segunda-feira, maio 11

Bibliocasa


Após uma semana de caracol, carregando literalmente a casa nas costas para outro endereço, lembro de uma entrevista de Haroldo de Campos quando ele dizia que a sua biblioteca foi crescendo como uma vegetação e que agora vive numa bibliocasa.

No meu caso, a bibliocasa é que me habita. Difícil mesmo é habitar a paisagem desértica de uma casa sem livros. Enquanto os primeiros volumes não saíram dos caixotes e foram para as prateleiras em sua ordem habitual (código somente decifrado por mim) andei fora do meu eixo, com a vida em suspenso, fora do ar.

Tanto é verdade que, ao sentar à mesa do computador para digitar esta Viaverbo, não me foi possível escrever sobre outra coisa senão desses silenciosos amigos de sempre, agora repousando placidamente à espera que se dê o fato estético, o momento de terem suas páginas abertas, ou simplesmente, suas lombadas acariciadas numa madrugada insone. Era preciso sabê-los ali, os amigos que mastiguei e degluti antropofagicamente ao longo de toda a minha vida de leitora. Foram eles afinal que moldaram, mais do que o meio, o meu caráter, a minha visão de mundo. A minha biblioteca é, portanto, o meu verdadeiro inventário.

Há muito que não me desfaço de nenhum livro pelo simples motivo de que, invariavelmente, poucos dias depois, descubro que é aquele, exatamente aquele volume, que necessito. Possuir um livro implica em saber que posso voltar a ele quantas vezes quiser, mesmo sabendo que dificilmente vou rele-lo. Não é a mesma coisa ler esse mesmo livro numa biblioteca pública ou emprestado de um amigo.

Por mais desculpas que possamos arranjar para justificar o fato de acumular tantos livros, na verdade, o que nos leva a conservá-los é algo parecido com uma espécie de volúpia. Prazer de percorrer o olhar pelas estantes repletas e travar um diálogo mudo com cada um desses maravilhosos espíritos da humanidade, sabe-los íntimos, familiares, próximos, disponíveis. Lembrar dos momentos em que cada um deles foi adquirido, lido e anotado. Observar neles a nossa própria trajetória de leitores, as várias etapas de nosso próprio entendimento. Aquilo que grifamos ou anotamos anos atrás, certamente não seria apontado se o livro fosse lido agora.

Fiquei imaginando o que seria deixar todos esses livros. Seria como perder a própria memória, ser outra, começar tudo de novo num mundo lunar, ausência de gravidade. Felizmente eles, ou parte deles, já estão ali a dizer-me que o planeta voltou a girar dentro de seu eixo e que o computador e a leitura virtual são apenas ferramentas para que esse meu objeto de desejo continue existindo e, à semelhança de tijolo, vá formando casas, edifícios, cidades inteiras.
Dalila Teles Veras (Texto publicado em Leitores&Livros)

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