Jessie Willcox Smith (1863-1935) |
Os que temos à noite reacendem o passado. São vivos, têm volume, fazem sentido
Dizem os especialistas que não sonhar à noite pode matar. Os homens sonham. Os cachorros e gatos sonham. Sonhar é uma estratégia noturna de sobrevivência. Mas, parece, de dia as coisas mudam. Nas sociedades pós-modernas os sonhos atrapalham a vida. Tiram o foco do que é prático e eficaz, dos resultados, do que rende consumo. Sempre se pode, é claro, sonhar com uma mulher, ou um homem. Com um carro novo. Ou com a roupa da moda. Ou o último iPhone. E com trocar o homem, ou a mulher, o carro, a roupa e o iPhone, tudo descartável, por versões mais da hora. Mas aí (digo agora eu) não se trata de sonho, mas de desejo. Os desejos são poderosas coisas, movem mundos e montanhas. Mas perigosas quando são os únicos atores em cena. Quando matam o passado e o futuro.
Pois os sonhos tratam disso. Os que temos à noite reacendem o passado. São vivos, têm volume, fazem sentido. Se não os reconhecemos, os sentidos, e precisamos deles para viver, vamos ao psicanalista. Os sonhos diurnos encantam o tempo presente, os homens presentes, a vida presente, escreveu Drummond, que sonhava. Projetam futuros. Nas nossas sociedades pós-modernas, em que o presente é o tempo soberano, imaginar futuros é um desperdício. Antigamente os mais velhos insistiam em nos trazerem de volta à realidade banal quando éramos flagrados em delito de sonho. Mas o mundo que imaginávamos era melhor do que aquele em que vínhamos acordar. Agora, quando temos os olhos pregados no futuro e queremos dar uns passos na sua direção, dizem-nos que estamos adivinhando borboletas. Que não temos os pés na terra, somos uns utópicos ultrapassados.
Utopia é uma palavra boa para dizer sonho quando se trata do mundo que queremos e da vida que vamos, coletivamente, alimentando. As utopias são generosas. Imaginam mundos melhores, que são possíveis. Se ainda não se realizaram foi pela força dos que sustentam esse mundo do consumo generalizado e pela preguiça dos que usufruem dele. E da impotência em que provisoriamente nos encontramos, nós, os sonhadores e utópicos. Os que sabemos que não sonhar mata.
O tempo do sonho acordado é o futuro, que acolhe a inquietude e a insatisfação, e transcende o presente. Vai além. Transcendência também é um bom nome para os sonhos. Mas bimilenarmente foi colado em Deus. O transcendente — tão logo a palavra toca o ouvido — é Deus. E a nossa época apressada, que não se dá bem com causas e fundamentos e desconfia da verdade, não gosta de Deus. Não importa que três bilhões de pessoas, católicas, muçulmanas, judias e protestantes, acreditem no mesmo Deus de Abraão. O do Livro — da Torá, dos Evangelhos, do Corão. Já nem falo das grandes religiões animistas da África, do budismo, sabedoria tão poderosa no nosso tempo, das religiões africanas transplantadas. Quero me ater a um certo espaço nessa coluna, o Ocidente, suas margens e origens. E já é demais. Pois, digo, nas sociedades que vão se construindo segundo a lógica do desejo de satisfação imediata pelo consumo, Deus já não é uma evidência cotidiana. O sonho do Reino, da reabsorção de todo o tempo num mundo e uma vida sem mal nem dominação, não está mais na moda. É indigesto. Não desce redondo. A transcendência colada em Deus desagrada aos finos paladares pós-modernos.
E no entanto a todo momento transcendemos, vamos além. Quando buscamos o sentido de um fato nos pomos adiante dele. Se não entendemos o que a moça disse com seu sorriso ambíguo passamos além do sorriso para compreender a ambiguidade. Quando estamos para morrer nos lembramos de nos inquietar com o sentido da vida que tivemos. A procura do sentido, qualquer um, está sempre um passo adiante das coisas postas no presente, cujo significado, justamente, procuramos. E cuja ausência nos atormenta. Mesmo a interpretação da curva de desempenho da Bolsa é um ato de transcendência, de projeção de futuro. Os sentidos não estão dados “dentro” das coisas e ações. Precisamos entender, ou morremos de incompreensão. Compreender é um gesto de transcendência. É bom quando nele se insinua a sombra, perdão, a luz de Deus. Mas há quem não goste. Seja. No entanto, mesmo esses, quem sabe sem se dar conta, transcendem o apenas dado, vivem silenciosas utopias. E sonham.
Bonito será reencontrarmos nos nossos companheiros de vida e tempo, nossos contemporâneos e irmãos, um brilho súbito nos olhos tão focados no imediato do mundo. Um sonho que os atravesse num instante distraído, de guarda baixa. Que deixe depois um sorriso meio tolo, meio sábio, inesperado. Como o de quem viu um súbito arco-íris. Na outra ponta pode estar o pote de ouro dos que procuram ouro, a paisagem rumorejante de quem almeja a paz, quem sabe Deus, para quem deseja Deus. Importa pouco. O que importa é ter sonhado. Depois do sonho a vida é outra. E, desconfio, melhor.
Marcio Tavares D’amaral
Dizem os especialistas que não sonhar à noite pode matar. Os homens sonham. Os cachorros e gatos sonham. Sonhar é uma estratégia noturna de sobrevivência. Mas, parece, de dia as coisas mudam. Nas sociedades pós-modernas os sonhos atrapalham a vida. Tiram o foco do que é prático e eficaz, dos resultados, do que rende consumo. Sempre se pode, é claro, sonhar com uma mulher, ou um homem. Com um carro novo. Ou com a roupa da moda. Ou o último iPhone. E com trocar o homem, ou a mulher, o carro, a roupa e o iPhone, tudo descartável, por versões mais da hora. Mas aí (digo agora eu) não se trata de sonho, mas de desejo. Os desejos são poderosas coisas, movem mundos e montanhas. Mas perigosas quando são os únicos atores em cena. Quando matam o passado e o futuro.
Pois os sonhos tratam disso. Os que temos à noite reacendem o passado. São vivos, têm volume, fazem sentido. Se não os reconhecemos, os sentidos, e precisamos deles para viver, vamos ao psicanalista. Os sonhos diurnos encantam o tempo presente, os homens presentes, a vida presente, escreveu Drummond, que sonhava. Projetam futuros. Nas nossas sociedades pós-modernas, em que o presente é o tempo soberano, imaginar futuros é um desperdício. Antigamente os mais velhos insistiam em nos trazerem de volta à realidade banal quando éramos flagrados em delito de sonho. Mas o mundo que imaginávamos era melhor do que aquele em que vínhamos acordar. Agora, quando temos os olhos pregados no futuro e queremos dar uns passos na sua direção, dizem-nos que estamos adivinhando borboletas. Que não temos os pés na terra, somos uns utópicos ultrapassados.
Utopia é uma palavra boa para dizer sonho quando se trata do mundo que queremos e da vida que vamos, coletivamente, alimentando. As utopias são generosas. Imaginam mundos melhores, que são possíveis. Se ainda não se realizaram foi pela força dos que sustentam esse mundo do consumo generalizado e pela preguiça dos que usufruem dele. E da impotência em que provisoriamente nos encontramos, nós, os sonhadores e utópicos. Os que sabemos que não sonhar mata.
O tempo do sonho acordado é o futuro, que acolhe a inquietude e a insatisfação, e transcende o presente. Vai além. Transcendência também é um bom nome para os sonhos. Mas bimilenarmente foi colado em Deus. O transcendente — tão logo a palavra toca o ouvido — é Deus. E a nossa época apressada, que não se dá bem com causas e fundamentos e desconfia da verdade, não gosta de Deus. Não importa que três bilhões de pessoas, católicas, muçulmanas, judias e protestantes, acreditem no mesmo Deus de Abraão. O do Livro — da Torá, dos Evangelhos, do Corão. Já nem falo das grandes religiões animistas da África, do budismo, sabedoria tão poderosa no nosso tempo, das religiões africanas transplantadas. Quero me ater a um certo espaço nessa coluna, o Ocidente, suas margens e origens. E já é demais. Pois, digo, nas sociedades que vão se construindo segundo a lógica do desejo de satisfação imediata pelo consumo, Deus já não é uma evidência cotidiana. O sonho do Reino, da reabsorção de todo o tempo num mundo e uma vida sem mal nem dominação, não está mais na moda. É indigesto. Não desce redondo. A transcendência colada em Deus desagrada aos finos paladares pós-modernos.
E no entanto a todo momento transcendemos, vamos além. Quando buscamos o sentido de um fato nos pomos adiante dele. Se não entendemos o que a moça disse com seu sorriso ambíguo passamos além do sorriso para compreender a ambiguidade. Quando estamos para morrer nos lembramos de nos inquietar com o sentido da vida que tivemos. A procura do sentido, qualquer um, está sempre um passo adiante das coisas postas no presente, cujo significado, justamente, procuramos. E cuja ausência nos atormenta. Mesmo a interpretação da curva de desempenho da Bolsa é um ato de transcendência, de projeção de futuro. Os sentidos não estão dados “dentro” das coisas e ações. Precisamos entender, ou morremos de incompreensão. Compreender é um gesto de transcendência. É bom quando nele se insinua a sombra, perdão, a luz de Deus. Mas há quem não goste. Seja. No entanto, mesmo esses, quem sabe sem se dar conta, transcendem o apenas dado, vivem silenciosas utopias. E sonham.
Bonito será reencontrarmos nos nossos companheiros de vida e tempo, nossos contemporâneos e irmãos, um brilho súbito nos olhos tão focados no imediato do mundo. Um sonho que os atravesse num instante distraído, de guarda baixa. Que deixe depois um sorriso meio tolo, meio sábio, inesperado. Como o de quem viu um súbito arco-íris. Na outra ponta pode estar o pote de ouro dos que procuram ouro, a paisagem rumorejante de quem almeja a paz, quem sabe Deus, para quem deseja Deus. Importa pouco. O que importa é ter sonhado. Depois do sonho a vida é outra. E, desconfio, melhor.
Marcio Tavares D’amaral
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