A noite brilha, lisa e transparente como um globo de vidro, com a Lua acesa, muito redonda, e constelações rodopiando desamparadas no largo céu. A menina sabe que atrás das dunas começa uma floresta de arbustos espinhosos, ainda mais impenetrável do que a pesada escuridão do mar. Sente-se naquela praia como um molusco em sua concha. Ela que coleciona conchas, guardando-as em pequenas caixas de vidro no seu quarto, e que tantas vezes se imagina construindo em torno do seu corpo frágil, camada após camada de carbonato de cálcio, uma armadura que a proteja dos predadores.
Desde bebé que Kalumba-Tubia conversa com vaga-lumes. Na verdade, com todo o tipo de animais, mas especialmente com aqueles capazes de voar. No início, os pais riam-se muito ao ouvi-la dialogar com os pássaros, os besouros e as borboletas. Depois, começaram a ficar preocupados. Um psicólogo tranquilizou-os: “Não há nada de errado com a menina. Conversar com os animais é uma forma que ela encontrou de estabelecer vínculos com o mundo que a rodeia. Isso faz com que se sinta segura.”
Anos mais tarde, adolescente, compreendeu que seria melhor manter essas conversas em segredo. Fez-se mulher e artista (cria instalações que dançam nas praias, movidas pelo vento) e pouco a pouco o seu corpo secou, dobrou-se, engelhou-se, mas Kalumba-Tubia nunca deixou de conversar com bichos e plantas. Também nunca esqueceu a praia da sua infância. Sempre que se sente mais assustada, fecha os olhos e volta para lá. Em casa – na casa que construiu numa outra praia, muito distante da primeira –, encheu as paredes com estantes, e essas muitas estantes com caixinhas de vidro. Milhares de conchas de todos os formatos, de todas as cores, brilhavam dentro das caixas. Por vezes perguntavam-lhe:
– Porque colecionas conchas?
– Porque não posso colecionar o mar.
Na verdade, colecionava conchas para troçar da morte, mas ainda não sabia disso. Uma noite, vieram homens armados. Quebraram as caixas de vidro. Lançaram fogo à casa. Kalumba-Tubia saíra para conversar com os vaga-lumes e só por isso escapou com vida. Nos anos seguintes, reconstruiu a casa e voltou a enchê-la de conchas.
Duas enfermeiras afadigam-se agora à volta dela. Lavam-na, penteiam-na, massajam-lhe os músculos lassos. Conversam uma com a outra como se ela não estivesse ali:
– Esta não quer morrer – diz a primeira.
– Quantos anos terá? – quer saber a outra.
– Não faço ideia. É a mais velha do lar. Já era muito velha quando aqui cheguei.
Kalumba-Tubia escuta-as e sorri para dentro. Está de novo na praia da sua infância. É a menina que corre na areia, que salta nas ondas, que se estende de costas nas rochas ásperas, olhando a Lua redonda e as estrelas zumbindo na madrugada. O vaga-lume pousa-lhe no ombro, “morrer é perder o espanto”, repete e desvanece-se sem escutar a resposta dela. Se isso for verdade, não morrerei nunca, pensa a menina, dói-me a alma de tanto espanto.
Kalumba-Tubia olha para os dias, ao longe, como olha para as ondas que se aproximam e logo se desmancham, sem força, na areia das praias. Em todos os dias que vê, cavalgando a espuma branca do tempo, encontra motivos para admiração. Vivo embriagada de espanto, pensa, e dá-se conta de que tanto a surpreende a luz como a escuridão. Nunca se habituou à intriga, à violência, à estupidez dos homens. Atravessou tantos anos e a maldade ainda a horroriza, como um tigre com três cabeças. Há homens que são tigres com três cabeças. Eventualmente, também a Natureza gera tigres com três cabeças. Ela sabe disso. Não é ingénua a ponto de confiar mais nos tigres do que nos homens. E depois pensa nas surpresas felizes que a vida lhe traz, tantas vezes através de caminhos equivocados, como, depois que começou a perder a visão, a forma distorcida dos objetos, ou os sons que antes não escutava, ou os sonhos, ou o veludo da noite roçando na Lua – e então percebe que está preparada para largar a concha e partir.
Amanhã alguém encontrará a concha vazia da vida dela. Levando-a ao ouvido talvez consiga escutar as vozes dela e dos pirilampos; as vozes todas que recolheu e continua a ouvir nas manhãs inaugurais da sua infância.
– Porque colecionas conchas?
Kalumba-Tubia achava a pergunta absurda. Fazia um esforço para responder delicadamente:
– Porque não posso colecionar o mar.
Na verdade, colecionava conchas para troçar da morte, mas ainda não sabia disso. Uma noite, vieram homens armados. Quebraram as caixas de vidro. Lançaram fogo à casa. Kalumba-Tubia saíra para conversar com os vaga-lumes e só por isso escapou com vida. Nos anos seguintes, reconstruiu a casa e voltou a enchê-la de conchas.
Duas enfermeiras afadigam-se agora à volta dela. Lavam-na, penteiam-na, massajam-lhe os músculos lassos. Conversam uma com a outra como se ela não estivesse ali:
– Esta não quer morrer – diz a primeira.
– Quantos anos terá? – quer saber a outra.
– Não faço ideia. É a mais velha do lar. Já era muito velha quando aqui cheguei.
Kalumba-Tubia escuta-as e sorri para dentro. Está de novo na praia da sua infância. É a menina que corre na areia, que salta nas ondas, que se estende de costas nas rochas ásperas, olhando a Lua redonda e as estrelas zumbindo na madrugada. O vaga-lume pousa-lhe no ombro, “morrer é perder o espanto”, repete e desvanece-se sem escutar a resposta dela. Se isso for verdade, não morrerei nunca, pensa a menina, dói-me a alma de tanto espanto.
Kalumba-Tubia olha para os dias, ao longe, como olha para as ondas que se aproximam e logo se desmancham, sem força, na areia das praias. Em todos os dias que vê, cavalgando a espuma branca do tempo, encontra motivos para admiração. Vivo embriagada de espanto, pensa, e dá-se conta de que tanto a surpreende a luz como a escuridão. Nunca se habituou à intriga, à violência, à estupidez dos homens. Atravessou tantos anos e a maldade ainda a horroriza, como um tigre com três cabeças. Há homens que são tigres com três cabeças. Eventualmente, também a Natureza gera tigres com três cabeças. Ela sabe disso. Não é ingénua a ponto de confiar mais nos tigres do que nos homens. E depois pensa nas surpresas felizes que a vida lhe traz, tantas vezes através de caminhos equivocados, como, depois que começou a perder a visão, a forma distorcida dos objetos, ou os sons que antes não escutava, ou os sonhos, ou o veludo da noite roçando na Lua – e então percebe que está preparada para largar a concha e partir.
Amanhã alguém encontrará a concha vazia da vida dela. Levando-a ao ouvido talvez consiga escutar as vozes dela e dos pirilampos; as vozes todas que recolheu e continua a ouvir nas manhãs inaugurais da sua infância.
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