– Ainda não é isso
e começo de novo até me ordenar
– Volta a fazer
Susa Monteiro |
– Diz-me esta frase aqui
de modo que repete em voz alta para ela as palavras que começam a lá estar, e surgindo devagarinho, uma após outra, da brancura do papel. Continua a avançar tacteando, continua a avançar. Espera por ti na esquina de uma página, tropeça, levanta-te, não pares. Já tens o título do livro, as cores dele, uma espécie de clima que começa a ser-te familiar: é o teu rosto de homem nu e desfigurado, o melhor que podes conseguir é o teu rosto vivo e, nele, todos os rostos da tua vida, até ao último, que só terás quando não puderes ganhá-lo porque já não és e, ao não seres, continuas. Goethe ainda: é o não chegares que faz a tua verdadeira grandeza. E então pede
– Mais luz
como ele fez ao morrer. Pede
– Mais luz
enquanto te transformas em trevas que têm a forma do teu corpo. Depois levanta-te e continua sozinho dado que ninguém te ajuda. Estás de facto sozinho. Os ruídos da casa desapareceram. A presença dos outros desapareceu. O tempo é apenas um ponteiro que não aponta nada ou aponta mil caminhos, o que é a mesma coisa. E o caminho não passa de um vazio cheio de sons que se torna necessário encontrar o único som autêntico, o som inicial, a tua voz oculta por mil ecos aliás indecifráveis ou aparentemente sem nexo. Tudo é irreal, tudo é misterioso e é necessário transformar esse tudo num fiozinho, quase invisível, de água pura. Um livro não é o que está escrito nele, é o que está escrito em ti, um livro é o teu sangue ao longo das páginas. O teu sangue, o teu olhar e o teu gesto, como queria Rilke, tornares-te um pássaro quase mortal de alma, o título que pretendes dar ao que agora escreves e encontraste numa elegia do Duíno, como um grito do Poeta enterrado na água. Não como: o grito
(sem como)
do Poeta enterrado na água e, com esse grito usado como bengala na mão, caminha ao teu próprio encontro, que é tudo aquilo que poderás achar, ou seja um infinito nada com vozes. Escuta-te. Tropeça na tua sombra e escuta-te porque tens que deixar de escutar-te para poderes ouvir. E então as palavras principiam, uma a uma, a chegar. Ninguém desce vivo de uma cruz, a não ser que já haja nascido. Ainda estás, ainda és. A tua mãe chama-te com um livro aberto nos joelhos, ela que explicava tão bem a forma como ensinara os filhos a lerem. A gente ia e vinha e ela continuava à espera, ela, uma rapariga de vinte e tal anos com todas as palavras deste mundo no colo, quietas, prontas a correrem para ti ao aprenderes-lhes os nomes. Escrever é nomear apenas, uma tentativa de ordenação do confuso vazio interior, és tu a aproximares-te de ti mesmo. Digo isto e ilumino-me dos olhos verdes dela, à minha procura entre o seu sorriso e o mundo. Ocupava tão pouco espaço e no entanto a vida inteira cabia-lhe lá dentro. Vieste dali e é a esse ali que tens de voltar. Diz
– Mãe
porque aliás nunca te foste embora. Pois não?
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