Em “O cão e o frasco”, Baudelaire compara seu cusco de estimação ao público leitor: o cachorro recua fungando do odor de um frasco de perfume caro mas devora com volúpia um pacote de excrementos. No final de “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, o Karenin de Tereza e Thomas adoece de câncer e, pouco antes de morrer, brinca com um croissant usando apenas a boca para mostrar aos donos que ainda tem vontade de viver. (No mesmo capítulo há a rápida aparição de um porco chamado Mefisto, criado pelo dono como se fosse um cachorro: “Obedecia a ordens faladas, era muito limpo e rosado, e andava em cima de seus pequenos tamancos como uma mulher de tornozelos grossos em cima de saltos altos”). Há os cães da Hilda Hilst; o cachorro do velho Salamano em “O estrangeiro”, do Camus; a inesquecível Baleia de “Vidas secas”, com suas costelas salientes e sonhos povoados de preás; a trágica loba de “A travessia”, do Cormac McCarthy. Isso para não entrar nos videogames (Rush em “Mega Man 3”, Deadmeat em “Fallout 3”) e filmes (não me façam falar do blue heeler de “Mad Max” no segundo filme da série).
Essas considerações oferecem uma chave de leitura, entre tantas possíveis, para o “Caninos brancos” de Jack London, que terá edição nova pela Penguin/Companhia das Letras no fim do ano, para a qual escrevi um texto de introdução que elabora as mesmas ideias desta coluna. Nesse romance marcado pela ambiguidade entre uma visão de mundo materialista/científica e a antropomorfização fantástica do ponto de vista do animal, London relata a vida de um lobo selvagem com uma herança dormente de cão domesticado. “Caninos brancos” enfrenta a sujeição forçada a sucessivos donos — o índio Grey Beaver, que inaugura a dominação do deus humano numa relação de opressão física, obediência, devoção e trabalho forçado; o desprezível Beauty Smith, que vê no lobo apenas uma máquina assassina a ser explorada economicamente; e por fim o educado e bondoso Weedon Scott, que se compadece do animal e toma para si a missão de redimi-lo, por meio do carinho e da domesticação, dos sofrimentos impostos pela Humanidade.
Uma das passagens antológicas é a sangrenta cena de luta entre o lobo e o buldogue Cherokee. É significativo que, dentre todos os inimigos selvagens e humanos que encontra, o lobo seja derrotado justamente por um buldogue, raça em que a manipulação genética do homem esbarra em limites grotescos e artificiais. O focinho achatado faz com que ele passe a vida tendo dificuldades para respirar, e o tamanho avantajado da cabeça praticamente obriga que os partos da raça sejam feitos com cirurgia cesariana.
Hoje em dia, quando a escolha por uma raça de cão tende a ser influenciada por aspectos estéticos ou modismos, é fácil esquecer que as mais de 200 raças oficiais existentes são resultado de cruzamentos selecionados ao longo de séculos, quase sempre tentando adequar os cães selvagens de outrora a tarefas específicas envolvendo caça, pastoreio, guarda ou companhia. Ao longo do tempo, muitos dos padrões de raça se descolaram dessas finalidades práticas e passaram a atender a expectativas puramente estéticas, que nem sempre levam em conta o bem-estar e a saúde do animal.
Aos diversos deuses-homens encontrados pelo lobo de Jack London em sua trajetória — o deus tirano, o deus maligno, o deus amoroso — podemos acrescentar também esse caprichoso deus criador, afeito a pactos que a natureza talvez não tenha previsto.Daniel Galera
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