Lembrei disso ao participar em Brasília da exposição lúdica "Eu Leitor" (Biblioteca Nacional, até 23 de setembro), convidado a falar do "livro da minha vida".
Claro que o tema é uma metáfora; exceto no caso dos fanáticos que só leram um livro na vida e se reduziram a ele, é da própria natureza do livro e da leitura o prazer da diversidade e das descobertas.
Desde o primeiro livro, quando somos arrancados para sempre do casulo da pura oralidade, do instante presente e do lugar em que estamos, em várias fases da vida as leituras tendem a provocar saltos de percepção e transformação.
Pensar no "livro da vida", olhando para trás, é também escrever a si mesmo, compor a própria narrativa, tornar-se personagem, encontrar uma autoimagem.
Vânia Medeiros |
Pensei nas leituras de infância —Monteiro Lobato, Júlio Verne, Conan Doyle—, que me teriam dado a inclinação iluminista e racionalizante: a razão, a inteligência, o progresso e a cultura laica são valores inegociáveis da civilização.
A longa ressonância do século 19 encontrava um leitor típico dos anos 1950 e 1960, alimentado na incansável prosperidade do Ocidente que ressoava até mesmo aqui, nos rincões perdidos do Brasil.
Como toda literatura traz as marcas do seu tempo, estavam lá também os seus preconceitos e seu inescapável etnocentrismo, assim como daqui a um século lembrarão o didatismo militante, escolar, pedestre e tribal da literatura e cultura identitárias que domina a linguagem contemporânea.
Na virada da adolescência, aquele pequeno racionalista entrou de cabeça no irracionalismo triunfante da contracultura, cujo sonho fundamental foi a ideia (vaga) de uma liberdade total e de um paraíso a um estalo de dedos. Neste momento de passagem, esbarrei em "Lord Jim", de Joseph Conrad (1857-1924).
Pelo impacto especial daquela leitura, escolhi este romance como o "livro da minha vida". Já escrevi sobre Conrad nesta coluna, o primeiro autor globalizado que, no fio da navalha do Império Britânico, tocou em temas que prosseguem vivíssimos, do terror moderno ("O Agente Secreto") à tragédia do colonialismo ("Coração das Trevas"), para ficar em apenas dois exemplos.
O efeito imediato de "Lord Jim", na minha cachola de 16 anos, foi biográfico: em vez de entrar na universidade, o caminho que soava perfeitamente adequado, resolvi encarar a Escola de Oficiais de Marinha Mercante, mimetizando Lord Jim.
O sonho durou pouco, mas o plano era infalível: do convés do navio, orgulhoso, livre e solitário, contemplaria o mar infinito e escreveria obras-primas. Como um bônus natural da profissão, conheceria o mundo inteiro. E embutiu-se na imagem o projeto moral: certamente eu triunfaria onde o personagem de Conrad naufragou. O livro disparava uma poderosa aventura romântica.
Exatos 50 anos depois, volto a ler "Lord Jim", com o temor secreto da decepção, que felizmente não veio. O romance continua grande, mas agora numa outra direção, em entrelinhas irônicas e ambíguas que são tanto temáticas (o fracasso de Jim se faz na linha difusa entre o sonho da civilização e a emergência da barbárie), quanto morais: "Eis como ele marchava para uma grandeza tão pura como nenhuma outra conquistada por um homem". (Trad. de Mário Quintana, editora Globo)
É uma definição precisa do espírito puritano e alucinado do nosso tempo. E, literariamente, o impressionismo narrativo de Conrad abre caminho para o século 20 (o que, no Brasil, fez a obra transformadora do seu contemporâneo Machado de Assis): sem o olhar unívoco do velho narrador onisciente, só sabemos de Lord Jim pelo testemunho dos que o conheceram, e dele nos dão sua palavra incerta.
Sinto que Conrad foi uma influência forte. Talvez eu deva a ele, sem saber, a direção temática do que me agrada especialmente na literatura.
Mas, como diz o Capitão Marlow, amigo de Jim, "creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa".
Cristovão Tezza
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