José Saramago acompanhava a escrita de um romance de um conjunto de notas. Como se pode perceber em "Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas'' – livro publicado postumamente e que chega acompanhado, para além do texto do autor, das suas notas preparatórias –, o escritor relatava nesses escritos as dúvidas que tinha, as decisões que ia tomando e as dificuldades que enfrentava durante a construção de uma história. Transpondo-as para um filme, elas, as notas, poderiam ser o making of. É um privilégio para o leitor entrar nessa intimidade da construção de um livro, como quem entra numa cozinha e assiste à preparação daquele prato tão saboroso que não se cansa de comer. Até agora, estas notas de "O Ensaio sobre a Lucidez" permaneciam inéditas.
A revista Blimunda, de junho, especial dedicada aos cinco anos da morte de José Saramago, oferece aos seus leitores estas anotações deixadas pelo escritor. Uma maneira de o sentir mais próximo. De o recordar com ainda mais intensidade
4 de Fevereiro de 2003
Na noite de 30 para 31 de Janeiro acordei às 3 horas com o pensamento súbito de que o assun-to para um novo romance, de que mais ou menos conscientemente andava à procura, afinal já o tinha. Era aquela «revolução branca» de que falei em Madrid e Barcelona na apresentação do Homem Duplicado, o voto em branco como única forma eficaz de protesto contra o abençoado sistema «democrático» que nos governa. Como se isto não fosse já suficiente, tive também a repentina, a instantânea certeza de que tal livro, no caso de vir a existir, teria de levar o título de Ensaio sobre a Lucidez, como se o facto de votar em branco na actual situação do mundo fosse um acto exactamente ao contrário daqueles ou da maioria daqueles que no Ensaio sobre a Cegueira se cometeram. Durante estes dias, a convicção de haver acertado em cheio foi-se tornando mais forte. Isto é, supondo que um vento de suprema loucura ou de suprema lucidez levasse um número significativo de pessoas a introduzir nas urnas nada mais que votos em branco (que, precisamente por nada dizerem, estariam dizendo tudo), esse acto, repetido por todas as partes, poderia acabar por resultar numa revolução, talvez na mais efectiva de todas que até hoje se fizeram
17 de março
“(...) Cheguei à conclusão de que o título do romance determina que as personagens sejam as que habitaram as páginas do outro Ensaio, o da cegueira. Provavelmente não todas. Pensei que a mulher do primeiro cego se teria divorciado do marido e que a mãe do rapazinho estrábico apareceu e tomou conta do filho. Os outros —mulher do médico e marido, rapariga dos óculos escuros e velho da venda preta, mantêm-se. E também o cão das lágrimas, que fechará o livro, com a mulher do médico morta ao seu lado, assassinada por aqueles que decidiram que tudo deveria voltar ao bom tempo antigo (...)”.
29 de março
“O primeiro capítulo começará pela descrição (sumária, claro está) da tempestade de chuva e vento que se abate sobre o país. A televisão e a rádio apelam à consciência cívica dos eleitores para que, apesar do mau tempo, não se deixem ficar em casa. Usar o palavreado balofo próprio das ocasiões patrióticas. Entrar em casa das personagens principais: a mulher do médico e o marido (também o cão, que vive com eles), a mulher divorciada do primeiro ladrão, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta, mais o rapazinho estrábico (a mãe nunca apareceu, ou sim?), o escritor e a família (toda? Recordo que era casado e creio que tinha filhas). Às quatro horas da tarde todos saem para ir votar (sairão igualmente os habitantes que ainda não haviam votado). Descrição da caminhada sob a chuva. Bairros inundados, bombeiros, barcos. A rádio e a televisão apressam-se a transmitir a notícia do inopinado acontecimento: os eleitores da cidade X estão a dar um extraordinário exemplo de civismo, arrostando com a intempérie para irem cumprir o sagrado dever (...)”.
19 de abril
Sobrevoando o Mediterrâneo.
“A ideia de que as personagens da Cegueira devam reaparecer em Lucidez parece-me cada vez melhor. Se o título do novo livro indicia já uma continuidade, a presença das personagens confirma-o definitivamente. No espírito das autoridades perplexas nascerá a suspeita de que a mulher que não perdeu a visão na Cegueira poderá ter algo que ver com o novo “fenômeno”. Passar dela para aqueles a quem ela havia guiado é uma consequência lógica. Se o romance anterior tinha obedecido escrupulosamente a uma certa lógica, este não poderá ficar atrás (...)”.
3 de junho
Dia em que Sophia de Mello Breyner ganhou o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana
“O final não será como foi descrito acima. A mulher do médico será assassinada, mas não na varanda das traseiras da casa. Será morta num jardim, aonde tinha levado o cão das lágrimas a passear. O cão começará a uivar e será igualmente morto. Os cegos perguntar-se-ão: Ouviste alguma coisa, Dois tiros, Mas havia também um cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o segundo tiro, Ainda bem, o uivar dos cães faz-me mal aos nervos”.
Leia mais Ensaio sobre a Lucidez - As notas do autor
17 de março
“(...) Cheguei à conclusão de que o título do romance determina que as personagens sejam as que habitaram as páginas do outro Ensaio, o da cegueira. Provavelmente não todas. Pensei que a mulher do primeiro cego se teria divorciado do marido e que a mãe do rapazinho estrábico apareceu e tomou conta do filho. Os outros —mulher do médico e marido, rapariga dos óculos escuros e velho da venda preta, mantêm-se. E também o cão das lágrimas, que fechará o livro, com a mulher do médico morta ao seu lado, assassinada por aqueles que decidiram que tudo deveria voltar ao bom tempo antigo (...)”.
29 de março
“O primeiro capítulo começará pela descrição (sumária, claro está) da tempestade de chuva e vento que se abate sobre o país. A televisão e a rádio apelam à consciência cívica dos eleitores para que, apesar do mau tempo, não se deixem ficar em casa. Usar o palavreado balofo próprio das ocasiões patrióticas. Entrar em casa das personagens principais: a mulher do médico e o marido (também o cão, que vive com eles), a mulher divorciada do primeiro ladrão, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta, mais o rapazinho estrábico (a mãe nunca apareceu, ou sim?), o escritor e a família (toda? Recordo que era casado e creio que tinha filhas). Às quatro horas da tarde todos saem para ir votar (sairão igualmente os habitantes que ainda não haviam votado). Descrição da caminhada sob a chuva. Bairros inundados, bombeiros, barcos. A rádio e a televisão apressam-se a transmitir a notícia do inopinado acontecimento: os eleitores da cidade X estão a dar um extraordinário exemplo de civismo, arrostando com a intempérie para irem cumprir o sagrado dever (...)”.
19 de abril
Sobrevoando o Mediterrâneo.
“A ideia de que as personagens da Cegueira devam reaparecer em Lucidez parece-me cada vez melhor. Se o título do novo livro indicia já uma continuidade, a presença das personagens confirma-o definitivamente. No espírito das autoridades perplexas nascerá a suspeita de que a mulher que não perdeu a visão na Cegueira poderá ter algo que ver com o novo “fenômeno”. Passar dela para aqueles a quem ela havia guiado é uma consequência lógica. Se o romance anterior tinha obedecido escrupulosamente a uma certa lógica, este não poderá ficar atrás (...)”.
3 de junho
Dia em que Sophia de Mello Breyner ganhou o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana
“O final não será como foi descrito acima. A mulher do médico será assassinada, mas não na varanda das traseiras da casa. Será morta num jardim, aonde tinha levado o cão das lágrimas a passear. O cão começará a uivar e será igualmente morto. Os cegos perguntar-se-ão: Ouviste alguma coisa, Dois tiros, Mas havia também um cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o segundo tiro, Ainda bem, o uivar dos cães faz-me mal aos nervos”.
Leia mais Ensaio sobre a Lucidez - As notas do autor
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