quinta-feira, fevereiro 14

Ler

De todo o tempo que perdem os portugueses, não há eternidade como o tempo que perdem a não-ler. Durante o Verão, o país enche-se de turistas estrangeiros e quase todos – seja na praia, seja no hotel – andam quase permanentemente com um livro na mão. Esta estranha proclividade deixa o português perplexo: "Estes bifes são todos malucos – pagam um balúrdio para cá virem e depois, em vez de aproveitarem, passam o tempo todo a ler… Até usam o livro aberto para marcar os lugares!"

É o facto cultural mais assustador de todos – os portugueses não lêem livros. Em nenhum outro país da Europa é tão raro ver alguém a ler um livro em público. Causa genuína aflição vê-los a não-ler. Na praia, nas salas de espera, nos comboios, enquanto almoçam sozinhos, nos cafés… em toda a parte se vê uma população atarefadamente dedicada à actividade de não-ler. Porque é que não aproveitam estes tempos mortos?

Não se sabe. Uma das causas será o facto do português ter horror à solidão. Esteja onde estiver, e por muito entediada que seja a sua condição, o português prefere estar a olhar para os outros – os tais que, por sua vez (em vez de estarem a ler), estão a olhar para ele.

O Português tem medo de se mergulhar num livro porque isso significa deixar de “estar à coca”. Não pode estar em lado nenhum sem sentir que está de serviço, a controlar a situação. Olha os que entram, os que saem; os que ficam, os que voam e fazem “Bzzzz…”. Nem é só por bisbilhotice – é por desconfiança. Não pegam num livro porque têm medo de apanhar com uma paulada nas costas enquanto estão distraídos. Para um português, ler é estar desprevenido.

Os preconceitos contra a leitura são terríveis. Entre o povo diz-se que faz mal à digestão ler a seguir ao almoço ou ao jantar. A obsessão dos portugueses com a digestão merecia, só por si, uma crónica. Na TV, na campanha do “Há mar e mar”, aconselham um mínimo de três horas! E julga-se que passam essas três ridículas horas a ler?

Os contos de Bruxa não acabam aí! Existe também a noção grosseira de que ler «cansa a vista» porque «faz mal puxar muito pela cabeça». O típico brutamontes defende-se destas acusações dizendo que «ando a trabalhar todo o dia e, quando chego a casa, é para descansar, não é para ler». A realidade é triste mas tem de ser revelada: o português prefere cansar-se a trabalhar (e lembremo-nos que tem a capacidade singular de cansar-se muito a trabalhar pouco) ao descanso que seria ele ler.
Miguel Esteves Cardoso, "A causa das coisas"

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