segunda-feira, agosto 27

Como Monteiro Lobato transformou crítica social com 'Jeca Tatu' em sucesso literário

Conhecido por sua fina ironia, o escritor Monteiro Lobato costumava brincar ao dizer que seus livros não passavam de "umas tantas lorotas que se vendem". Agora, uma das principais "lorotas" de Lobato completa um século de vida: o livro de contos Urupês, editado em 1918, tornou famoso o personagem Jeca Tatu.

Símbolo de um país agrário, pobre, injusto e atrasado, o Jeca, que virou sinônimo do caipira ingênuo brasileiro, chega ao centenário tão atual como na época em que foi lançado, segundo os especialistas na obra de Lobato.

"Urupês pode ser um bom começo para entender o contexto histórico que levou ao Brasil de hoje. A perspectiva política em que Lobato representa o Brasil das primeiras décadas do século 20, mais criticando do que aplaudindo medidas governamentais, é extremamente atual", afirma Marisa Lajolo, professora da Universidade Mackenzie e organizadora do livro "Monteiro Lobato, Livro a Livro" (Editora Unesp, 2014), que reúne artigos que analisam a obra adulta do criador do Sítio do Picapau Amarelo.

As raízes de Jeca Tatu estão em dois artigos escritos por Monteiro Lobato para o jornal O Estado de S.Paulo, em 1914. Neles, o autor condenava as queimadas praticadas por caboclos nativos no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, onde o escritor tocava a Fazenda Buquira, herdada do avô, o Visconde de Tremembé.

Urupês é focado no personagem principal, o Jeca. O nome da obra é inspirado no urupê - um tipo de cogumelo parasitário que destrói a madeira -, e o Jeca Tatu é descrito como um caipira indolente, desleixado, sempre de cócoras e pés descalços, nenhuma educação, cultura, ambição ou mesmo disposição para melhorar de vida. Vive do que a natureza derrama aos seus pés e flerta o tempo todo com a preguiça, a cachaça e as crendices populares.Direito de

Jeca Tatu é o homem do campo real, que leva uma vida miserável nos rincões brasileiros e é praticamente ignorado pelos governantes. É lembrado pelos políticos apenas no momento do voto nas eleições. "O fato mais importante da sua vida é votar no governo. (...) Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos e que chama 'sua graça''', diz Lobato, em um dos trechos do livro.

"Pobre Jeca tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade", completou Lobato, distanciando-se da figura romantizada que havia do interior do país e os seus moradores, muito cultuada nas rodas literárias nas primeiras décadas do século 20. Nessa época, era comum escritores e estudiosos cultuarem uma vida caipira sem problemas, marcada pelo contato com a natureza e distante do cotidiano real vivido na zona rural.

"Lobato lança um olhar crítico e ácido sobre a realidade brasileira, algo incomum entre os escritores da sua época. É muito importante celebrar o centenário dessa obra demolidora, que questiona valores e não deixa pedra sobre pedra no panorama da literatura do século 20", afirma a jornalista Marcia Camargos, biógrafa de Lobato e coautora de Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia(Edições Senac).

A redenção do personagem pelo seu criador viria pouco depois em outro livro, a coletânea Problema Vital, também de 1918, onde Lobato reúne uma série de artigos escritos para a imprensa e afirma categórico: "O Jeca não é assim; está assim", deixando claro que o estado lastimável em que se encontrava o caipira era culpa do descaso das autoridades públicas.


"Há no Jeca uma mudança contínua, que evolui de acordo com a conscientização de Lobato a respeito das péssimas condições de vida do povo. Jeca é um símbolo, ele encarna o trabalhador brasileiro, sempre no lado mais frágil na luta de classes", explica Marcia Camargos, que possui pós-doutorado em História pela USP.

Outros personagens criados por Lobato posteriormente, como o Zé Brasil, em 1947, reforçam essa tese. "Em toda a obra adulta dele percebemos um crítica muito forte à política brasileira. Estamos em um momento político que torna muito oportuna a releitura de Urupês", completa a professora do Mackenzie, referindo-se às eleições de outubro.

Ao editar e imprimir Urupês por conta própria na Revista do Brasil, que comprou com o dinheiro da venda da Fazenda Buquira e transformou em uma grande editora nacional, Lobato também praticamente inaugurou o mercado editorial no Brasil. Até então, grande parte dos livros era impressa na Europa.

Desde o seu lançamento, Urupês foi um sucesso estrondoso: mais de 30 mil exemplares vendidos em sucessivas edições até 1925, sendo também traduzido para o espanhol e inglês. Em 1919, Jeca Tatu foi citado em discurso de Rui Barbosa durante sua campanha presidencial. "Por tudo isso, podemos perceber a força e a vitalidade desse livro, que veio remexer as águas mornas do então mercado editorial nacional", diz Marcia Camargos.

"Além da novidade de cenário e de personagens, os contos de Urupês são narrados em uma linguagem coloquial e cheia de lances de oralidade. É como se o leitor 'ouvisse' alguém contando histórias", explica Marisa Lajolo, sobre o sucesso da obra nos anos seguintes ao seu lançamento.

Até morrer, em 1948, Lobato abraçou diversas causas nacionalistas, como a campanha do petróleo, e lançou diversos livros adultos e infantis. Sua obra mais conhecida do público juvenil é Narizinho Arrebitado, lançado em 1921 pela Monteiro Lobato & Cia Editora e que deu início à turma do Sítio do Picapau Amarelo. Lobato tornou-se um dos escritores mais consagrados da história da literatura infantil e juvenil brasileira.

Atualmente, Urupês é editado pela Editora Globo, que prepara uma edição especial para ser lançada até o fim do ano. No ano que vem, toda a obra do escritor cai em domínio público e deve ser relançada por outras grandes editoras.

Uma nova biografia juvenil de Lobato também está sendo preparada por Marisa Lajolo junto com a historiadora Lilia Schwarcz. A previsão é que obra seja lançada em 2019 pela Companhia das Letras. "Será um livro bastante divertido, pois será como se ele contasse a vida dele. Apresentaremos Lobato como uma grande figura, e não como um nerd", adianta Marisa.

Ela revela aspectos curiosos e poucos conhecidos do escritor de Taubaté que estarão no novo livro, como o fato dele nunca ter sido bom aluno e adorar sentar junto com a "turma do fundão" nas aulas do colégio. Isso não o impediu de tornar-se um intelectual respeitado, autor ídolo das crianças, precursor da indústria editorial nacional e autor da célebre frase: "Um país se faz com homens e livros".

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