As palavras iniciais de todo texto devem fazer pressentir as páginas seguintes. Pausada ou bruscamente, resumindo o argumento ou distraindo o leitor para que ele não adivinhe o desenlace, indicando o tom da narração que virá ou dando falsos indícios, se desculpando ou se vangloriando da aptidão do autor, as primeiras palavras são o gesto de reconhecimento e desafio lançados do ponto final de um livro ao leitor que inicia o percurso. Por motivos geralmente misteriosos, algumas dessas aberturas se tornam tão célebres que se transformam em lugares-comuns, enquanto outras são relegadas ao esquecimento como paixões fugazes.
Todo leitor reconhece o aterrador início de A Metamorfose, de Kafka: “Em uma manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregorio Samsa se encontrou em sua cama transformado em um monstruoso inseto”. Ninguém pode se esquecer do inapelável começo de O Contrato Social, de Rousseau: “O homem nasceu livre e por todos os lados se encontra acorrentado”. Por que lembramos do musical início de As Ruínas Circulares, de Borges (“Ninguém o viu desembarcar na unânime noite”), e não com igual facilidade “Gostávamos tanto da casa porque, além de ser espaçosa e antiga”, de A Casa Tomada de Cortázar? Talvez pelo poder do inaudito adjetivo “unânime”, bem mais memorável do que os banais, ainda que exatos, epítetos “espaçosa e antiga”. Isso sugere que talvez nos deixamos seduzir mais prontamente pelo tom dos começos do que por seus significados. “Fala-me, Musa, do varão de grande engenho” com que começa a Odisseia e “Canta, Deusa, a cólera de Aquiles” da Ilíada dependem, para que lembremos deles, e a menos que saibamos grego antigo, da tradução que escolhemos para lê-las.
Cem anos de solidão. Gabriel García Márquez. 1967. “Muitos anos depois, em frente ao pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía tinha de lembrar aquela tarde remota em que seu pai o levou a conhecer o gelo”.
Pep Boatella |
Sem levar em consideração as páginas preliminares que Cervantes escreveu para seu Dom Quixote, mesmo os que não leram o romance sabem de cor as primeiras hoje célebres palavras do primeiro capítulo. Apesar, entretanto, dos inumeráveis comentários que apareceram desde a publicação do livro em 1605 (e ainda antes, quando circulavam cópias manuscritas do livro, como provam as respostas que dá Lope a Cervantes em El Peregrino en su Patria, publicado no ano anterior), não sabemos nada de como Dom Quixote foi composto. Não conservamos um manuscrito feito por Cervantes, não sabemos quais foram seus primeiros esboços, suas dúvidas, quais outras palavras iniciais foram imaginadas e descartadas, qual foi sua inspiração inicial.
O imprescindível Francisco Rico, comentando em 1996 uma edição crítica do Dom Quixote de Rodríguez Marín, observou que a longa nota sobre aquele “lugar da Mancha de cujo nome não quero me lembrar” demonstrava a influência de “um minguado romancezinho que nem o autor nem ninguém poderia ter em conta” e não dizia nada sobre a palavra lugar, que o leitor, segundo Rico, “interpreta indefectivelmente e equivocadamente como ‘local’, ‘paragem’ e não como povoadinho”. Rico acrescenta que a emoção que podem despertar no leitor as famosas palavras de Cervantes muitas vezes precisa dispensar todo o arcabouço crítico. As primeiras palavras de uma obra prima podem prescindir de facilitadores.
Goethe dizia que, antes de escrever um livro, era preciso tê-lo “todo na cabeça” porque “um livro não começa necessariamente pela primeira frase”. Provavelmente isso é verdade, mas há algo inefável nas palavras iniciais que para um leitor é o “Abre-te, Sésamo”, de um texto. “Arma virumque cano”, “Nel mezzo del cammin di nostra vita”, “Call me Ishmael”, “Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz o é à sua maneira”, “Longtemps je me suis couché de bonne heure”, se transformaram, ao longo de nossas leituras, em uma espécie de catálogo abreviado da literatura universal canônica.
Ao prazer da citação reconhecida (da Eneida, da Divina Comédia, Moby Dick, Anna Karenina, Em Busca do Tempo Perdido) se acrescenta a emoção de iniciar uma viagem, o encanto de uma aventura compartilhada. Às vezes, a arqueologia literária nos permite entrever a pré-história de uma obra. Boccaccio nos conta que Dante começou a escrever sua comédia em latim antes de escolher a língua florentina, e que suas primeiras palavras foram “ultima regna canam” (“cantarei os reinos ultraterrenos”), no lugar de a escura selva e o caminho da vida. Sabemos, pelo manuscrito conservado na Fundação Bodmer de Genebra, que Proust imaginou as palavras “Pendant bien des années, chaque soir, quand je venais me coucher” antes de preferir a frase agora célebre. O manuscrito datilografado de Cem Anos de Solidão (conservado na Universidade do Texas) nos revela na primeira página uma única correção: a primeira frase que anuncia o descobrimento do gelo não tem alterações, mas, por outro lado, os dois parágrafos iniciais se transformam em um só.
Louis Aragón, discordando de Goethe, declara em Je n’ai jamais appris à écrire que a escrita não ocorre após a concepção da obra inteira e sim no incipit, por trás das palavras iniciais e também a partir delas. Aragón não entendia por “palavras iniciais” as que aparecem impressas na primeira linha de um livro e sim essa primeira iluminação verbal que tem um escritor, uma espécie de epifania literária a partir da qual uma obra começa a existir. “Uma história não tem começo e fim” são as primeiras palavras de O Fim da Aventura, de Graham Greene. “O instante da experiência de onde se olha para trás ou para diante é escolhido arbitrariamente”.
Esse instante pode estar fora do marco da história. Sabemos que no caso de O Médico e o Monstro, de Stevenson, esse instante foi um pesadelo, um dos muitos em que sentia que o que ele chamava de “a bruxa noturna” o prendia pela garganta e o impedia de respirar. O pesadelo não foi verbal e sim físico: a sensação de estar possuído por uma temível e aborrecida cor amarelada. Para Flaubert, seu Madame Bovary não começou com o ainda hoje misterioso “nós” que recebem em sua classe o novo aluno Charles Bovary, e sim com a breve leitura de um leve policial que lhe inspirou não só no enredo como também no estilo simples do livro. “Ontem à noite comecei meu romance”, escreve Flaubert a sua amiga Louise Colet em 20 de setembro de 1851. “Entrevejo agora dificuldades de estilo que me aterrorizam. Não é algo simples ser simples. Tenho medo de cair em um Paul de Kock ou em um Balzac chateaubrianizado”. O leitor de Madame Bovary sente o desejo de consolar Flaubert e lhe dizer que certamente isso não aconteceu.
Existem primeiras palavras de obras ilustres que não nos dizem nada da genialidade que virá ou pelo menos não nos cativam. Não acho que a leitura de “Bem, a partir de agora, Gênova e Lucca não são mais do que fazendas, domínios da família Bonaparte” faça com que o um leitor desprevenido intua que está começando a ler Guerra e Paz, e que “Um fantasma percorre a Europa” é a introdução ao Manifesto Comunista. Por outro lado, existem começos tão geniais que o leitor não tem como sentir-se decepcionado com as páginas seguintes. Por exemplo, não sei se Monsieur Teste, de Valéry, cumpre a promessa de seu admirável início, “A estupidez não é meu forte” e se As Torresde Trebizond, de Rose Macaulay, mantém ao longo do livro a sutil ironia de sua primeira frase: “Pegue meu camelo, querida’, disse minha tia Dot ao desmontar do animal ao retornar da missa”.
Nós leitores sentimos que as palavras com as quais um livro se inicia são essenciais, talvez mais do que as últimas, porque sabemos que toda conclusão tem algo de Ítaca e que chegados a ela já não há mais viagens e aventuras. A frase inicial de um texto pressagia (ainda que não revele) essa chegada ao ansiado porto. “Se serei o herói de minha própria vida, ou se esse papel caberá a outro, as páginas seguintes o dirão”, escreve Dickens no começo de David Copperfield. O mesmo pode ser dito de toda primeira palavra.
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