terça-feira, agosto 5

Minhas primeiras recordações

Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Saio por uma porta nos braços de uma menina, o chão à minha frente é vermelho e à minha esquerda desce uma escada igualmente vermelha. À nossa frente, à mesma altura, abre-se uma porta e aparece um homem sorridente que, alegre, vem em minha direção. Ele se aproxima bem, para e me diz: “Mostre a língua!”. Mostro a língua e ele leva a mão ao bolso, tira um canivete, abre-o e põe a lâmina bem perto de minha língua. Ele diz: “Agora lhe cortaremos a língua”. Não ouso recolher a língua; ele se aproxima cada vez mais, até quase tocá-la com a lâmina. No último momento ele recolhe a faca e diz: “Hoje ainda não, amanhã”. Ele dobra o canivete e o guarda no bolso.

Todas as manhãs saímos pela porta para o pátio vermelho, a porta se abre e o homem sorridente aparece. Sei o que ele dirá e aguardo sua ordem de mostrar a língua. Sei que ele a cortará, e cada vez tenho mais medo. Assim começa o dia e a história se repete muitas vezes.

Guardo-o para mim, e só muito mais tarde pergunto a minha mãe sobre isso. Ela reconhece, pela cor vermelha, a pensão em Karlsbad onde passou o verão de 1907 com meu pai e comigo. Ela havia trazido da Bulgária, para o menino de dois anos, uma ama que, ela própria, ainda não fizera quinze anos. De manhã cedo ela costumava sair com a criança nos braços, só falava búlgaro mas se orientava bem na movimentada Karlsbad, e sempre regressava pontualmente com a criança. Certa vez ela foi vista na rua com um homem jovem; nada sabe acerca dele, conhecera-o por acaso.

Após algumas semanas descobre-se que o jovem mora no quarto logo a nossa frente, do outro lado do corredor. A menina, à noite,às vezes lhe faz uma rápida visita. Os pais se sentem responsáveis e a mandam de volta para a Bulgária.

Ambos, a menina e o moço, costumavam sair muito cedo de casa, e assim deve ter acontecido o primeiro encontro, assim deve ter começado tudo. A ameaça com a faca produzira seu efeito, a criança silenciara sobre isso durante dez anos.
Elias Canetti, "A língua absolvida"

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