Não só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro, que tenho conhecido: era também uma das pessoas mais felizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena de não saber o que é feito dele, ou, na verdade, suponho somente que deveria ter pena; na realidade não a tenho, pois hoje, que passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor de seus deveres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer – morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado com o corpo, ele que tão bem viajava com a alma.
Recordo-me de repente: ele sabia exatamente por que vias-férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias-férreas se percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez um dia, em velho, se lembre como é não só melhor, senão mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar em Bordéus.
E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qualquer, e ele tivesse somente imitando alguém. Ou… sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é nosso destino.
Fernando Pessoa, "O livro do desassossego"
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