quarta-feira, setembro 2

Tocar-te com um dedo na pontinha do nariz

O começo de um livro é sempre muito difícil para mim. É um organismo vivo, independente, com as suas próprias leis que em geral me são estranhas e às vezes me surpreendem, as suas exigências, as suas regras. Apenas o modo de respirar me é familiar, nada do resto lhe conheço e o texto vai-se construindo apesar de mim, embora as palavras me custem os olhos da cara, comigo sempre à espera que as frases comecem a voar e o texto se desenvolva sem necessidade do meu apoio, independente, livre. Isto pode parecer estranho

(a mim parece-me estranho)

mas é assim e vem a propósito de ontem. Ao fim da manhã andava eu nisto no compartimento pequeno onde escrevo, com uma janela para o Tejo ao longe e um bom bocado da cidade à minha frente, neste décimo segundo andar num sítio alto de Lisboa, rodeado de gaivotas, nuvens e pombos e sempre o mesmo falcão, se calhar chegado do Jardim Zoológico, para a direita e para a esquerda, às vezes com um animal pequeno nas unhas, assustando os pássaros, e eu sentado a uma mesa grande, de tampo de vidro, cheio de papéis, canetas, calendário, um relógio de plástico

(nunca na vida usei relógio de pulso)

a encher o papel daquilo que não sei quem ou não sei quê dita à minha mão. Nunca usei máquina de escrever ou computador, é tudo feito com a mãozinha porque gosto de desenhar as letras e a frieza dos teclados repugna-me. Bom. Estava eu nisto, às voltas com o segundo capítulo

(até agora é o que tenho, dois capítulos)

quando senti o peso de uma presença junto à porta, à minha esquerda, olhei e havia uma rapariga à entrada, uma estrangeira, comigo a pensar

– Quem será esta alemã?

alta

(então, comigo sentado, altíssima)

de pele clara, olhos claros, cabelo claro, com um sorriso parecido com o do meu pai, mais que parecido com o do meu pai, igual ao da minha avó, com o formato da cara igual ao da minha avó em muito mais bonito,o clima em torno dela também

Susa Monteiro


(o clima em torno das pessoas é terrivelmente importante para mim)

e os gestos, e a forma de habitar o ar, e os ombros, e a boca, tudo a levar-me de volta à parte alemã do meu sangue. Pouco depois de acabar o curso, estava eu a estagiar num hospital inglês, o director disse-me

– Você não parece inglês mas também não parece português. Você é tal e qual

(e a cara encheu de ódio, palavra)

um alemão. Até na Alemanha me achavam sempre alemão. Um crítico disse-me

– Você escreve em alemão

pretendendo ser agradável e, na realidade, ofendendo-me imenso porque eu sou daqui e não tenho culpa que essa parte de mim esteja sempre à mostra. Em miúdo era o ruço, ruço de mau pêlo quer casar e não tem cabelo, em adolescente elogiavam-me

– Para um estrangeiro falas bem português

isto sem maldade, sinceramente, e eu furioso

– Olhos azuis ainda por cima

e eu capaz de comê-los, com vontade de pintar-me de moreno e ansioso por ter olhos castanhos, durante as minhas primícias uma colega de Faculdade, no que pensava ser um elogio

– Palavra de honra que julgava que os loiros fossem maus na cama

comigo a apetecer-me bater-lhe, mas voltando aonde estávamos chega-me aquela alemã ao sítio onde escrevo

– Paizinho

e eu logo a arder de amor porque era a minha filha mais velha, tão bonita meu Deus, a cheirar imenso a mim por baixo do discretíssimo perfume dela e os meus olhos cheios de lágrimas de paixão que só eu via. Quando embarquei para a guerra a mãe estava grávida de dois meses, nasceu em junho andava eu naquele horror, conheci-a com cinco meses e não perdoo à Ditadura haver-me roubado esse tempo com a minha menina

(aconteça o que acontecer será sempre a minha menina, fui eu que a fiz, perceberam, fui eu que a fiz como depois fiz as outras, fui eu que as fiz e todo o meu sangue está nelas, fui eu que as fiz, fui eu que a fiz, fui eu que a fiz, são minhas)

não perdoo à Ditadura encontrar um bébé a dormir no berço sem mim ao seu lado, que ontem me chegou aqui e me sorriu

– Paizinho

eu, de caneta na mão

– És tão linda, filhinha

a apertar-me de pudor no roupão porque estava nu por baixo, a olhá-la, igual à minha avó, igual à minha avó até no sorriso, até no olhar, até na ironia sob a ternura, graças a Deus os meus cromossomas marcaram-nas bem, a sorrir para os meus piropos e eu outra vez danado com a Ditadura que levou àquele afastamento horrível, a minha menina uma adulta agora, que estranho, devia ter chamado Eva às três mas aí intervinha a subtileza da minha mãe

– E se ela for feia?

porque Eva um nome pesado, ser Eva e feia seria uma desgraça, quem neste mundo aguenta uma Eva feia e tinha razão, quem neste mundo aguenta uma Eva parva e tinha razão, embora não acreditasse que, de mim, nascessem mulheres feias ou parvas, os meus cromossomas não são feios nem parvos, todas as cartas para Angola traziam fotografias tuas mas quem sabia como irias ficar, davas-me a mão em pequena

(o que a tua mão cresceu)

adormecias ao meu colo e, lá para trás de nós, tiros mas não morri, não morri, morro um dia destes e vou ter tantas saudades, como dizia o Poeta virei no vento espreitar-te, tocar-te com um dedo na pontinha do nariz, o que mais quero neste mundo é tocar-te com um dedo na pontinha do nariz, há lá coisa melhor do que tocar-te com um dedo na pontinha do nariz e pedir baixinho

– Acorda.

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