a estupidez da felicidade ou a fantasia do tempo. Causa sempre boa impressão.
Uma frieza sonsa sob os cabelos presos. Ela dissimula algum pecado venial, constipação, piolho, calo, unha encravada, talvez até chulé. Não exalará rosas; não é essa perfeição toda. Espero desesperado: que ela, afinal, me olhe e descubra o amor de toda uma vida. Ela, que sofreu tanta desilusão, poderá, num instante, conhecer o amor e, talvez, a paixão.
Nada: ela fecha o último livro, dá as costas e vai-se. Não tem um bom andar; é certamente paranóica.
Estou aliviado: acabo de livrar-me de mais um problema.
Eduardo Simbalista
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