Também na época da minha infância, na Ericeira primeiro e na Calçada do Tojal depois, os meus pais constituíam um absoluto mistério para mim. Nunca me falavam deles, não existia uma fotografia sua entre as jarras de porcelana com folhas de plátano, as molduras de militares e os ovais de prata com meninos de triciclo sobre um fundo de giestas e bisavós reboludas, e eu imaginava-os a viver em África ou em Macau, cercados de chineses diante de barcos de velas em pergaminho encalhados na margem de um rio. Se depois do jantar, deitado na cama sem conseguir dormir, escutava os cães de rebanho do Espanhol, sentia no vento a baixa mar das suas vozes segredando-me conselhos que não podia entender. A Dona Maria Teresa revirava em silêncio os olhos de lagosta, a Dona Anita ralava-se com a minha magreza e oferecia-me bolachas que sabiam a cré, o meu tio, o Senhor Fernando, piscava o olho às damas e falava do irmão major, o Senhor Jorge, preso em Tavira por conspirar contra o Governo, num quartel junto da praia em que o som das cometas se humedecia de espuma. Aflige-me que tu, nascida em Moçambique no ano da Revolução, não possas entender a época da minha juventude em que os homens vestiam, ao domingo de manhã, a farda da Legião Portuguesa e marchavam pelas ruas de Lisboa, preocupa-me, porque te afasta de mim, que não tenhas conhecido as procissões, os hinos, os discursos, os cafés a transbordarem de uniformes que gritavam canções guerreiras em torno de cálices de conhaque, com funcionários da Polícia Política anotando em caderninhos os suspeitos comunistas. Mesmo o Senhor Fernando, filho de um brigadeiro herói das sublevações monárquicas, descia o tom da voz e considerava os agentes numa espécie de respeito incomodado, esquecido das damas que se arregalavam, extasiadas, de torrada na mão, para as condecorações dos patriotas. É que muito antes de tu nasceres, Iolanda, numa cidade de gibóias, missionários e pretos, Lisboa era um carrossel de milicianos orgulhosos e inúteis, de multidões de cónegos, e de maçons a consumirem-se nos fortes do Estado, enquanto a mim, de bivaque e calções, me iniciavam em rudimentos marciais no recreio da escola.
Lisboa, meu amor, eram missas radiofónicas, altarzinhos de Santo António, mendigos e gaitas de beiços de cegos nas esquinas, porque nunca encontrei tantos cegos como nessa época penosa, cegos encostados aos prédios, cegos de concertina às costas tacteando passeios fora, cegos trágicos à saída dos lausperenes, cegos fadistas acompanhados por espertalhões de patilhas que recebiam as esmolas, cegos ameaçadores que vendiam bugigangas no adro, cegos orgulhosos, de queixo altivo, nos cruzamentos das ruas, mulheres cegas, com filhos cegos que não choravam nunca ao colo, cegos bêbados às curvetas entre os palmitos das tabernas, cegos que se suspendiam no ar, como anjos, dependurados dos guarda-chuvas abertos, cegos, pedintes e ciganos em carroças gastas pelos mil caminhos do mundo, em busca de um baldio para a tenda, mas principalmente cegos fitando o nada com a bruma das pupilas, milhares de cegos ocupando os becos, as travessas, os largos, os pátios de casinhas baixas com oficinas de sapateiros e ferradores, cegos a beberem água no chafariz das mulas, cegos conversando entre si do seu mundo de sombras, cegos, pedintes e ciganos nas quintas do Tojal, roubando o mel das abelhas, legionários e cegos e as damas das pastelarias e polícias secretos e os brados dos guerreiros de domingo, e eu a perguntar à minha tia O que é feito dos meus pais?, e ela, sem interromper o crochet, a revirar os olhos, cegos a tocarem-nos ao portão ou a vaguearem na relva, enganados na morada, e nesse momento, querida,
cegos
escutei pela primeira vez, fazendo vibrar os cálices, as folhas das plantas e o arbusto do meu sangue,
cegos
um ruído de passos no andar de cima.António Lobo Antunes, "A ordem natural das coisas"
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