terça-feira, junho 30

Exibicionista

Leitura é uma conquista

hyperb0rean:

Reading by candlelight. Rovaniemi, Finland, 1948. Photo by Werner Bischof.
Werner Bischof., Finlândia, 1948
A leitura depara-se com uma série de obstáculos, é muito mais fácil sentarmo-nos no sofá a ver televisão do que a ler um jornal até. E a questão parece ser esta sociedade de facilistismo em que deixou de se perceber que as coisas que dão algum trabalho também são as que dão mais prazer, porque são conquistadas. A leitura dá algum trabalho e temos de conquistar um espaço para ela na nossa vida, temos de nos empenhar para absorvê-la completamente, para que faça sentido. Isso é que se perdeu um pouco de vista, mas penso que quem procura acabará por encontrar e tenho esperança de que as pessoas não deixem de procurar, não desistam, porque baixar os braços é ficar sempre no mesmo sítio
José Luís Peixoto

O futuro

Finis terrae

A última Vista da Cidade será uma cortina de gaivotas enfurecidas a levantarem-se entre mim e o Tejo.

Na altura estarei, ou estou ainda, sentado num café-snack do Terreiro do Paço junto ao cais dos cacilheiros , com uma larga vidraça a separar-me do rio. Café Atinel, que nome mais estúpido. Olho as mesas vazias e pergunto-me por que razão é que um sítio assim, tão privilegiado, consegue estar desconhecido. Por mim não quero outra coisa: barcos que chegam , barcos que partem, gente de entrar e sair a servir-se ao balcão, e eu sentado em cima do Tejo.

Tal como estou tenho a cidade pelas costas. Comércio, multidão, Europa, fica tudo para trás. Lá as pessoas andam todas a perguntar as horas umas às outras, enquanto que neste reduto para aqui esquecido sabe-se do correr do dia pelo mudar da cor do Tejo, e não me digam que não é uma felicidade estar-se assim , à mesa sobre as águas , com gaivotas a saírem-nos debaixo dos pés e a passarem-nos a dois palmos dos olhos num bailado de gritaria.

Tempo bom, o desta solidão. tempo melhor ainda, lembram os eméritos de biblioteca num ulissiponês de fazer inveja , quando se via a olho nu o promontório da Lua por toda essa costa além. Tempo , dizem, em que nas margens da Outra Banda havia areias que escorriam ouro ( Marco Terêncio fala disso) e pastagens celestes onde as éguas emprenhavam pelo vento. Tempo de poeiras luminosas e lágrimas lunares. E de pérolas. e de tritões. Tritões cantadores como aquele que consta da Descrição da Cidade de Lisboa de Damião de Góis.

José Cardoso Pires, "Lisboa , Livro de Bordo, vozes, olhares, memorações"

Não creio em e-book

Não uso PDFs, não acredito em e-books. E-book não é livro. Lido com livros reais. Meu trabalho é reinventar o objeto para que ele seja uma nova forma de contar uma história. Um livro, o que faz? Espalha informações. Meu trabalho é mostrar o que você pode fazer a partir da ideia de ‘virar páginas’. Eu realmente acredito que os livros vivem uma fase de renascimento
Irma Boom, de 55 anos, designer holandesa referência no mercado editorial internacional: ganhadora de diversos prêmios, entre eles o Guttemberg Prize

Exercício para halterofilista

A cura pela palavra

Há dois anos, surgiu na Inglaterra um curioso objeto literário, "The novel cure", que poderíamos traduzir como "A cura pelo romance". O livro, da autoria de Susan Elderkin e Ella Berthoud, tem como subtítulo "An A-Z of literary remedies", ou seja, "Um receituário literário de A a Z". A ideia é muito boa: receitar literatura para um vasto leque de males, da melancolia e depressão ao excesso de peso.

O livreiro português José Pinho, um dos proprietários da bonita e extravagante livraria lisboeta Ler Devagar inspirou-se no livro de Susan Elderkin e Ella Berthoud para criar um projeto ainda mais arrojado: uma farmácia literária. A farmácia deverá funcionar no átrio de um futuro centro de medicinas alternativas, a instalar num velho hospital de Lisboa, atualmente desativado. O paciente dirige-se ao farmacêutico literário (biblioterapeuta), dá conta das suas queixas, e recebe o remédio ou remédios, dois ou três livros, que poderá utilizar ali mesmo, comodamente instalado num dos quartos da instituição, ou levar para casa. Parece o devaneio feliz de um sonhador, e é, com a diferença de que José Pinho leva os sonhos a sério. Foi dele a ideia louca de transformar Óbidos, pequena e belíssima povoação histórica, cercada de muralhas, a 70 quilômetros de Lisboa, numa vila literária, com 11 livrarias, instaladas nos locais mais insólitos, desde uma antiga igreja a um mercado de frutas. Os principais compradores são os milhares de turistas brasileiros que visitam a vila e ficam encantados com as livrarias.

Há alguns anos publiquei um conto numa revista literária sobre uma senhora que receitava poesia como tratamento para todo o tipo de males. Serviu-me de modelo para a personagem uma vizinha belga que, quando eu era criança, lia versos, em voz alta, para as flores do seu jardim. Eu via-a, em certos fins de tarde incandescentes, passear ao longo do muro, com um livro aberto entre as mãos. Detinha-se aqui e ali, para recitar, debruçada sobre o fulgor das rosas, sonetos em francês e português. Ao vê-la, ao escutar o eco misterioso daqueles versos, eu intuía ali uma força antiga. Talvez as flores dela não crescessem mais frescas nem com mais vigor, mas eu acreditava que sim.

Circula pelas redes sociais um estudo da Universidade de Liverpool segundo o qual a poesia é muito mais estimulante para o cérebro, e mais útil na resolução de problemas, do que a chamada literatura de autoajuda. Mesmo ignorando a legitimidade do documento em causa, acredito nas suas conclusões. Livros de autoajuda costumam ser — os menos ruins — simples compilações enfadonhas de lugares-comuns. A boa poesia surpreende, acende clarões no cérebro, provoca e desafia.

A poesia, é sempre bom lembrar, começou por ser uma especialidade da magia. Magos declamavam os seus versos para convocar espíritos, acordar remotas forças, criar acontecimentos através do verbo. A palavra vento era o próprio vento. O som que enche a palavra sombra encheria de penumbra o coração dos inimigos — e por aí afora.


Quase todos os meninos são poetas. Manoel de Barros confessou, em várias entrevistas, ter roubado versos prontos aos próprios filhos. Nada que surpreenda um pai ou uma mãe. Quem quer que tenha filhos pequenos conhece a experiência de redescobrir o brilho da língua através da poesia involuntária que os baixinhos praticam todos os dias. Infelizmente, o que a generalidade dos sistemas de ensino faz é tirar a poesia de dentro das crianças. Crescer é, assim, perder poesia. Talvez por isso temos tendência a adoecer à medida que nos afastamos da infância — e da poesia. Acredito que a exposição prolongada à poesia é suscetível de provocar alterações irreversíveis no espírito de qualquer pessoa. Crianças que crescem ouvindo dizer poesia correm o risco de nunca se transformarem inteiramente em adultos, ou, pelo menos, em adultos conformados (e doentes). Eventualmente, continuam sendo poetas a vida inteira.

As versões em português (portuguesa e brasileira) do livro de Susan Elderkin e Ella Berthoud devem chegar nos próximos meses às livrarias e serão distintas uma da outra, pois incluem receitas próprias, adaptadas às diferentes realidades nacionais. A tentação de prolongar o jogo é enorme. Cada um de nós pode criar o seu próprio receituário. Por exemplo, para prevenir e tratar a intolerância religiosa, epidemia em crescimento no Brasil, eu recomendaria Jorge Amado. Para escritores que estejam sofrendo um surto de bloqueio criativo, ao invés de “I capture the castle”, de Dodie Smith, proposto pelas inglesas, aconselho “O livro do desassossego”, de Bernardo Soares. Sei, por experiência própria, que funciona muito bem.

José Eduardo Agualusa 

segunda-feira, junho 29

Dois em um para leitura


Para aqueles que querem desligar o abajur ao colocar seu livro no topo (ou seja, todo mundo)

Fonte de felicidade

A felicidade não se aprende nos livros, mas pode brotar deles
Eduardo Gianetti 

Leitores de praia

Michael de Bono
Michael de Bono
Olive Dutton Green
Olive Dutton Green
David Hardin
David Hardin

Ler em casa com os filhos

Casa del Lector
Cada um dos participantes do programa, que começou em fevereiro, famílias receberam 20 obras, que devem retornar este mês. Ao entrar no projeto, desenvolvido pela Casa del Lector, em Madri, assinaram um compromisso para ler em casa com seus filhos (com idades entre oito meses e cinco anos), participar uma vez por mês em sessões de leitura coletiva, além de ter encontros virtuais para compartilhar experiências. "Com carinho, mediadores familiares são perfeitos naqueles primeiros anos que ainda se reúnem para bibliotecas e escolas", diz Marisa Pata, que espera expandir a iniciativa. "Temos de ser nós que vamos levar, idealmente para replicar. É algo que ajuda a criar bons cidadãos. "

Humor

O leão e o rato

 Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão emvolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias. Disse o Leão:

– Nem um boi. Nem ao menos um paca. Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d’oeuvres de uma futura refeição.

Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. “A amizade resistiria à fome?” – pensou ele. E, sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do amigo (?) faminto.

Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em circulos, deitando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá explicar onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não fosse animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:

– Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do rato para o rato; para O Leão, a parte do Leão.

A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato pelo seu alto critério:

– Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha. Isso é que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sempre a você a partilha dos meus bens que me couberem no litígio com os súditos.

Você é um verdadeiro e egrégio merítíssimo! Não vai se arrepender!

E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos do queijo, E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam seus fracos pulmões:

– Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!

MORAL : Os ratos são iguaizinhos aos homens.
Millôr Fernandes

domingo, junho 28

Selfie


Melhor lembrança da viagem

Compre um livro de uma pequena livraria em cada cidade que visitar! 
Terry Pratchett

Ao respeitável público

São Paulo, 1934

Chegou meu dia. Todo cronista tem seu dia em que, não tendo nada a escrever, fala da falta de assunto. Chegou meu dia. Que bela tarde para não se escrever!

Esse calor que arrasa tudo; esse Carnaval que está perto, que aí vem no fim da semana; esses jornais lidos e relidos na minha mesa, sem nada interessante; esse cigarro que fumo sem prazer; essas cartas na gaveta onde ninguém me conta nada que possa me fazer mal ou bem; essa perspectiva morna do dia de amanhã; essa lembrança aborrecida do dia de ontem; e outra vez, e sempre, esse calor, esse calor, esse calor…

Portanto, meu distinto leito, portanto, minha encantadora leitora, queiram ter a fineza de retirar os olhos dessa coluna. Não leiam mais. Fiquem sabendo que eu secretamente os odeio a todos, que vocês todos são pessoas aborrecidas e irritantes; que eu desejo sinceramente que todos tenham um péssimo Carnaval, uma horrível quaresma, um infelicíssimo ano de 1934, uma vida toda atrapalhada, uma morte estúpida!

Aproveitem este meu momento de sinceridade e não se iludam com o que eu disser amanhã ou depois, com a minha habitual falta de vergonha. Saibam que o desejo mais sagrado que tenho no peito é mandar vocês todos simplesmente às favas, sem delicadeza nenhuma.

Porque ousam gostar ou aborrecer o que escrevo? O que têm comigo? Acaso me conhecem, sabem alguma coisa de meus problemas, de minha vida? Então, pelo amor de Deus, desapareçam desta coluna. Este jornal tem dezenas de milhares de leitores; porque é que no meio de tanta gente vocês e só vocês, resolveram ler o que escrevo? O jornal é grande, senhorita, é imenso, cavalheiro, tem crimes, tem esporte, tem política, tem cinema, tem uma infinidade de coisas. Aqui, nesta coluna, eu nunca lhes direi nada, mas nada de nada, que sirva para o que quer que seja. E não direi porque não quero; porque não me interessa; porque vocês não me agradam; porque eu os detesto.

Portanto, se a senhorita é bastante teimosa, se o cavalheiro é bastante cabeçudo para me ter lido até aqui, pensem um pouco, sejam bem educados e dêem o fora. Eu faço votos para que vocês todos amanheçam amanhã atacados de febre amarela ou de tifo exantemático. Se houvesse micróbios que eu pudesse lhes transmitir assim, através do jornal, pelos olhos, fiquem sabendo que hoje eu lhes mandaria as piores doenças: tracoma, por exemplo.

Mas ainda insistem? Ah, se eu pudesse escrever aqui alguns insultos e adjetivos que tenho no bico da pena! Eu lhes garanto que não são palavras nada amáveis; são dessas que ofendem toda a família. Mas não posso e não devo. Eu tenho de suportar vocês diariamente, sem descanso e sem remédio. Vocês podem virar a página, podem fugir de mim quando entendem. Eu tenho que estar aqui todo dia, exposto a curiosidade estúpida ou à indiferença humilhante de dezenas de milhares de pessoas.

Fiquem sabendo que eu hoje tinha assunto e os recusei todos. Eu poderia, se quisesse, neste momento, escrever duzentas crônicas engraçadinhas ou tristes, boas ou imbecis, úteis ou inúteis, interessantes ou cacetes. Assunto não falta, porque eu me acostumei a aproveitar qualquer assunto. Mas eu quero hoje precisamente falar claro a vocês todos. Eu quero, pelo menos hoje, dizer o que sinto todo dia: dizer que se eu os aborreço, vocês me aborrecem terrivelmente mais.

Amanhã eu posso voltar bonzinho, manso, jeitoso; posso falar bem de todo mundo, até do governo, até da polícia. Saibam desde já que eu farei isto porque sou cretino por profissão; mas que com todas as forças da alma eu desejo que vocês todos morram de erisipela ou de peste bubônica. Até amanhã. 
Passem mal. 
Rubem Braga 

Modernidade dos clássicos

O que nos perturba na leitura dos clássicos não é tanto o fato de os antigos serem capazes de identificar de uma forma essencial algo que é verdadeiro e terrível, mas que nós, mais de 2.000 anos depois, continuemos a errar nos nossos caminhos sem termos assimilado a lição daqueles (ou depois de a termos assimilado demasiado bem). A modernidade dos clássicos é devida ao fato de eles serem tragicamente obsoletos
Umberto Eco

Livros para proteger da chuva

Book umbrella

Assim começa o livro...

Filho da tempestade, irmão do raio,
Lança teu grito ao vento da procela.
No agreste sertão, amiga, aconteceu uma história de amor. Longe das grandes cidades, nas terras bravias do Nordeste, as paixões, os instintos e os preconceitos medravam e cresciam paralelamente. Era a caatinga em torno, as fazendas feudais, os homens vestidos de couro, uma lei primária dominando. Um código de honra nascera no sertão e ainda hoje, cem anos quase passados sobre essa história, ele existe no coração dos senhores das fazendas e no coração dos cangaceiros. O sertão cria homens fortes e mulheres belas e cria também devoradoras paixões no mais tímido peito da mais recatada donzela que vivera até então escondida no labirinto das casas-grandes. As mais tímidas mulheres do sertão quando chega o seu momento de amor são fortes como o mais corajoso cabra de Juazeiro. É a caatinga que as faz assim. Léguas e léguas de mato que não é vegetação, é puro espinho que rasga os pés, os braços e o peito. Quem nasceu na caatinga, viu o mugir triste dos bois nos mais tristes crepúsculos, cresceu ouvindo histórias de secas e de cangaceiros, assistindo a duelos de punhal e a amansamentos de touros bravios, aprendendo que a vida é feita para ser vivida valentemente, quem vive o anônimo heroísmo diário do sertão, é capaz até de se levantar e 18 lutar contra o código de honra que o próprio sertão criou. A força do amor se junta à força que vem da braveza da terra. Aí nascem os cangaceiros célebres e as mulheres que pelo amor abandonam tudo, lar e família, conforto e honra. Aí nasceu Pórcia, a que se consumiu no amor de Leolino, heroína do mais dramático idílio do sertão. Aí nasceram os Castros, os Canguçus, os Mouras e os Medrados, donos do sertão e zeladores do seu código de honra. Aí nasceu também Castro Alves, filho de Clélia Brasília, irmã de Pórcia. Aquele que havia de cantar uma a uma as belezas do sertão e os sentimentos dos sertanejos nasceu quando a tragédia de sua tia alcançava o seu fim.

Castro Alves nasceu sob o signo do amor mais livre, dos instintos lutando contra os preconceitos, do homem procurando a sua felicidade contra tudo e contra todos. No ano em que o sertão vivia a sua mais intensa história de amor e sangue, em que toda a terra da caatinga, desde o Paraguaçu ao São Francisco, estremecia aos gritos de vingança dos Canguçus e dos Castros, quando o tropel dos cavalos anunciava o começo dos tiroteios, quando, na quietude das noites mornas, o punhal descia sobre a garganta ou o peito de um Moura, quando Exupério, irmão de Leolino, se celebrizou como dono da mais certeira pontaria de todas aquelas terras, quando o sertão assistia às mais espantosas cenas de crueldade e de coragem, e, quando a caatinga ouviu dos lábios amantes de Pórcia e Leolino as mais doces palavras de amor, os queixumes, os risos e suspiros de amor que o vento levava em direção ao mar, no ano em que a força livre do amor se levantou contra a lei dos homens estabelecida no sertão, nesse ano nasceu Castro Alves.

sábado, junho 27

Cogito ergo sum

Gloria Pizzilli

O esplendor

E o esplendor dos mapas, caminho abstrato para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.

(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!

Álvaro de Campos

Os de papel são apetitosos

Mais um sebo que não quer ser um sebo a menos

Um sebo é um depósito de livros usados. Mas levante o primeiro título, espere o dono da casa se achegar e sinta na pele: um sebo é um depósito de histórias vivas. Não só por ser um espaço de literatura, mas porque cada livro ali empoeirado suscita, além de sua própria narrativa, muitos causos. É assim, ao menos, que os visitantes do Sebo Chama de uma Vela são recebidos à rua Augusta, 1371, no centro de São Paulo.

Maurício Eloy, professor de História da Arte e História da Cultura e educador, fundou o Chama há 14 anos e há sete o instalou na pequena loja de galeria, das tantas que permanecem vivas na Augusta. Começou o negócio arriscando com um lote de livros italianos, da editora Mondadori, todos muito cuidados e chamativos, que foram vendidos aos poucos.

Logo, ele adquiriu a biblioteca pessoal da neta do escritor Monteiro Lobato, cheia de preciosidades, e assim foi adiante, farejando tesouros. Hoje dispõe de um acervo de mais de 8.000 livros, muitos deles relacionados a Filosofia, Antropologia e História, e outros tantos de ficção, sem temer inclusive os best sellers. “O segredo de um sebo é ter livros de grande valor e também títulos esgotados em editoras”, afirma Maurício, que, além de dar aula, já trabalhou em museus e centros culturais paulistanos.



Pelo Chama, já passaram muitos famosos, como o artista plástico Vik Muniz, o músico Arrigo Barnabé, o ator Marco Nanini e o chef Alex Atala – todos dispostos a trocar figurinhas com Maurício, na literatura e além. Mas são os anônimos que suscitam as melhores histórias: a menina que chegou chorando e saiu sorrindo com um livro de presente, o casal de idosos que passou um dia inteiro lendo nas duas únicas cadeiras do lugar, o físico apaixonado por música que terminou esquecendo a Física e levando um livro de violinos em relevo... , estudantes e professores do meio acadêmico atrás dos exemplares que já se esgotaram nas lojas tradicionais. E os muitos que chegam curiosos e saem convictos de ter encontrado uma toca de boas leituras e sincero afeto.

O encontro

Ler obriga cada um a ter um encontro consigo próprio, no tempo em que voluntariamente, ou pela mão de outrem, se entrega a um silêncio que mais não é do que o preenchimento da sua forma de sentir e, depois, pensar, através das emoções que a escrita de outro lhe revela e desenvolve. Ler é, por isso mesmo, um acto único de cada um entrar em contacto com partes muito profundas de si próprio, e disso encontrar eco ou amplidão e assim, no fundo, crescer, e fazê-lo de uma forma frequentemente mais aberta, crítica, amorosa ou humorística na relação consigo e com tudo o que o rodeia.
Pedro Strecht

 


Veranista de Inverno

Assim começa ...

Naquela noite tinha havido uma tempestade em St. Louis. A água quedava-se em negros charcos fumegantes na calçada fronteira ao aeroporto, e, do banco traseiro do táxi, eu via a agitação dos ramos dos carvalhos sobre um fundo de nuvens citadinas baixas. Era sábado e as estradas estavam saturadas de uma sensação de extemporaneidade, de atraso – a chuva não caía, já tinha caído.

A casa da minha mãe, em Webster Groves, estava às escuras, à exceção de uma lâmpada com temporizador na sala de estar. Entrei, fui direito à prateleira das bebidas e servi-me de uma boa dose que já vinha a prometer a mim próprio desde antes do primeiro dos meus dois voos. Invadia-me o sentido de posse de um viquingue em relação a tudo a que pudesse deitar a mão. Estava prestes a entrar na casa dos quarenta, e os meus irmão mais velhos tinham-me confiado a missão de viajar até ao Missuri e escolher um agente imobiliário que se encarregasse de vender a casa. Enquanto estivesse em Webster Groves, a trabalhar em prol do patrimônio familiar, a prateleira das garrafas seria minha. Minha! Idem para o ar condicionado, que regulei para uma temperatura glacial. Idem para o frigorífico da cozinha, que achei necessário abrir imediatamente e vasculhar até ao fundo, na esperança de descobrir umas salsichas de pequeno-almoço, um guisado caseiro, alguma coisa cheia de gordura e de sabor que pudesse aquecer e comer antes de ir para a cama. A minha mãe tinha sempre o cuidado de etiquetar a comida com a data em que a tinha congelado. Debaixo de múltiplos sacos de mirtilos, descobri um saco com uma perca que um vizinho tinha pescado três anos antes. Debaixo da perca estava um pedaço de peito de vaca com nove anos.

sexta-feira, junho 26

O mago

Catherine Chauloux

Chuva com lembranças

Começam a cair uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam, e continuam a pousar, às tontas, de jasmim em jasmim. As pedras estão muito quentes, e cada gôta que cai logo se evapora. Os meninos olham para o céu cinzento, estendem a mão — e vão tratar de outra coisa. (Como desejariam pular em poças dágua! — Mas a chuva não vem…) Nas terras sêcas, tanta gente, a esta hora, estará procurando também no céu um sinal de chuva! E, nas terras inundadas, quanta gente a suspirar por um raio de sol!

Penso em chuvas de outrora: chuvas matinais, que molham cabelos soltos, que despencam as flôres das cêrcas, entram pelos cadernos escolares e vão apagar a caprichosa caligrafia dos exercícios.

Chuvas de viagens: tempestades na Mantiqueira, quando nem os ponteiros dos pára-brisas dão vencimento à água; quando apenas se avista, recortada na noite, a paisagem súbita e fosfórea mostrada pelos relâmpagos. Catadupas despenhando sôbre Veneza, misturando o céu e os canais numa água única, e transformando o Palácio dos Doges num imenso barco mágico, onde se movem, pelos tetos e paredes, os deuses do paganismo e os santos cristãos. Chuva da Galiléia, salpicando as ruas pobres de Nazaré, regando os campos virentes, toldando o lago de Tiberíades coberto ainda pelo eterno olhar dos Apóstolos. Chuva pontual sôbre os belos campos semeados da França, e na fluida paisagem belga, por onde imensos cavalos sacodem, com displicente orgulho, a dourada crina…

Chuvas antigas, nesta cidade nossa, de perpétuas enchentes: a de 1811, que, com o desabamento de uma parte do morro do Castelo, soterrou várias pessoas, arrastou pontes, destruiu caminhos e causou tal pânico que durante sete dias as igrejas e capelas estiveram abertas, acesas, com os sacerdotes e o povo a implorarem a misericórdia divina. Uma, de 1864, que Vieira Fazenda descreve minuciosamente, com árvores arrancadas, janelas partidas, telhados pelos ares, desastres no mar e “vinte mil Lampiões da iluminação pública completamente inutilizados”.

Chuvas modernas, sem trovoada, sem igrejas em prece, mas com as ruas igualmente transformadas em rios, os barracos a escorregarem pelos morros, barreiras, pedras, telheiros a soterrarem pobre gente. Chuvas que interrompem estradas, estragam lavouras, deixam na miséria aquêles justamente que desejariam a boa rega do céu para a fecundidade de seus campos.

Por enquanto, caem apenas algumas gôtas daqui e dali. Nem as borboletas ainda percebem. Os meninos esperam em vão pelas poças dágua onde pulariam contentes. Tudo é apenas calor e céu cinzento, um céu de pedra onde os sábios e avisados tantas coisas liam outrora:


“São Jerônimo, Santa Bárbara Virgem,
lá no céu está escrito, entre a cruz e a água benta:
Livrai-nos, Senhor, desta tormenta!”
 Cecília Meireles

Humor

Mulheres dominam Prêmio Sesc

A carioca Marta Barcellos e a paulista Sheyla Smanioto Macedo são as vencedoras da edição 2015 do Prêmio Sesc de Literatura, nas categorias Conto e Romance, com os livros “Antes que seque” e “Desesterro”, respectivamente. Nesta edição, o concurso teve recorde de inscrições, com 1.966 trabalhos, sendo um terço do público feminino.

Além de jornalista, Marta Barcellos, 49 anos, é mestre em literatura pela PUC-Rio. Trabalhou durante 18 anos nos principais jornais do país, como O Globo, Gazeta Mercantil e Valor Econômico. Atualmente, é colunista da revista Capital Aberto e do site Digestivo Cultural. O livro “Antes que seque” fala sobre a vida contemporânea, com seus contrastes e padrões de consumo.

Com a carreira focada na arte da escrita, Sheyla Smanioto Macedo, 25 anos, é graduada em Estudos Literários e mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp. Atualmente dedica-se ao livro de contos Selfie service, desenvolvido no contexto do projeto “Monólogos para dois”, selecionado pelo Proac – Criação Literária 2014. A obra “Desesterro” é um romance sobre metamorfoses, histórias de vida, sonhos e fotografias imaginadas.

As ganhadoras receberão o prêmio em cerimônia na Academia Brasileira de Letras, em novembro. Os trabalhos vencedores serão publicados e distribuídos pela Record.

Dicas de decoração

Se você, como leitor, não tem ideia de como decorar sua casa com algo além das estantes carregadas para demonstrar ainda mais seu amor pelos livros, aí seguem algumas sugestões

en el teléfono


en la cama, felices sueños lectores ;)


en la lámpara, los ya leídos


en el sillón, para leer y descansar


en el cuarto de baño



en las macetas

Verba para a Finca Vígia

Uma fundação norte americana vai enviar aproximadamente 900 mil dólares em materiais de construção à Cuba para ajudar a preservar livros, cartas e fotos de Ernest Hemingway. Essa é o primeiro envio de materiais de construção à Cuba desde que o presidente Barack Obama afrouxou o embargo comercial à ilha. Sediada em Boston, a Finca Vigia Foundation vinha tentando há anos fazer esse envio de materiais à Cuba, o que evitaria a lenta desintegração de documentos ocasionada pelo calor e pela alta umidade na casa onde o escritor norte-americano trabalhou e viveu entre 1939 e 1960.
(Fonte: The Guardian)