Estavam juntos havia quatro anos e ele lembrava-se da apoteose dos primeiros tempos: descontando as raras e breves ocasiões em que a rapariga visitava a mãe, nunca acordara sozinho. Como qualquer velho, invejava a imaturidade e embriagava-se com a juventude da amante. E depois Fidelia lia-lhe a todas as horas do dia. Imprevisíveis, as palavras da jovem surgiam-lhe de lugares distintos, adocicadas pelo sotaque platense, dando voz à multidão de livros que o rodeavam desde sempre como um coro de mudos. Na verdade, sempre escolhera as mulheres pelos olhos que não tinha. Só deixava que o aceitassem como amante se lhe prometessem maratonas de leitura. Nunca se despedira de nenhuma com um livro a meio e só por uma vez deixara que o convencessem na hora de escolher o que ler. Fora Azurine, uma argelina de meia-idade, cuja paixão obcecada por Zola lhe adiara Lolita pela semana que levara a terminar Germinal - um ultraje! Houvera ainda Apolline, Doriane e Madalena. Apolline, a primeira, que se punha a arder quando o romance aquecia e o fizera devolver os Henry Miller que tinha na livraria; Doriane, a atriz, que invadia a imaginação do livreiro, arquejando como Desdémona às mãos de Otelo ou rindo-se da morte como a Bovary - outro ultraje, «os grandes livros dispensam essas coisas», dissera-lhe ele tantas vezes; e Madalena, filha de um português e de... Apolline, que, trinta anos depois, aquecia o lugar que fora da mãe, embora com mais equilíbrio entre as páginas e os lençóis. É claro que a vida dele não fora só romances, também a abrira a contos lidos numa noite, literatura de cordel que esquecia sem desgosto. Nunca cuidara das razões daquelas mulheres, porque o procuravam, porque se deixavam ficar. Talvez preferissem não ser vistas ao acordar, talvez adorassem ouvir-se com a voz dos livros.
João Pinto Coelho, "Os Loucos da Rua Mazur"
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