terça-feira, agosto 5

O lixeiro

Era assim o trabalho dele: acordava às cinco na fria manhã escura e lavava o rosto com água morna se o aquecedor estivesse funcionando e com água fria se o aquecedor não estivesse funcionando. Barbeava-se cuidadosamente, conversando com a mulher que estava lá na cozinha, preparando presunto e ovos ou panquecas ou o que quer que fosse naquela manhã. Às seis horas, estava no trânsito rumo ao trabalho, sozinho, e estacionava o carro no grande pátio onde todos os outros homens estacionavam seus carros enquanto o sol estava nascendo. As cores do céu naquela hora da manhã eram laranja e azul e violeta e algumas vezes muito vermelho e algumas vezes amarelo ou uma cor clara como água sobre pedra branca. Em algumas manhãs, ele podia ver sua respiração no ar e, em algumas manhãs, não podia. Mas quando o sol ainda estava se levantando, ele batia o punho na lateral do caminhão verde, e seu motorista, sorrindo e dizendo olá, entrava no outro lado do caminhão, e eles saíam pela grande cidade e desciam todas as ruas até chegarem ao lugar onde começavam a trabalhar. Algumas vezes, no caminho, paravam para tomar café puro e depois continuavam, a quentura ainda dentro deles. E começavam o trabalho, o que significava que ele saltava em frente a cada casa e apanhava as latas de lixo e as trazia de volta e tirava suas tampas e as batia contra a borda da caçamba, fazendo as cascas de laranja e de melão e pó de café caírem e baterem no fundo e começarem a encher o caminhão vazio. Sempre havia ossos de bisteca e cabeças de peixe e pedaços de cebolinha e salsão apodrecido. Se o lixo era novo, não era tão ruim, mas se era muito velho, era ruim. Ele não tinha certeza se gostava ou não do trabalho, mas era um trabalho e ele o fazia bem, algumas vezes falando muito sobre ele e algumas vezes nem pensando nele. Alguns dias, o trabalho era maravilhoso, pois você levantava cedo e o ar era frio e fresco até que você tivesse trabalhado por muito tempo e o sol ficasse quente e o lixo começasse a exalar vapor. Mas, em grande parte, era um emprego importante o suficiente para mantê-lo ocupado e calmo e olhando para as casas e os gramados aparados por que passava e vendo como todo mundo vivia e, uma ou duas vezes por mês, ficava surpreso ao descobrir que adorava seu trabalho e que era o melhor trabalho do mundo.

Foi assim por muitos anos. E então, de repente, o trabalho mudou para ele. Mudou em um único dia. Mais tarde, ele frequentemente se perguntava como um trabalho podia mudar tanto em tão poucas horas.

***

Ele entrou no apartamento e não viu a esposa nem ouviu a voz dela, mas ela estava lá, e ele andou até uma poltrona e deixou a mulher ficar longe dele, observando-o, enquanto ele tocava a poltrona e se sentava nela sem dizer palavra. Ele ficou sentado ali por um longo tempo.

“O que há de errado?”

Finalmente a voz dela chegou até ele. Ela deve ter perguntado três ou quatro vezes.

“Errado?”

Ele olhou para essa mulher e, sim, era sua esposa, tudo bem, era alguém que conhecia, e este era o apartamento deles, com o pé-direito alto e o carpete gasto.

“Algo aconteceu no trabalho hoje”, ele disse.

Ela esperou que ele terminasse.

“Em meu caminhão de lixo, aconteceu algo.”

Sua língua se movimentava secamente sobre os lábios e seus olhos fechados bloquearam sua visão até que tudo se tornou escuridão, sem nenhuma luz de nenhum tipo, e era como estar sozinho em um quarto quando você levanta da cama no meio de uma noite escura.

“Acho que vou largar meu emprego. Tente compreender.”

“Compreender!”, ela gritou.

“Não se pode evitar. Tudo isso é a coisa mais danada de estranha que já aconteceu comigo em minha vida.” Ele abriu os olhos e ficou ali sentado, sentindo as mãos frias quando esfregava o polegar e os indicadores juntos. “A coisa que aconteceu foi estranha.”

“Bom, mas não fique só sentado aí!”

Ele tirou um pedaço de jornal do bolso de sua jaqueta de couro.

“Este é o jornal de hoje”, ele disse. “Dez de dezembro de mil, novecentos e cinquenta e um, Los Angeles Times. Boletim da Defesa Civil. Diz que eles estão comprando rádios para nossos caminhões de lixo.”

“Bom, o que há de tão ruim em um pouco de música?”

“Sem música. Você não entende. Sem música.”

Ele abriu a mão calejada e desenhou com uma das unhas limpas, tentando colocar tudo ali onde ele poderia ver e ela poderia ver.

“Neste artigo, o prefeito diz que vão colocar um aparelho de transmissão e recepção em cada caminhão de lixo da cidade.” Ele apertou os olhos olhando para a mão. “Depois que as bombas atômicas atingirem nossa cidade, aqueles rádios vão falar conosco. E então nossos caminhões de lixo vão sair e recolher os corpos.”

“Ora, parece prático. Quando...”

“Os caminhões de lixo”, ele disse, “sair e recolher todos os corpos.”

“Você não pode simplesmente deixar os corpos por aí, pode? Você tem de levá-los e...”

A esposa fechou a boca muito lentamente. Ela piscou, uma vez apenas, e fez isso muito lentamente também. Ele observou aquele piscar único e lento de seus olhos. Então, com um giro do corpo, como se outra pessoa o tivesse virado para ela, ela andou até uma poltrona, parou, pensou como fazer e sentou-se, muito ereta e rígida. Não disse nada. Ele escutava o tique-taque de seu relógio de pulso, mas apenas com uma pequena parte de sua atenção. Finalmente, ela riu.
“Eles estavam brincando!”

Ele balançou a cabeça. Sentiu sua cabeça se movendo da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, tão lentamente quanto tudo o mais que havia acontecido.

“Não. Colocaram um receptor em meu caminhão hoje. Disseram, no alerta, que se você estiver trabalhando, deve despejar seu lixo em qualquer lugar. ‘Quando o chamarmos no rádio, entre e remova os mortos’.”

A água na cozinha levantou fervura fazendo barulho. Ela deixou-a ferver por cinco segundos e então segurou o braço da poltrona com uma das mãos e se levantou e encontrou a porta e saiu. O som da fervura parou. Ela ficou na porta e então caminhou de volta para onde ele ainda estava sentado, sem se mexer, a cabeça na mesma posição.

“Está tudo planejado agora. Eles têm esquadrões, sargentos, capitães, cabos, tudo”, ele disse. “Sabemos até mesmo para onde trazer os corpos.”

“Então você tem pensado nisso o dia todo”, ela disse.

“O dia todo, desde a manhã. Pensei: Quem sabe agora eu não queira mais ser lixeiro. Costumava ser Tom e eu nos divertindo com uma espécie de jogo. Você tem de fazer isso. Lixo é ruim. Mas se você trabalha com isso, pode fazer um jogo. Tom e eu fazíamos isso. Observávamos o lixo das pessoas. Víamos que tipo elas tinham. Ossos de bisteca em casas ricas, alface e cascas de laranja nas pobres. Certamente é uma tolice, mas um sujeito tem de tornar seu trabalho tão bom quanto puder e fazer valer a pena; se não for assim, por que diabos trabalhar? E, de certa forma, você é seu próprio chefe em um caminhão. Sai cedo de manhã, e é um emprego ao ar livre, de qualquer jeito; você vê o sol nascer e vê a cidade acordar, e isso não é ruim de jeito nenhum. Mas agora, hoje, de repente, não é mais o tipo de emprego para mim.”

A esposa começou a falar rapidamente. Ela citou um monte de coisas e falou sobre muitas outras mais, mas, antes de ela ir muito longe, ele a interrompeu delicadamente.

“Eu sei, eu sei, as crianças e a escola, nosso carro, eu sei”, ele disse. “E contas e dinheiro e dívidas. Mas e aquela fazenda que papai nos deixou? Por que não nos mudamos para lá, longe das cidades? Eu entendo um pouco de fazenda.

Poderíamos fazer um estoque, armazená-lo, ter o bastante para viver durante meses se algo acontecesse.”

Ela não dizia nada.

“Sei que todos os nossos amigos estão aqui na cidade”, ele continuou, racionalmente. “E cinema e espetáculos e os amigos das crianças e...”

Ela deu um suspiro profundo.

“Não podemos pensar nisso por mais alguns dias?”

“Não sei. Tenho medo disso. Tenho medo de que, se pensar nisso, em meu caminhão e meu novo trabalho, vou me acostumar. E, ah, Deus, não parece nada certo que um homem, um ser humano, deva se acostumar a uma ideia como essa.”

Ela balançou a cabeça devagar, olhando para as janelas, as paredes cinza, os quadros escuros nas paredes. Apertou as mãos. Começou a abrir a boca.

“Pensarei esta noite”, ele disse. “Ficarei acordado mais um pouco. Até a manhã saberei o que fazer.”

“Tenha cuidado com as crianças. Não é bom que elas saibam disso tudo.”
“Terei cuidado.”

“Então, vamos parar de falar nisso. Vou terminar o jantar!” Ela se levantou de um salto e colocou as mãos no rosto e depois olhou para as mãos e para a luz do sol nas janelas. “Ora, as crianças vão chegar a qualquer minuto.”

“Não estou com muita fome.”

“Você tem de comer, não pode simplesmente continuar assim.”

Ela saiu apressada, deixando-o no meio da sala onde nem uma brisa soprava as cortinas e sobre ele havia apenas o teto com uma lâmpada solitária e apagada, como uma velha lua em um céu. Ele estava quieto. Massageava o rosto com ambas as mãos. Levantou-se e ficou de pé sozinho na porta da sala de jantar, andou para a frente e se sentiu sentar e continuar sentado em uma cadeira da sala de jantar. Viu suas mãos se espalharem na toalha de mesa branca, abertas e vazias.

“A tarde toda”, ele disse, “estive pensando.”

Ela se movimentava pela cozinha, chacoalhando utensílios, batendo panelas contra o silêncio que estava em toda parte.

“Fico pensando”, ele disse, “se você põe os corpos no caminhão de comprido ou atravessados, com as cabeças para a direita ou os pés para a direita. Homens e mulheres juntos ou separados? Crianças em um caminhão ou misturadas com homens e mulheres? Cães em caminhões especiais ou simplesmente deixados onde estão? Fico pensando quantos corpos cabem em um caminhão. Fico pensando, e se você os empilhar, um em cima do outro, finalmente sabendo que você simplesmente precisa fazer isso. Não consigo imaginar. Não consigo calcular. Tento, mas não dá para adivinhar, não dá para adivinhar mesmo quantos você poderia empilhar em um único caminhão.”

Ficou sentado pensando como era no fim do dia em seu trabalho, com o caminhão cheio e a lona puxada sobre o grande volume de lixo de modo que o volume dava à lona a forma de um monte irregular. E como era se você de repente puxasse a lona e olhasse lá dentro. E por uns poucos segundos, você via as coisas brancas como macarrão, só que as coisas brancas estavam vivas e fervilhando, milhões delas. E quando as coisas brancas sentiam o sol quente sobre elas, encolhiam-se e desapareciam na alface e na carne moída podre e na borra de café e nas cabeças de peixe branco. Depois de dez segundos de luz solar, as coisas brancas que pareciam macarrão sumiam, e o grande monte de lixo ficava silencioso e não se mexia, e você jogava a lona sobre o monte e via como a lona cobria irregularmente a coleta escondida e, por baixo, você sabia que estava escuro, e as coisas começando a se mover como sempre deviam se mover quando ficava escuro novamente.

Ele ainda estava sentado ali, na sala vazia, quando a porta da frente do apartamento se escancarou. Seu filho e sua filha entraram correndo, rindo e viram-no ali sentado, e pararam.

A mãe deles correu para a porta da cozinha, segurou-se rapidamente na borda dela e contemplou sua família. Eles viram o rosto dela e ouviram sua voz:

“Sentem-se, meninos, sentem-se!” Levantou uma das mãos e a estendeu em direção a eles. “Vocês chegaram bem na hora.”
Ray Bradbury, "A cidade inteira dorme e outros contos breves"

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