quarta-feira, setembro 30

Leitor uterino

 

Alba Marina Rivera

A ordem natural das coisas

Também na época da minha infância, na Ericeira primeiro e na Calçada do Tojal depois, os meus pais constituíam um absoluto mistério para mim. Nunca me falavam deles, não existia uma fotografia sua entre as jarras de porcelana com folhas de plátano, as molduras de militares e os ovais de prata com meninos de triciclo sobre um fundo de giestas e bisavós reboludas, e eu imaginava-os a viver em África ou em Macau, cercados de chineses diante de barcos de velas em pergaminho encalhados na margem de um rio. Se depois do jantar, deitado na cama sem conseguir dormir, escutava os cães de rebanho do Espanhol, sentia no vento a baixa mar das suas vozes segredando-me conselhos que não podia entender. A Dona Maria Teresa revirava em silêncio os olhos de lagosta, a Dona Anita ralava-se com a minha magreza e oferecia-me bolachas que sabiam a cré, o meu tio, o Senhor Fernando, piscava o olho às damas e falava do irmão major, o Senhor Jorge, preso em Tavira por conspirar contra o Governo, num quartel junto da praia em que o som das cometas se humedecia de espuma. Aflige-me que tu, nascida em Moçambique no ano da Revolução, não possas entender a época da minha juventude em que os homens vestiam, ao domingo de manhã, a farda da Legião Portuguesa e marchavam pelas ruas de Lisboa, preocupa-me, porque te afasta de mim, que não tenhas conhecido as procissões, os hinos, os discursos, os cafés a transbordarem de uniformes que gritavam canções guerreiras em torno de cálices de conhaque, com funcionários da Polícia Política anotando em caderninhos os suspeitos comunistas. Mesmo o Senhor Fernando, filho de um brigadeiro herói das sublevações monárquicas, descia o tom da voz e considerava os agentes numa espécie de respeito incomodado, esquecido das damas que se arregalavam, extasiadas, de torrada na mão, para as condecorações dos patriotas. É que muito antes de tu nasceres, Iolanda, numa cidade de gibóias, missionários e pretos, Lisboa era um carrossel de milicianos orgulhosos e inúteis, de multidões de cónegos, e de maçons a consumirem-se nos fortes do Estado, enquanto a mim, de bivaque e calções, me iniciavam em rudimentos marciais no recreio da escola.

Lisboa, meu amor, eram missas radiofónicas, altarzinhos de Santo António, mendigos e gaitas de beiços de cegos nas esquinas, porque nunca encontrei tantos cegos como nessa época penosa, cegos encostados aos prédios, cegos de concertina às costas tacteando passeios fora, cegos trágicos à saída dos lausperenes, cegos fadistas acompanhados por espertalhões de patilhas que recebiam as esmolas, cegos ameaçadores que vendiam bugigangas no adro, cegos orgulhosos, de queixo altivo, nos cruzamentos das ruas, mulheres cegas, com filhos cegos que não choravam nunca ao colo, cegos bêbados às curvetas entre os palmitos das tabernas, cegos que se suspendiam no ar, como anjos, dependurados dos guarda-chuvas abertos, cegos, pedintes e ciganos em carroças gastas pelos mil caminhos do mundo, em busca de um baldio para a tenda, mas principalmente cegos fitando o nada com a bruma das pupilas, milhares de cegos ocupando os becos, as travessas, os largos, os pátios de casinhas baixas com oficinas de sapateiros e ferradores, cegos a beberem água no chafariz das mulas, cegos conversando entre si do seu mundo de sombras, cegos, pedintes e ciganos nas quintas do Tojal, roubando o mel das abelhas, legionários e cegos e as damas das pastelarias e polícias secretos e os brados dos guerreiros de domingo, e eu a perguntar à minha tia O que é feito dos meus pais?, e ela, sem interromper o crochet, a revirar os olhos, cegos a tocarem-nos ao portão ou a vaguearem na relva, enganados na morada, e nesse momento, querida,

cegos

escutei pela primeira vez, fazendo vibrar os cálices, as folhas das plantas e o arbusto do meu sangue,

cegos

um ruído de passos no andar de cima.

António Lobo Antunes, "A ordem natural das coisas"

terça-feira, setembro 29

Mineiro rebelde

O jovem leitor vê hoje uma foto de Drummond e não acredita que ele, com aquela cara de mineirinho sossegado, tenha ousado desafiar a velha guarda da poesia e, enxotando os cisnes parnasianos, escolher para os seus poemas protagonistas improváveis como aquele leiteiro, tão eficazes dramaticamente quanto uma donzela suicida de Shakespeare

Anatomia de leitor

 


Os irmãos

 Mariona Tolosa Sisteré
À direita do velho Gabriel, com os olhares paralelos, presos em pontos abstractos e desfocados, estavam os irmãos. Os seu olhares eram iguais, mas não viam o mesmo. Eram o mesmo olhar a ver duas coisas. Durante os meses em que estava parado, era, os irmãos que tomavam conta do lagar. Sempre juntos, sempre um ao lado do outro, envelheceram ao mesmo tempo: tinham a mesma curva nas costas, o mesmo andar pouco ligeiro e, sem que o soubessem, o mesmo número exacto de cabelos brancos na cabeça. Já tinham passado muito mais de setenta anos da manhã de agosto em que, ao mesmo tempo, nasceram, rasgando a mãe por dentro à sua passagem. Contavam os mais velhos, que tinham ouvido dos seus pais, que, assim que lhes cortaram os cordões umbilicais, a mãe os olhou e viu ainda que eram siameses. Morreu alguns minutos depois, sem dizer uma palavra. O seu enterro foi seguido por toda a vila e sentido como uma tragédia entre as maiores. Todas as pessoas da vila davam os pêsames ao pai dos irmãos, pela esposa e pelos filhos, pois todos cuidaram que crianças assim não medravam. Mas, no momento em que a mãe era enterrada, os meninos dormiam sobre três cobertores dobrados, no quarto do pai, ao lado da cama onde a mãe se esvaíra em sangue. De pele muito enrugada, os meninos dormiam , com as mãos que tinham unidas levantadas sobre o lençol que os cobria, como num orgulho inocente de serem irmãos. E, sob o olhar preocupado das pessoas, cresceram como crescem as crianças. Com os anos, muitos lhes quiseram analisar as mãos e todos se arrepiavam com o que viam: a mão direita de um e a mão esquerda do outro estavam unidas pelo dedo mindinho. Tinham as mãos muito elegantes, finas, dedos longos, mas a partir da última norça do mindinho, os seus dedos fundiam-se e terminavam numa só unha. Todos os que viam isto inventavam maneiras de os separar, mas o mais insistente foi o homem de arrancar dentes com o alicate. Inflamado, dizia conhecer homens que tinham cortado muitas pernas e muitos braços na guerra, e que tinha lido muitos livros com desenhos mesmo, e que cortar um dedo a uma criança é mais fácil do que podar uma parreira. E o pai dos irmãos perguntou-lhe e como é que eu decido qual deles é que fica sem dedo? E o homem de arrancar dentes com um alicate, imediato, respondeu já tinha pensado nisso, o mais justo é cortar o dedo aos dois. O pai dos irmãos olhou-o por um instante e não voltou a falar com ele.

José Luís Peixoto, "Nenhum olhar"

segunda-feira, setembro 28

A taxa das traças

 


A menina que colecionava espantos

Morrer é perder o espanto”, diz o vaga-lume. Kalumba-Tubia estuda a frase por todos os lados. Não tem a certeza se concorda com o coleóptero.

A noite brilha, lisa e transparente como um globo de vidro, com a Lua acesa, muito redonda, e constelações rodopiando desamparadas no largo céu. A menina sabe que atrás das dunas começa uma floresta de arbustos espinhosos, ainda mais impenetrável do que a pesada escuridão do mar. Sente-se naquela praia como um molusco em sua concha. Ela que coleciona conchas, guardando-as em pequenas caixas de vidro no seu quarto, e que tantas vezes se imagina construindo em torno do seu corpo frágil, camada após camada de carbonato de cálcio, uma armadura que a proteja dos predadores.

Desde bebé que Kalumba-Tubia conversa com vaga-lumes. Na verdade, com todo o tipo de animais, mas especialmente com aqueles capazes de voar. No início, os pais riam-se muito ao ouvi-la dialogar com os pássaros, os besouros e as borboletas. Depois, começaram a ficar preocupados. Um psicólogo tranquilizou-os: “Não há nada de errado com a menina. Conversar com os animais é uma forma que ela encontrou de estabelecer vínculos com o mundo que a rodeia. Isso faz com que se sinta segura.”



Anos mais tarde, adolescente, compreendeu que seria melhor manter essas conversas em segredo. Fez-se mulher e artista (cria instalações que dançam nas praias, movidas pelo vento) e pouco a pouco o seu corpo secou, dobrou-se, engelhou-se, mas Kalumba-Tubia nunca deixou de conversar com bichos e plantas. Também nunca esqueceu a praia da sua infância. Sempre que se sente mais assustada, fecha os olhos e volta para lá. Em casa – na casa que construiu numa outra praia, muito distante da primeira –, encheu as paredes com estantes, e essas muitas estantes com caixinhas de vidro. Milhares de conchas de todos os formatos, de todas as cores, brilhavam dentro das caixas. Por vezes perguntavam-lhe:
– Porque colecionas conchas?

Kalumba-Tubia achava a pergunta absurda. Fazia um esforço para responder delicadamente:

– Porque não posso colecionar o mar.

Na verdade, colecionava conchas para troçar da morte, mas ainda não sabia disso. Uma noite, vieram homens armados. Quebraram as caixas de vidro. Lançaram fogo à casa. Kalumba-Tubia saíra para conversar com os vaga-lumes e só por isso escapou com vida. Nos anos seguintes, reconstruiu a casa e voltou a enchê-la de conchas.

Duas enfermeiras afadigam-se agora à volta dela. Lavam-na, penteiam-na, massajam-lhe os músculos lassos. Conversam uma com a outra como se ela não estivesse ali:

– Esta não quer morrer – diz a primeira.

– Quantos anos terá? – quer saber a outra.

– Não faço ideia. É a mais velha do lar. Já era muito velha quando aqui cheguei.

Kalumba-Tubia escuta-as e sorri para dentro. Está de novo na praia da sua infância. É a menina que corre na areia, que salta nas ondas, que se estende de costas nas rochas ásperas, olhando a Lua redonda e as estrelas zumbindo na madrugada. O vaga-lume pousa-lhe no ombro, “morrer é perder o espanto”, repete e desvanece-se sem escutar a resposta dela. Se isso for verdade, não morrerei nunca, pensa a menina, dói-me a alma de tanto espanto.

Kalumba-Tubia olha para os dias, ao longe, como olha para as ondas que se aproximam e logo se desmancham, sem força, na areia das praias. Em todos os dias que vê, cavalgando a espuma branca do tempo, encontra motivos para admiração. Vivo embriagada de espanto, pensa, e dá-se conta de que tanto a surpreende a luz como a escuridão. Nunca se habituou à intriga, à violência, à estupidez dos homens. Atravessou tantos anos e a maldade ainda a horroriza, como um tigre com três cabeças. Há homens que são tigres com três cabeças. Eventualmente, também a Natureza gera tigres com três cabeças. Ela sabe disso. Não é ingénua a ponto de confiar mais nos tigres do que nos homens. E depois pensa nas surpresas felizes que a vida lhe traz, tantas vezes através de caminhos equivocados, como, depois que começou a perder a visão, a forma distorcida dos objetos, ou os sons que antes não escutava, ou os sonhos, ou o veludo da noite roçando na Lua – e então percebe que está preparada para largar a concha e partir.

Amanhã alguém encontrará a concha vazia da vida dela. Levando-a ao ouvido talvez consiga escutar as vozes dela e dos pirilampos; as vozes todas que recolheu e continua a ouvir nas manhãs inaugurais da sua infância.

sábado, setembro 26

Edifício cheio de vida


 

E lembrei-me de ti, com ternura

A palma das tuas mãos, a pele dos teus pulsos, os dedos esguios e longos, os dentes brancos num sorriso meio tímido, meio atrevido, o teu riso, o teu humor, a tua inteligência cristalina. Pensei telefonar-te, mas estas coisas não se dizem por telefone. Guardei-te para mais tarde, para quando os teus olhos pousassem sobre mim, para quando a tua mão limpasse o suor da testa, a tua boca limpasse os vestígios de sal da minha pele.

Em vão, como vês, me esforcei por não me distrair. Para passar por ti como se passa por um episódio, por um acidente à beira da estrada, por uma ilusão de água num mar sem fim de areia. Eu queria só a solidão da solidão, o silêncio submerso dos dias vazios e sem destino, a consistência da água e a evidência das pedras. Eu queria um mundo sem ti nem ninguém mais, uma vida - tão merecida - feita de egoísmo e de instantes impartilháveis. Mas tu és como a anémona que segue a corrente que passa, tu és a lapa presa à rocha, o sulco na areia durante a maré vazia que indica o caminho de regresso ao mar, tu és a densidade da água dentro da qual eu me reencontro e reconstruo.

Miguel Sousa Tavares, "Não te deixarei morrer, David Crockett"

Repouso de fim de semana

 


Armarinho

Podem os cavalheiros cantar na sua lira as delícias do botequim e da cerveja gelada; nós, mulheres da ilha, damos preferência ao armarinho.

Vede por exemplo o armarinho da Cova da Onça: discreto e familiar no seu canto de rua, com dois pés de jasmim na frente, o balcão na antiga sala de visitas, a nossa amiga e vizinha servindo os botões e as fitas, aquilo é na verdade um lugar de repouso e convivência, onde se trocam sugestões para vestidos, receitas de cozinha e dietas de criança. Vai-se ao armarinho quase como se está em casa, sem pintura, sem penteado, muitas vezes com o mesmo tamanco com que se anda pelo quintal a tratar das plantas e das galinhas. Aliás, em tempo de chuvarada e lama o tamanco é mesmo o calçado oficial de todos daqui, até para ir mais longe: é farmácia, ao açougue, à policlínica, quanto mais ao armarinho, que é bem junto, um salto de pulga.


O que a gente não entende são as dificuldades que opõe a Prefeitura do Distrito à abertura de lojas tipo armarinho (não sei se há obstáculos idênticos para outras lojas) nos quarteirões residenciais. As restrições são tão severas, as exigências tão insuperáveis que abrir um armarinho numa rua suburbana é áfrica mais difícil do que abrir um magazin de luxo na avenida. Por quê? Ninguém o entende. Pois a boa lógica seria que as lojas de bairro ficassem justamente ao alcance das famílias que nelas adquiririam as suas utilidades sem esforço por demais. Toda zona residencial, mormente as modestas, onde não há- transportes coletivos, precisam dispor de um lugar onde a gente possa mandar o nosso filho pequeno ou nossa filha mocinha apanharem um carretel de linha ou um tubo de pasta de dentes sem risco de ouvirem pilhérias inconvenientes, de serem esmagados por um caminhão, ou serem assaltados por bandidos que lhes queiram tomar os cinco cruzeiros da compra.

Não dizem os jornais que esta cidade do Rio de Janeiro há muito tempo que anda transformada numa espécie de Paris do tempo dos Pardaillan, na qual se degolava um homem por causa de uma moeda de prata?

Mas quem governa inventa lá as suas regras ― como é que as chamam? Posturas. Inventam as posturas que bem lhes parece, e uma vez que há posturas há de haver quem as respeite, senão para que as inventariam? E cá estamos nós para obedecer.

Se as autoridades me ouvissem, eu fazia um convite para que visitassem os nossos armarinhos e vissem que ilhas de repouso e poesia são eles no meio de nossas dificuldades cotidianas. Por algumas moedas é lá que compramos as poucas coisas que embelezam a vida das famílias pobres, das mulheres pobres. O frasco de cheiro e o batom para as moças, os cavalinhos de massa e as bolas de gude para os garotos, os bicos de papel recortado para as prateleiras da cozinha, o pó de arroz, o sabonete, a fita, as rendas para a roupa branca. As máscaras de carnaval, só colares vistosos, os cintos de matéria plástica, os brincos, os anéis, as travessas de cabelo enfeitadas com pingo de água. O armarinho é a nossa joalheria de subúrbio, a nossa perfumaria, ― refúgio do eterno feminino na desolação desta vida tão dura, em que moças nascem, crescem e morrem sem nunca haverem possuído uma joia de verdade ― mas sem jamais sentirem a falta delas porque desde a infância o armarinho as abasteceu com mais anéis e colares do que os teve Cleópatra, rainha do Egito? Que importa fossem de plaquê e vidro ou celuloide? Brilhavam e enfeitavam e realçavam a beleza, tinham o espírito da joia, que é mais importante do que o seu valor intrínseco.

Vinde ver o armarinho, senhoras autoridades. E quando os virdes tão alegres com suas grinaldas de fitas e de rendão decorando as portas, os balcões enfeitados de botões de galalite e cornetinhas de celuloide compreendereis o quanto valem eles, para nossa alegria e para nosso conforto. E então rasgareis as velhas posturas e ordenareis posturas novas nas quais se há de determinar a abertura de um armarinho em cada esquina de rua e prêmios oficiais serão dados aos melhores sortidos, aos mais bem enfeitados, aos mais barateiros ou aos mais estimados na vizinhança.

sexta-feira, setembro 25

Reserva do dia

 


Clarice Lispector é celebrada no centenário com edição mais completa da sua correspondência

O centenário de nascimento de Clarice Lispector, que será celebrado em 10 de dezembro, acaba de ganhar a sua primeira grande novidade editorial. Chegando hoje às livrarias, “Todas as cartas” (Rocco) forma a mais completa edição de sua correspondência até aqui, trazendo uma centena de missivas inéditas em livro. Reunidas em ordem cronológica no volume organizado por Pedro Karp Vasquez, elas compõem um perfil ampliado da escritora brasileira de origem ucraniana — a editora já lançou “Todos os contos” (2016), organizado por Benjamin Moser, e “Todas as crônicas” (2018), por Vasquez.

Nas cartas, Clarice conversa com editores, jornalistas, amigos, familiares e — ponto alto do livro — colegas de escrita, em diferentes fases de sua vida. Com eles, troca inquietações existenciais, articula sas frustrações criativas e expõe intimidades.

Fica clara a sua admiração pelo contemporâneo João Cabral de Melo Neto (com quem, aliás, divide centenário este ano). “Saio de sua poesia com o sentimento de aprofundamento da vida”, escreve em 1957 ao autor de “Morte e vida severina”. Ambos iniciavam na carreira (ela estava em seu terceiro livro), e a jovem busca respostas para suas angústias da criação: “Não sei como chegar a outras coisas, mas preciso tanto. Será que passou o tempo das descobertas?”.

Já com os mais velhos (como o crítico Sérgio Milliet e o modernista Mário de Andrade), Clarice exibia uma postura deferente, lembra Teresa Montero, uma das biógrafas de Clarice e responsável pelas notas bibliográficas do livro.

— No contato com os críticos, servia como uma avaliação sobre o que ela estava escrevendo naquele momento — lembra Teresa, autora de “Eu sou uma pergunta — Uma biografia de Clarice Lispector” (2000). — Como Clarice valorizava as conversas com o Arthur Ramos (antropólogo e psiquiatra) e Tasso da Silveira (escritor)! Ela tinha fome de aprender, de trocar.

A troca com Mário de Andrade, porém, é frustrada. Em 1943, Clarice lhe enviou uma cópia de seu livro de estreia, “Perto do coração selvagem”. Como não obteve retorno, mandou um bilhete conformado. “O fato do senhor não ter criticado o meu livro serve evidentemente de resposta, e eu a compreendo”. A verdade só veio à tona anos depois: Andrade tinha lido o romance e chegou a enviar uma carta, que a autora não recebeu.

Se no começo de sua trajetória literária Clarice buscava o aval de nomes consagrados, mais tarde a situação se inverte. Era ela a veterana procurada pelos jovens escritores. Um deles, o pernambucano Augusto Ferraz, estimulou-a a voltar ao Recife, cidade em que cresceu e que não via desde os seus 14 anos. A julgar pelas cartas, o contato com as novas gerações a energizava.

— A viagem em maio de 1976 foi uma das mais marcantes de sua vida — conta Teresa. — Tanto que ela escreveu “A hora da estrela” movida por essa visita. Segundo minhas pesquisas, a ideia da Macabeia já estava no seu pensamento e creio que estimulada pelas visitas de Augusto, que a encontrou no Rio ao menos duas vezes antes de ela aceitar o convite.

Outro jovem que se aproximou de Clarice foi o escritor e artista plástico Mora Fuentes, parceiro de Hilda Hilst. A correspondência entre os dois surpreende pelo romantismo, mas a relação teria sido apenas platônica. Ele tinha 23 anos e buscava aproximação com uma celebridade; ela, 54, havia se encantado com os quadros do artista. Ex-esposa de Fuentes, Olga Bilenk costuma dizer que ele teria sido o último “namorado” de Clarice — entre aspas mesmo, já que só se encontraram pessoalmente uma única vez.

— Há um jogo de sedução na correspondência entre os dois — explica Pedro Vasquez. — Mas o que se vê é uma paixão exagerada, puramente epistolar, sem qualquer tipo de interesse romântico real. A partir de 1967, Clarice para de se envolver romanticamente (no ano anterior, ela havia sofrido graves queimaduras em um incêndio em seu apartamento). Quando lhe pedem para escrever sobre sua vida sexual, nos anos 1970, ela responde que não pode dormir com ninguém, “porque meu corpo é queimado”.

“Todas as cartas” reafirma uma Clarice à frente de seu tempo. Embora reservada em sua intimidade, ela sempre teve movimentos ousados. Separou-se em 1959, quando sequer existia divórcio legal. Em uma carta a Lygia Fagundes Telles, em 1977, a escritora lamenta que mulheres tivessem pouco espaço no mundo literário, e diz que gostaria de indicar a amiga à ABL. “Estão achando que sugiro mulheres demais? Não, é que a Academia Brasileira de Letras tem uma grande dívida para com as mulheres”, escreve ela para Lygia, que seria eleita para a ABL em 1985.

— Clarice circulou em ambientes predominantemente masculinos — lembra Teresa. — Cursou Direito, frequentou redações e, no mundo da diplomacia, apesar de o marido ser o diplomata, ela conviveu com as nossas primeiras mulheres diplomatas. Certamente isso serviu como referência para ela pensar de uma nova maneira o espaço que as mulheres ocupavam.

Arando

 


As minhas férias

As minhas férias As minhas férias foram em casa dos meus avós. Todos os anos as minhas férias são lá. A casa dos meus avós é grande mas parece um bocadinho pequena. Tem umas escadas e uma cave e muito mais quartos que a nossa casa, mas tudo parece um bocadinho mais baixo e apertado. Uma vez caí das escadas e não me magoei nem nada. Mas isso foi quando eu só tinha cinco anos. Nessa altura eu não sabia escrever nem nada porque ainda estava na infantil e agora até subo dois degraus de cada vez e as pessoas dizem que eu sou muito mexido. O meu avô até me disse que eu era um super-herói. Disse assim: ah, és tu, Filipe! Achei que era um super-herói que nos tinha entrado em casa. O meu avô gosta muito de super-heróis ou pelo menos é o que eu acho porque ele está sempre a falar-me deles. À mesa, quando os outros crescidos começam a ter conversas diferentes assim mais sérias e isso, o meu avô fica calado que nem um rato, que é como diz a minha avó, e depois só diz uma coisa ou outra quando lhe apetece ou quando se lembra de uma história divertida e então dá gargalhadas muito altas, mas não altas como quando às vezes ralham alto connosco e sim altas de fazer uma espécie de cócegas na nossa boca e termos de rir também e também alto como ele. As pessoas crescidas normalmente são diferentes. As pessoas crescidas normalmente não se riem ou riem-se de coisas que não têm graça nenhuma, pelo menos eu não acho, e às vezes param mesmo de rir a meio do riso como se uma gargalhada fosse uma coisa feia ou um palavrão muito mau. As pessoas crescidas não são nada como o meu avô. O meu avô é assim mais redondo e às vezes até parece que vai tropeçar e tudo. Mesmo quando está calado ou a dormir na poltrona castanha o meu avô não é nada sério e, como eu costumo dizer, isso é muito positivo. As pessoas crescidas normalmente não são nada positivas. As pessoas crescidas normalmente são muito levantadas e direitas e fazem lembrar árvores daquelas que estão sempre num conjunto de árvores e são muito iguais às outras todas, como os eucaliptos por exemplo. Um dia o meu pai foi comigo à mata que é como nós chamamos a uma floresta que há lá ao pé da casa dos meus avós, para aí a uns 2 km ou 3 km, e mostrou-me o que eram eucaliptos. Disse assim: estás a ver, Filipe? Isto aqui são eucaliptos. Eucaliptos. Mas nessa altura eu era muito pequenino e tinha mais ou menos quatro anos e por isso ainda não sabia dizer eucaliptos. Dizia de uma maneira diferente e engraçada mas agora já não me lembro. já passou muito tempo porque isto foi quando eu ainda era um bebé. Aos seis anos é a idade em que se fica mais crescido e eu já estou quase a fazer sete por isso vou rebentar a escala e claro já não sou um bebé. 

Quando começam as férias vamos de carro para casa dos meus avós. E quando as férias acabam vimos para nossa casa também de carro, é só fazer o caminho todo ao contrário, mas por acaso às vezes parece mesmo que é outra estrada e que não foi por ali que viemos e nessas alturas eu penso para onde é que estamos a ir? Os meus avós são os pais da minha mãe. Os pais do meu pai morreram antes de eu nascer ou então quando eu era tão pequeno que não me lembro das caras deles. Um tio meu também morreu há pouco tempo e eu lembro-me muito bem da cara dele. A minha mãe disse-me que ele tinha subido para o céu porque era uma pessoa boa e então eu perguntei à minha mãe o que é que acontecia às pessoas que não eram tão boas e a minha mãe disse-me que também iam para o céu e depois eu ganhei coragem e perguntei-lhe e o que é que acontece às más? E a minha mãe disse que todas iam para o céu e eu aprendi isso. Deve ser bom estar no céu e passar por cima dos automóveis, principalmente quando está muito trânsito e as pessoas já estão chateadas de estar ali. A minha avó diz: não se diz chateadas, diz-se aborrecidas. Está bem, Filipe? Está bem, avó. A minha avó quer sempre que eu coma mais e às vezes ri-se de coisas que eu digo sem ser para rir e eu fico contente e depois volto a dizer essas coisas mas normalmente à segunda vez a minha avó já se ri com menos vontade. A minha avó diz que eu sou muito engraçado. Outras vezes diz que eu sou esperto mas não caço ratos. A minha avó não gosta nada de ratos mas está sempre a falar neles. 
Jacinto Lucas Pires

quinta-feira, setembro 24

Deixe-se levar pelo livro

 

Sandra Fiz

Sermão do Diabo

Bem aventurados os aleijados porque não distinguem as proporções dos
sentimentos morais e desenham triângulos tortos na areia.
Bem-aventurados os cegos de nascença porque rangem quando rangem
nas curvas os astros do cosmos sem música.
Bem-aventuradas as mulheres feias porque trocam sinais com a Via-Láctea
e são tangíveis a todas as semáforas.
Bem-aventurados os que morrem nas catástrofes ferroviárias porque a vida
foi de repente a sinistra aventura.
Bem-aventurados os desequilibrados líricos porque inventam tristes
gnomonias.
Bem-aventurados os que perdem os filhos porque, incendiados, são hábeis
em distinguir a estrela do naufrágio.
Bem-aventurados os mendigos porque pertencem às searas mitológicas.
Bem-aventurados os suicidas porque chegam de armas na mão ao outro
lado.
Bem-aventurados os indigentes porque resumem as misérias da poesia.
Bem-aventurados os bêbados sem remédio porque se extinguem no
crepúsculo como o carvão.
Bem-aventurado o que alimenta um mal secreto porque pode telefonar à
hiena e convidá-la para jantar.
Bem-aventurado o indivíduo que tem o rosto deformado porque pode
olhar a morte nos olhos e interrogá-la.
Bem-aventurados enfim todos os homens, todas as mulheres, todos os
bichos, bem-aventurados o fogo e a água, bem-aventuradas
as pedras e as relvas, bem-aventurados o Deus que cria o universo
e o demônio que o perdoa.
Paulo Mendes Campos

Covid-19


Neste ponto da história
Respirar - só respirar -
Já é uma puta de uma glória.
Raul Drewnick

Dica para tempos gélidos

 


Escrever é uma luta

Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos, e no fundo das suas motivações reside um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e extenuante, como uma longa crise de uma doença dolorosa. Nunca nos entregaríamos a tal coisa se não fôssemos conduzidos por um qualquer demônio ao qual não podemos resistir nem sequer compreender. Tanto quanto sabemos, tal demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebé berrar para chamar a atenção. E contudo é também verdade que nada de legível se consegue escrever, a menos que lutemos constantemente para apagar a nossa própria personalidade. A boa prosa é como uma vidraça
George Orwell

Alerta

 


Encontrado soneto de Pablo Neruda nas lembranças de uma amiga

Exatamente 47 anos depois sua morte, em 23 de setembro de 1973, um soneto datilografado do poeta Pablo Neruda foi apresentado no Chile. É a primeira versão de Sangre de Toro, um poema de 1965 em homenagem a um popular vinho húngaro. Ele o escreveu durante uma viagem de lazer que fez em agosto daquele ano à Hungria, junto com o escritor guatemalteco Miguel Ángel Asturias e suas respectivas esposas.

Ambos escreveram versos enquanto viajavam pelo país, comiam e bebiam, sem imaginar que logo receberiam o Nobel: Asturias em 1967 e Neruda em 1971. “Revendo as lembranças de minha mãe, que acabara de falecer, encontrei uma caixa de plástico com fotos antigas, documentos e cartas. De repente, apareceu um papel, fino e em razoáveis condições. Era um poema de Neruda, assinado por ele”, diz a médica chilena Marcia Telteinboim, que fez a descoberta.

O poema diz assim:

Robusto vino, tu familia
no llevaba diademas ni diamantes:
sangre y sudor pusieron en su frente
una rosa de púrpura fragante.
Se convirtió la rosa en toro urgente:
la sangre se hizo vino navegante
y el vino se hizo sangre diferente.
Bebamos esta rosa, caminante.
Vino de agricultura con abuelos,
de manos maltratadas y queridas,
toro con corazón de terciopelo.
Tu cornada mortal nos da la vida
y nos deja tendidos en el suelo
respirando y cantando por la herida.


Quatro anos depois da viagem, em 1969, os dois poetas publicaram o livro Comiendo en Hungría. Foi publicado em húngaro, castelhano, francês, alemão e russo. Ao contrário da primeira versão que agora aparece, o poema incluído naquela edição tem uma palavra adicional no primeiro verso: “Robusto vino, tu familia ardiente”, diz o poema definitivo.

Para Grínor Rojo, professor do Centro de Estudos Culturais da Universidade do Chile, estudioso da obra de Neruda, o chileno “foi quem escreveu o poema, sem dúvida”. “É um poema muito nerudiano, pela sua riqueza figurativa. Neruda é um poeta de extraordinária imaginação sensorial e os cinco sentidos estão presentes neste brevíssimo texto. Este é Pablo Neruda na íntegra”, explica Rojo.

O primeiro dos textos que compõem o livro de 1969 dá conta do espírito com que foi composto:

“Comer está na moda!

Com pedra e pau, faca e cimitarra, com fogo e tambor as pessoas avançam para a mesa. Os grandes continentes desnutridos explodem em mil bandeiras, em mil independências. E tudo vai para a mesa: o guerreiro e a guerreira. Sobre a mesa do mundo, com todo mundo à mesa, voarão as pombas.

Busquemos no mundo a mesa feliz.

Busquemos a mesa onde o mundo aprende a comer. Onde aprende a comer, beber, cantar!

A mesa feliz.”

O soneto Sangre de Toro tem outra particularidade notável: trata-se de um soneto (uma composição poética muito especial) escrito por um autor que, justamente, não se caracterizou por escrever com formas estabelecidas. “Acredito que, nesse sentido, a escrita formal de Neruda pode ser comparada à pintura realista de Pablo Picasso. Não é o que o artista faz ou fez principalmente, em nenhum dos dois casos. Mas quando isso acontece, o resultado é um esbanjamento de maestria”, diz Rojo, que indica que outra exceção na obra de Neruda são os Cien Sonetos de Amor, de 1959.

O poema datilografado foi salvo quase milagrosamente. O poeta e sua mulher, Matilde Urrutia, eram muito amigos do advogado Sergio Telteinboim e de sua esposa, a graduada em comércio exterior Perla Grinblatt. Compartilhavam a filiação ao Partido Comunista e, nos anos sessenta, quando os Telteinboim viviam com suas três filhas na cidade de Viña del Mar, compareciam com frequência aos almoços e às famosas festas que Neruda realizava em sua casa em Valparaíso, La Sebastiana. O poeta acolhia seus convidados com bebida, boa mesa e com versos inéditos, que distribuía em pequenos pedaços de papel que hoje são um tesouro: “Qualquer manuscrito ou texto datilografado dele que tenhamos em nosso poder, como este de Sangre de Toro, é uma joia”, observa o professor Rojo.

Os Telteinboim Grinblatt chegaram a ter uma quinzena desses versos de Neruda, mas a maioria não durou para além do golpe de Estado de 1973, quando as casas das famílias de esquerda foram invadidas pelos militares e os próprios moradores se desfizeram dos papéis e documentos comprometedores, em meio à repressão política. A mais nova das filhas, Marcia, tinha 11 anos e se lembra daqueles dias de “turbilhão e medo” em que boa parte da memória material de sua família foi perdida. Com a morte do pai, em 2006, as descendentes nunca imaginaram que Sangre de Toro tivesse sobrevivido entre as lembranças do apartamento de sua mãe em Santiago.

“Provavelmente nem ela sabia que esse documento estava guardado”, diz Marcia, cuja mãe morreu em Santiago no dia 14 de julho, aos 94 anos. Junto com esse papel “fino e em razoáveis condições” onde o poema foi datilografado, naquela noite de inverno a médica também encontrou um convite de 1961 para a inauguração de La Sebastiana. Junto com suas irmãs Patricia e Berta, decidiram doar os dois documentos ao Arquivo Central Andrés Bello da Universidade do Chile, em uma cerimônia virtual que aconteceu nesta quarta-feira. 

quarta-feira, setembro 23

Ler, sempre

 


Mulheres, e as frases que elas inspiram

O sinal para pedestres abriu. O velho pôs o pé direito lentamente na rua, como se testasse a temperatura da água numa banheira. Depois, tão devagar quanto o direito, moveu o pé esquerdo, como se estivesse descalço e ali houvesse cacos de vidro. Foi aí que a moça de uniforme branco resolveu ajudá-lo.

Manicure, ela estava atrasada, mas não podia deixar o homem atravessar sozinho a rua. O sinal para pedestres ficava aberto só meio minuto e, sem o auxílio dela, o homem ia ser um alvo perfeito para os carros dali a alguns segundos. Mesmo apoiado nela, ele parecia que ia desabar a cada passo. Quando chegaram ao outro lado, o peito dele chiava como uma cafeteira e a voz saiu como um suspiro quando ele disse obrigado.

“De nada. Bom dia para o senhor.”

Quando ela se virou para retomar seu caminho, ele, já com melhor fôlego, perguntou:

“Moça, sabe que você é bem gostosa?”

A resposta dela não o abalou. Com um sorriso instantaneamente rejuvenescido, ele contrapropôs:

“Eu vou. Eu vou. Não precisa mandar de novo. Mas só vou se você for comigo, minha delícia.”

***


Quando a passarela foi inaugurada, os pedestres descobriram que, além da segurança, tinham agora uma esplêndida vista da ampla e arborizada praça à qual, no tempo em que lutavam para escapar dos carros lá embaixo, não prestavam atenção. Nos primeiros dias depois da inauguração, era comum ver gente debruçada no parapeito, soltando interjeições de admiração, como se também a praça fosse obra recente. Num desses dias, um office-boy, olhando lá de cima, imaginava como seria bom passear de bicicleta ali, num domingo. Já economizava mentalmente para comprar a bicicleta, quando viu passar lá embaixo uma mulher de vestido curto que ele, se fosse mais íntimo dos adjetivos, definiria como magnífica. Logo esqueceu a bicicleta e se pôs a pensar em empreendimentos maiores. Encostado ao lado dele, estava um sessentão que comentou:

“Mas que maravilha, hem?”

“É. O senhor viu só que pernas?”

O homem cuspiu palavras e perdigotos num jato só:

“Pernas? Que pernas? Eu estou falando da praça, seu desavergonhado!”

***

Eu estava na Avenida do Cursino, no início de um quarteirão ocupado por dezenas de pequenas lojas de autopeças. A manhã estava feia e chuvosa, mas nem pensei em reclamar de nada, porque à minha frente ia uma mulher dessas que costumamos chamar de inesquecíveis. Quando ela passou diante de uma das lojinhas, a chuva engrossou e os dois homens que estavam na porta entraram apressados. Mas, antes, um disse:

“Melhor que o sol, é ou não é?”

Achei justo o elogio. Só uma mulher como aquela poderia despertar a poesia num homem simples.

“Ô! Bem melhor!”, respondeu o outro.

E o primeiro, para meu desapontamento, concluiu:

“Ninguém estava mais aguentando aquele calor.”

Raul Drewnick

terça-feira, setembro 22

Sem medo de bicho-papão

 


O grito desaparecido

Faz semanas que o louco não passa na avenida. Não à hora em que passava, no meio da madrugada, se valendo do silêncio do bairro para redobrar o alcance do seu grito. Não morreu de frio, isso é certo, porque, nas noites mais severas de inverno, ele ainda passava, sensivelmente mais louco, mais desesperado, nos amaldiçoando um por um. Então, uma noite, ele não veio. Outra noite e nenhum sinal dele. E daí para uma semana, duas semanas, três. Tem isso relação com as sirenes de polícia no lugar dos gritos? Ou tem a ver com uma pandemia desacreditada, o vírus correndo solto? Ou será que, num dos seus surtos circulantes, o louco topou com um desses neo-nazis de rua, caçadores de pretextos? O fato é que, depois de desaparecer, ele ressurgiu apenas uma vez, e à luz do dia, abafado pelo trânsito da avenida. Desde então se faz notar por sua falta. É sua falta que grita. Como se tivesse levado com ele, com seu berro animal, a urgência de uma revolta onde cabe tudo o que dói até o ponto do insuportável, uma revolta que não espera ocasião nem negociação: rebenta, revolta-se. Como se tivesse deixado conosco uma paz estranhíssima e imerecida, que fica ainda mais absurda quando cantam os passarinhos. Todos os sons da indignidade escamoteados, os sons da violência bem-sucedida escondidos. À falta do louco, nós do bairro temos essa quase alucinação coletiva de uma calma com passarinhos. Que ele volte, o nosso louco, o nosso bode-expiatório, para nos amaldiçoar como merecemos, e também para drenar os nossos gritos, e fazê-los circular pela cidade, como prévia dos jornais do dia, todo dia.

Mariana Ianelli

Que haja luz!

 

Agustina Barriola

Assim começa o livro...

Nasci no ano de 1632, na cidade de York, de uma família boa, embora não original daquela área, sendo meu pai um estrangeiro de Bremen, que se estabeleceu primeiro em Hull. Acumulou boa fortuna com o comércio e, deixando esse ofício, instalou-se depois em York, onde se casou com minha mãe, cuja família chamava-se Robinson, muito boa família daquela região, ao que devo meu nome de Robinson Kreutznaer; todavia, devido à corrupção costumeira das palavras na Inglaterra, somos hoje chamados, melhor, nós mesmos nos chamamos, e nos assinamos, Crusoé, como meus companheiros sempre me chamaram.

Tive dois irmãos mais velhos, um dos quais chegou a tenente-coronel de um regimento inglês de infantaria em Flandres, comandado inicialmente pelo famoso Coronel Lockhart, e foi morto na batalha perto de Dunquerque contra os espanhóis.

O que foi feito do meu segundo irmão, nunca vim a saber mais que meu pai ou minha mãe jamais saberiam do que ocorreu comigo. Sendo o terceiro filho da família, e sem formação em nenhum ofício, desde muito cedo minha cabeça começou a se encher de pensamentos errantes. Meu pai, que era muito idoso, deu-me a devida quantidade de instrução, até onde geralmente chega a formação em casa e numa escola gratuita de província, e me destinava ao Direito; mas a mim não me satisfaria nada menos que seguir para o mar, e essa minha inclinação me opôs com tanta energia à vontade, ou melhor, às ordens do meu pai, e a todas as admoestações e persuasões da minha mãe e outros amigos, que parecia haver algo de fatal naquela propensão da Natureza, conduzindo diretamente à vida de infortúnios que mais adiante haveria de me caber.

Meu pai, homem sábio e grave, deu-me sérios e excelentes conselhos em oposição ao que antevia como meu destino. Chamou-me um dia de manhã a seus aposentos, aos quais estava confinado pela gota, e me cumulou de rogos fetuosos em torno do tema. Perguntou quais motivos além da mera inclinação pela vida errante eu tinha para deixar a casa paterna e a terra natal, onde podia
ter certeza de um bom começo e da possibilidade de melhorar sempre minha posição recorrendo tão somente ao zelo e à diligência, que me valeriam uma vida airosa e confortável. Disse-me ele que eram homens de fortuna desesperada, por um lado, ou com fortunas superiores e cheias de aspirações, por outro, os que seguiam para o estrangeiro em busca de aventuras, tentando ascender à custa da iniciativa e tornar-se famosos em empreendimentos fora do caminho comum; que eu era de condição média, ou o que se pode chamar da camada superior dos homens inferiores, que ele descobrira por longa experiência ser a melhor posição do mundo, a mais adequada à felicidade humana, poupada dos sofrimentos e das asperezas, dos trabalhos e das dores da fração mecânica da humanidade, e dos embaraços que o orgulho, o luxo, a ambição e a inveja podem trazer para a camada superior. Disse-me que uma coisa bastava para avaliar a felicidade desse estado, a saber: que era sempre essa a condição de vida invejada por todos os demais; que muitas vezes os reis lamentavam os efeitos terríveis de terem nascido para os grandes acontecimentos, desejando na verdade terem nascido a meio caminho entre os dois extremos, a igual distância do pequeno e do grande; que muitos sábios afirmavam ser esse o justo padrão da verdadeira felicidade; e que ele rezava para nunca se ver às voltas com a pobreza nem com riquezas.
Daniel Defoe, "Robinson Crusoé"

sábado, setembro 19

Nosso 'planeta'

 


Pit-stop é preciso

Quando encontro alguma dificuldade no curso da leitura, não fico a roer as unhas; passo adiante, depois de ter feito uma ou duas tentativas de resolvê-la. Se insistisse nela, iria perder-me, e ao meu tempo, pois tenho espírito resoluto e impaciente.

 O que não vejo da primeira vez, menos o vejo se insistir. Nada faço sem alegria; o esforço por demais seguido e obstinado ofusca, aflige e fatiga o meu entendimento. A minha vista confunde-se e cansa-se. É-me mister dar-lhe alguma distração, do mesmo modo por que, para avaliar o lustro do escarlate, recomendam-nos que lhe passemos os olhos de relance, e que voltemos a fazê-lo diversas vezes, de modo súbito e reiterado

Michel de Montaigne, "Ensaios"

Na beira da estrada

 


Assim começa o livro ...

Na rua Gorókhovaia, num daqueles casarões cujo número de habitantes equivale à população de todo um povoado da zona rural, Iliá Ilitch Oblómov estava deitado na cama de seu quarto, pela manhã.

Tratava-se de um homem de uns 32 anos, estatura mediana, aspecto simpático, olhos cinzentos e escuros, mas com o rosto privado de qualquer ideia definida e sem nenhum traço de concentração. O pensamento, como um pássaro solto, vagava pelo rosto, voava sobre os olhos, pousava nos lábios entreabertos, escondia-se nas rugas da testa, depois desaparecia por completo, e então em todo o seu rosto cintilava a luz neutra da indiferença. Do rosto, a indiferença se transmitia para a atitude de todo o corpo, até as pregas do roupão.

Às vezes seu olhar era ofuscado por uma expressão que parecia de cansaço ou de tédio; mas nem o cansaço nem o tédio conseguiam, por um minuto sequer, afastar do rosto a mansidão, que era a expressão predominante e característica não só do rosto, mas de todo o espírito; e o espírito rebrilhava com muita clareza nos olhos, no sorriso e em todos os movimentos da cabeça e das mãos. Um observador frio e superficial que olhasse de passagem para Oblómov diria: "Deve ser um simplório, um ingênuo!". Alguém mais profundo e mais receptivo, que contemplasse demoradamente seu rosto, teria se afastado com um sorriso e uma reflexão benévola.

A cor do rosto de Iliá Ilitch não era rubra, nem morena, nem francamente pálida, mas sim indefinida, ou assim parecia talvez porque Oblómov engordara demais para a sua idade: o motivo era a falta de movimento ou de ar puro ou, quem sabe, de ambas as coisas. A julgar pela cor desbotada e excessivamente branca do pescoço, pelas mãos pequenas e roliças, pelos ombros moles, seu corpo, no conjunto, parecia afeminado demais para um homem.

Seus movimentos, mesmo quando estava inquieto, também eram contidos pela brandura e por uma preguiça a que não faltava certo tipo de encanto. Quando no rosto perpassava uma nuvem de preocupações do espírito, o olhar se nublava, surgiam rugas na testa, tinha início um jogo de nuances de dúvida, de pesar, de medo; mas raramente aquela inquietação se consolidava na forma de uma ideia determinada e mais raramente ainda se transformava numa intenção. Toda inquietação se resolvia com um suspiro e se apaziguava na apatia ou num cochilo.

E como as roupas domésticas de Oblómov casavam bem com as feições tranquilas do rosto e com o corpo afeminado! Vestia um roupão de tecido persa, uma autêntica túnica oriental, sem a menor alusão à Europa, sem franjas, sem arremates de veludo, sem cintura, muito folgado, a tal ponto que mesmo Oblómov poderia se enrolar duas vezes no roupão. As mangas, de perfeita feição asiática, subiam dos dedos até os ombros cada vez mais largas. Embora o roupão tivesse perdido seu frescor original e em certos pontos houvesse trocado seu lustro primitivo e natural por um outro, artificial, ainda conservava no todo o brilho de uma beleza oriental e a resistência do tecido.

Aos olhos de Oblómov, o roupão possuía uma infinidade de méritos inestimáveis: era macio, flexível; o corpo não sentia seu toque; como um escravo obediente, ele se submetia ao mais ínfimo movimento do corpo.

Em casa, Oblómov sempre ficava sem gravata e sem colete, porque adorava o desembaraço e a liberdade. Seus sapatos eram compridos, macios e largos; quando, sentado na cama, baixava os pés no chão, sempre se calçava na primeira tentativa, mesmo sem olhar.

Ficar deitado não era para Iliá Ilitch nem uma necessidade, como é para um doente ou para alguém que deseja dormir, nem um acaso, como é para alguém que está cansado, nem um prazer, como é para um preguiçoso: tratava-se de um estado normal. Quando estava em casa -e quase sempre estava em casa-, ele ficava o tempo todo deitado, e sempre no mesmo quarto onde o encontramos e que lhe servia de dormitório, escritório e sala de visitas. Sua casa tinha ainda três quartos, mas Oblómov raramente punha os olhos naqueles cômodos, exceto pela manhã, e nem todos os dias, só quando o criado varria seu quarto, o que ele não fazia diariamente. Naqueles cômodos, a mobília estava coberta por panos e as cortinas ficavam fechadas.

Desde o primeiro olhar, o quarto onde Iliá Ilitch estava deitado parecia esplendidamente mobiliado. Tinha uma escrivaninha de mogno, dois sofás estofados com seda, um lindo biombo com bordados de pássaros e de frutas que não existem na natureza. Tinha cortinas de seda, tapetes, alguns quadros, peças de bronze, porcelana e uma infinidade de quinquilharias bonitas.

Mas o olho experiente de uma pessoa de bom gosto, com um só olhar de relance para tudo o que havia ali, identificaria o mero desejo de guardar o decoro e manter as indispensáveis aparências, tão só para não contrariá-las. Oblómov, está claro, tinha apenas isso em mente quando mobiliou seu escritório. Um gosto apurado não se contentaria com aquelas cadeiras pesadas e deselegantes de mogno, com as instáveis estantes de livros. O encosto de um sofá tinha tombado para trás, e o verniz da madeira havia descascado em alguns pontos.

Os quadros, os vasos e os objetos decorativos mostravam esse mesmo aspecto.


O próprio dono da casa, porém, olhava para a decoração de seu quarto de maneira fria e indiferente, como se perguntasse com os olhos: "Quem escolheu e trouxe tudo isso para cá?". Devido à maneira fria como Oblómov encarava sua propriedade, e talvez também devido à maneira ainda mais fria como seu criado Zakhar a encarava, o aspecto do quarto, quando observado com toda a atenção, revelava o descuido e a negligência que reinavam ali.

Nas paredes, em torno dos quadros, pendia uma teia de aranha semelhante a uma grinalda cheia de poeira; os espelhos, em lugar de refletir os objetos, poderiam servir antes como pergaminhos para escrever recados e lembretes no pó depositado sobre eles. Os tapetes estavam manchados. Sobre o sofá, jazia uma toalha esquecida. Na mesa, pela manhã, era raro não estar o prato do jantar da véspera, ainda não removido, com o saleiro, um ossinho chupado e migalhas de pão espalhadas.

Não fosse aquele prato, e um cachimbo recém-fumado e encostado à cama, ou não fosse o próprio dono da casa deitado na cama, poderíamos pensar que ali não morava ninguém -de tanto que tudo estava empoeirado, desbotado e, no geral, privado dos traços vivos da presença humana. Nas estantes, de fato, havia dois ou três livros abertos, um jornal com as folhas espalhadas, na escrivaninha havia um tinteiro e penas de escrever; mas as páginas em que os livros estavam abertos se encontravam cobertas de pó e amareladas; era evidente que os livros tinham sido abandonados havia muito tempo; o exemplar do jornal era do ano anterior e, se alguém introduzisse uma pena no tinteiro, dali talvez saísse somente, acompanhada por um zumbido, uma mosca assustada.

Ao contrário do costume, Iliá Ilitch acordara muito cedo, às oito horas. Algo o deixara muito ansioso. No rosto, surgiam alternadamente o medo, o tédio e a irritação. Era evidente que uma luta interior estava em curso e que a razão ainda não viera em seu socorro.

A questão era que, na véspera, Oblómov recebera da aldeia, pelas mãos de seu estaroste, uma carta de conteúdo desagradável. Sabe-se muito bem que tipo de coisas desagradáveis pode escrever um estaroste: fracasso da colheita, atraso no pagamento, redução das rendas etc. Embora o estaroste tivesse escrito para seu patrão no ano anterior, e também dois anos antes, cartas exatamente daquele mesmo teor, esta última produziu um efeito tão forte quanto o de qualquer surpresa desagradável.

E do que se tratava? Era preciso pensar em como conseguir meios para tomar certas providências. De resto é necessário fazer justiça à preocupação de Iliá Ilitch com seus negócios. Ao receber a primeira carta desagradável do estaroste, alguns anos antes, ele já começara a elaborar em pensamento um plano para diversas medidas e melhorias na organização de sua propriedade rural.

Aquele plano pressupunha a introdução de várias novas medidas econômicas, políticas e de outras naturezas. Mas o plano ainda estava longe de ser concluído, e as cartas desagradáveis do estaroste repetiam-se todos os anos, empurravam-no para a atividade e, em consequência, perturbavam a calma. Oblómov tinha consciência de que era necessário pôr em prática algo decisivo ainda antes de concluir seu plano.

Assim que acordou, ele prontamente resolveu que iria levantar-se, lavar-se e, após beber seu chá, refletir de modo adequado, chegar a alguma conclusão, anotá-la e, no geral, ocupar-se com aqueles assuntos da maneira devida.

Continuou deitado por mais meia hora, atormentando-se com aquela intenção, mas depois considerou que ainda teria tempo de fazer aquilo após o chá e que poderia muito bem tomar o chá como de costume na cama, tanto mais porque nada o impedia de pensar e continuar deitado.

Assim fez. Depois do chá, tratou de baixar as pernas e quase se levantou; lançou um olhar para os sapatos e até começou a esticar um pé na direção do sapato junto à cama, mas logo em seguida recuou.
Ivan Aleksandrovich Goncharov "Oblómov"

sexta-feira, setembro 18

Pronto para a degustação

 

Marta Mayo

Quando a vida se abre...

 Maria Luisa Torcida

Livro, quando te fecho, abro a vida
Pablo Neruda

Leituras soníferas

 

Guido Scarabottolo

A outra

Ntavase vivia numa aldeia distante, lá para os lados de Quissangira. Tinha quinze anos quando engravidou. Só ela sabia quem era o pai. Em casa perguntaram — Foi um soldado? — E Ntavase negou num silencioso menear de cabeça.

A criança nasceu torcida, a cabeça rodando sem assento nem descanso sobre o pescoço. — Desfaz-te dela— mandaram os parentes. Recusou. Foi expulsa de casa. Era culpa dela que a criança fosse assim anormal. Aquele menino tão malquisto era a punição pela sua infidelidade.
— Que infidelidade? — perguntou Ntavase — Como posso ser infiel se não sou esposa de ninguém?
— Ainda pior — disseram os familiares. — Começaste a ser infiel antes mesmo de casar.
Ntavase esperou que a mãe saísse para buscar água e suplicou por clemência: o homem que a engravidara era de fora. Começou por prometer. E acabou por ameaçar. Para o homem aquilo foi um momento. Para ela foi um tormento sem fim.
Ocupada em equilibrar a lata sobre a cabeça, a mãe falou sem tirar os olhos do caminho.
— Vais ser mãe e ainda não és mulher — disse. — E agora, que outro homem vamos escolher para teu marido?

Chegadas a casa, Ntavase ajudou a pousar a lata no chão. A mãe aceitou então que ela dormisse no quintal. Ntavase arrastou uma esteira e estendeu-a sob o alpendre, a uns metros da casa.
— A criança dorme dentro — sentenciou a mãe. —Tu estás suja, não entras.
— E como lhe dou o leite? — perguntou a filha.
— Quando ele chorar, nós chamamos-te — respondeu a mãe.
Era madrugada, o pai veio ter com ela. Ficou à sua frente, vendo-a a amamentar a criança. Esperou até que, saciado, o menino adormecesse.
— Estão aqui as tuas coisas — disse o pai deixando tombar um saco de serapilheira — Desaparece daqui, estás suja, vais trazer desgraças.

O homem entrou em casa e bateu a porta com a autoridade de quem encerra fronteiras. Ntavase vazou o saco e aproveitou a serapilheira para amarrar a criança às costas. E tomou a estrada para a vila de Quissangira. Pelo caminho cruzou-se com uma vizinha que vaticinou — Vai para essa terra que é grande. Lá as mulheres estão autorizadas a ter o seu próprio nome — A jovem Ntavase acenou afirmativamente. Mas ela viajava por outra razão. Era em Quissangira que morava o pai da sua criança.

Chegada à vila, Ntavase não se apresentou logo no seu destino. Com as próprias mãos, construiu um abrigo nas traseiras da estação de comboios. Entre quatro velhas chapas de zinco, instalou-se ela e o seu pequeno filho. Esperou que o pai da criança soubesse da sua presença e a fosse visitar.

Essa visita nunca chegou a acontecer. A criança foi crescendo, cada vez mais aleijada, a cabeça rodopiando mais e mais sobre os pequenos ombros. As pessoas afastavam-se, reclamando que a intrusa era portadora de má sorte. Durante todo esse tempo, a jovem mãe viveu naqueles dois metros quadrados de solidão. O chefe da estação ferroviária dava-lhe uns trocos sempre que ela coletasse lixos ao longo da linha férrea. Na berma dos carris, Ntavase abria uma cova e ali enterrava os desperdícios dos outros.

Sempre que ia trabalhar – e não tendo ninguém para cuidar do filho – a mulher cavava um buraco no chão do seu casebre, colocava a criança dentro da cova e ajeitava a areia a improvisar uma almofada em volta do delicado pescoço. Um dia viu que o menino criava raízes. Deu-lhe de beber. Era noite, o menino abriu a boca e a lua entrou inteira no seu corpo. Ainda quis tocar nele, para se despedir, mas as mãos não lhe obedeceram. Nessa madrugada, com as próprias unhas, Ntavase abriu uma cova num terreno baldio. Sabia que esse serviço não teria nunca fim. Para enterrar um filho é preciso uma cova maior que o mundo.

Foi então que, num final de tarde, Ntavase se apresentou em nossa casa. Vi essa desconhecida sair do arvoredo, vi-a a atravessar o quintal e sentar-se numa esteira. Apontou para o meu pai e disse — Deixaste a lua dentro de mim. Mas essa lua nasceu apenas por metade. E essa metade era muito pouca.

Foi assim que ela falou. E todos entenderam o recado da intrusa. Aquele menino, tão falecido, era meu irmão. A minha mãe levantou-se e atravessou o pátio num passo lento, como se estivesse a medir o tamanho do mundo. Entrou em casa e escutámos um arrastar de móveis. Voltou pouco depois com uma sacola nas mãos.
— Vais viver no meu quarto — ordenou a mãe à recém-chegada.
— Para o teu quarto? — perguntou, atónito, o meu pai. E repetiu, quase sem voz — O teu quarto?
De rosto erguido, a minha mãe enfrentou o marido. Os olhos do meu pai foram-se encolhendo como se nunca mais os fosse usar.
— Só voltas depois de dares nome a esse menino que morreu — ordenou secamente a minha mãe dirigindo-se ao meu pai e entregando-lhe a sacola que trouxera de dentro de casa — Regressa quando fores pai dessa criança.

Uma raiva de séculos se embrulhou nos dedos do meu velho. Ficou um tempo segurando o gesto e a palavra. Depois, proclamou, elevando o peito — Vou porque quero ir — E acrescentou, olhando para mim, como se fosse a sua derradeira lição — Se ficasse dava cabo delas as duas.

Fechou o portão do quintal e, com passo largo, foi desaparecendo pelo atalho. Escutei as suas injúrias enquanto pontapeava pedras, patos e galinhas.
— Vai dormir, meu filho — sentenciou a mãe. — Mas antes despede-te da tua mãe.

Dei um passo na direção dos seus braços, mas ela corrigiu e apontou para a intrusa — Despede-te não de mim. Mas desta outra tua mãe.

E pus-me em bicos de pés para abraçar aquela que acabava de chegar. A moça demorou a envolver-me nos seus braços. Mas depois, deixou-se ficar nesse abraço como se eu estivesse nascendo do seu corpo.

Durante incontáveis dias, fiquei na varanda espreitando pelo regresso do meu pai. Nessa infinita espera aprendi a chamar de saudade ao medo de que ele, um dia, voltasse para nossa casa.
Mia Couto
(*) Escrevo esta crónica no dia anterior ao julgamento em Maputo de um homem que violou uma menina de 10 anos. Ntavase é o nome fictício adotado por uma campanha de várias organizações da sociedade civil para designar todas as jovens que foram vítimas de violência sexual.

quinta-feira, setembro 17

A maior perda

Edward B. Gordon
Ler nos permite entrar na cabeça de pessoas que não são como nós, que vivem em outros lugares ou períodos históricos, que têm outro gênero ou cor de pele. Isso nos torna empáticos. É difícil odiar uma pessoa quando entendemos como ela se sente. É por isso que a leitura é importante. 

 (...) Mas posso sugerir ao governo brasileiro que pense bem se o pouco que ele vai ganhar em arrecadação compensa a perda de leitores e do incentivo à empatia