O centenário de nascimento de Clarice Lispector, que será celebrado em 10 de dezembro, acaba de ganhar a sua primeira grande novidade editorial. Chegando hoje às livrarias, “Todas as cartas” (Rocco) forma a mais completa edição de sua correspondência até aqui, trazendo uma centena de missivas inéditas em livro. Reunidas em ordem cronológica no volume organizado por Pedro Karp Vasquez, elas compõem um perfil ampliado da escritora brasileira de origem ucraniana — a editora já lançou “Todos os contos” (2016), organizado por Benjamin Moser, e “Todas as crônicas” (2018), por Vasquez.
Nas cartas, Clarice conversa com editores, jornalistas, amigos, familiares e — ponto alto do livro — colegas de escrita, em diferentes fases de sua vida. Com eles, troca inquietações existenciais, articula sas frustrações criativas e expõe intimidades.
Fica clara a sua admiração pelo contemporâneo João Cabral de Melo Neto (com quem, aliás, divide centenário este ano). “Saio de sua poesia com o sentimento de aprofundamento da vida”, escreve em 1957 ao autor de “Morte e vida severina”. Ambos iniciavam na carreira (ela estava em seu terceiro livro), e a jovem busca respostas para suas angústias da criação: “Não sei como chegar a outras coisas, mas preciso tanto. Será que passou o tempo das descobertas?”.
Já com os mais velhos (como o crítico Sérgio Milliet e o modernista Mário de Andrade), Clarice exibia uma postura deferente, lembra Teresa Montero, uma das biógrafas de Clarice e responsável pelas notas bibliográficas do livro.
— No contato com os críticos, servia como uma avaliação sobre o que ela estava escrevendo naquele momento — lembra Teresa, autora de “Eu sou uma pergunta — Uma biografia de Clarice Lispector” (2000). — Como Clarice valorizava as conversas com o Arthur Ramos (antropólogo e psiquiatra) e Tasso da Silveira (escritor)! Ela tinha fome de aprender, de trocar.
A troca com Mário de Andrade, porém, é frustrada. Em 1943, Clarice lhe enviou uma cópia de seu livro de estreia, “Perto do coração selvagem”. Como não obteve retorno, mandou um bilhete conformado. “O fato do senhor não ter criticado o meu livro serve evidentemente de resposta, e eu a compreendo”. A verdade só veio à tona anos depois: Andrade tinha lido o romance e chegou a enviar uma carta, que a autora não recebeu.
Se no começo de sua trajetória literária Clarice buscava o aval de nomes consagrados, mais tarde a situação se inverte. Era ela a veterana procurada pelos jovens escritores. Um deles, o pernambucano Augusto Ferraz, estimulou-a a voltar ao Recife, cidade em que cresceu e que não via desde os seus 14 anos. A julgar pelas cartas, o contato com as novas gerações a energizava.
— A viagem em maio de 1976 foi uma das mais marcantes de sua vida — conta Teresa. — Tanto que ela escreveu “A hora da estrela” movida por essa visita. Segundo minhas pesquisas, a ideia da Macabeia já estava no seu pensamento e creio que estimulada pelas visitas de Augusto, que a encontrou no Rio ao menos duas vezes antes de ela aceitar o convite.
Outro jovem que se aproximou de Clarice foi o escritor e artista plástico Mora Fuentes, parceiro de Hilda Hilst. A correspondência entre os dois surpreende pelo romantismo, mas a relação teria sido apenas platônica. Ele tinha 23 anos e buscava aproximação com uma celebridade; ela, 54, havia se encantado com os quadros do artista. Ex-esposa de Fuentes, Olga Bilenk costuma dizer que ele teria sido o último “namorado” de Clarice — entre aspas mesmo, já que só se encontraram pessoalmente uma única vez.
— Há um jogo de sedução na correspondência entre os dois — explica Pedro Vasquez. — Mas o que se vê é uma paixão exagerada, puramente epistolar, sem qualquer tipo de interesse romântico real. A partir de 1967, Clarice para de se envolver romanticamente (no ano anterior, ela havia sofrido graves queimaduras em um incêndio em seu apartamento). Quando lhe pedem para escrever sobre sua vida sexual, nos anos 1970, ela responde que não pode dormir com ninguém, “porque meu corpo é queimado”.
“Todas as cartas” reafirma uma Clarice à frente de seu tempo. Embora reservada em sua intimidade, ela sempre teve movimentos ousados. Separou-se em 1959, quando sequer existia divórcio legal. Em uma carta a Lygia Fagundes Telles, em 1977, a escritora lamenta que mulheres tivessem pouco espaço no mundo literário, e diz que gostaria de indicar a amiga à ABL. “Estão achando que sugiro mulheres demais? Não, é que a Academia Brasileira de Letras tem uma grande dívida para com as mulheres”, escreve ela para Lygia, que seria eleita para a ABL em 1985.
— Clarice circulou em ambientes predominantemente masculinos — lembra Teresa. — Cursou Direito, frequentou redações e, no mundo da diplomacia, apesar de o marido ser o diplomata, ela conviveu com as nossas primeiras mulheres diplomatas. Certamente isso serviu como referência para ela pensar de uma nova maneira o espaço que as mulheres ocupavam.