quarta-feira, junho 17

Para quem escrevo: uma crônica-dedicatória

Escrevo para aqueles que, feito eu, nunca viram um pinguim. Ou, se viram, logo deram as costas à ave para, desatentos ao entorno, macerarem suas angústias — devo essa imagem aos craques para quem eu gostaria de escrever: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino, quarteto que “puxava angústias” pelas ruas de Belo Horizonte. Escrevo de olho nos que não distinguem um pinguim de uma foca.

Escrevo para todos que morrem de medo e ressuscitam dia após dia. Igualmente escrevo para os corajosos, que nem sempre vingam e morrem sem medo.

Escrevo para o inventor da saudade, que, suponho, seja um daqueles astronautas de fundo de quintal habituais no quintal que já não tenho e não me tem mais. Escrevo para os lunáticos insatisfeitos. Escrevo para a lua.

Escrevo para os farmacêuticos viciados e, não raro, para os carcereiros levianos e para as pessoas incapazes de combinar os tons da roupa. Escrevo para a moça de Goiás que acabou de passar por aqui. Aqui? Sim, pela minha lembrança.

Escrevo para a vítima de um espanto. E também para quem se espanta com a vítima. Trocaladrilhos, trocaladralhos, escrevo para quem não maneja bem as palavras. Afinal, é para mim que escrevo.

Sem me recordar quais foram, escrevo para meus heróis da infância. Ah, sim, foi meu tio Lozo. Escrevo para ele. Também para os outros tios que, na companhia de papai, negociavam seus zebus na varanda da casa de minha avó cega. Escrevo para boi dormir — seria tão melhor escrever para conter esse desejo besta que algumas andorinhas têm de sozinhas fazer verão. 


Escrevo para quem nem se dá conta de ter vivido um momento histórico. Aquele milhão urrando “diretas já” na Candelária, em 1984. Um tal fulano que, em passeio pelo Rio, ouviu ecoar do Palácio do Catete o tiro que matava Getúlio Vargas. (Não importa se havia um silenciador na arma.) Escrevo para os mitômanos autênticos.

Escrevo para o sicrano que transpira seco o suor de rios podres, para a lavadeira relapsa batendo roupas à beira desses mesmos rios e, ainda, para o atendente mal-humorado, que só pensa em pescarias e gandaias. Escrevo para aqueles que fumam depois do sexo e para os que, depois dele, chupam laranja. 


Escrevo para os pacienciosos — se existirem. Para a mulher iletrada. Para quem, ao me ensinar o catecismo com sua pedagogia do medo, me afastou de Deus. (Se tivesse coragem, escreveria uma carta rancorosa ao bispo de Guaxupé.) Escrevo para a mulher do padre.

Não tendo outra, é com a minha cara de pau que escrevo para você. E é sempre para você que escrevo.

Alexandre Brandão

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