Andei tanto que às tantas encurralei-me em mim, tropecei nas próprias pernas, fiz uma estátua de pedra da minha própria esfíngica pessoa, ditei as leis, lavrei em ata as deliberações e acreditei nessa ideia de mim e, de tão lento, de tão lento, nem dei pelo tempo tão veloz, tão feroz, o tempo que é um novelo que se faz e se desfaz em nós, e no meu caso foram nós em espiral para dentro, parece que o tempo andou às voltas como uma minhoca que às tantas engole a cauda, ou seja, o tempo passou e não passou, voltou tudo ao mesmo, os dias foram-se comendo a eles próprios e agora o tempo é o mesmo só que mais gordo, como eu, tem sulcos na pele da testa e à volta dos olhos, como eu, nos cantos da boca, como eu, o tempo está igual mas mais balofo, andou às voltas e encurralou-se a ele próprio, como eu, o tempo tem 72 anos, como eu, cabelo todo branco e por baixo de si próprio, despindo camadas de nada, descascando as camadas de casca de coisa nenhuma de que se foi tapando, há de estar um tempo novo, um tempo mais cristalino, como eu, que passei a vida a enganar o tempo lá na loja de artigos de pesca, a vender coisa nenhuma a pessoa alguma, meia dúzia de pescadores de recreio a apanhar tainhas e a devolvê-las furadas ao rio, também eles a engordar o seu tempo com coisa nenhuma, as pobres das tainhas é que pronto, furadas de morte, para elas o tempo é um novelo que se faz e se desfaz em nós, e agora acaba-se-lhes o fio, tal como os nossos, nós os dois aqui, e eu não sei se me faço entender, acho que os nossos novelos do tempo, que no fundo são o dia a dia, não são o quotidiano, o ramerrame, como lhe chamam, acordar com o despertador, lavar a cara e marchar esquerda-direita, esquerda-direita, a preceito da marcha dos homens, e das mulheres, claro, dos homens e das mulheres, macacos nus, macacas nuas, lá vamos nós todos nus só com roupa, agora já me estou a perder, queria dizer que os nossos fios do tempo andaram sempre em linhas paralelas, que não se tocam, ou só se tocam no infinito, mas como de infinito temos pouco, o que eu se calhar ia sugerir é que, como do futuro ninguém sabe, talvez o nosso tempo ainda fosse a tempo de termos para todo o pouco sempre que nos resta, o mesmo passado, ou seja, de agora em diante teríamos o mesmo passado. Se achasse bem, claro.
domingo, setembro 13
Novelo
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