terça-feira, junho 30

A cura pela palavra

Há dois anos, surgiu na Inglaterra um curioso objeto literário, "The novel cure", que poderíamos traduzir como "A cura pelo romance". O livro, da autoria de Susan Elderkin e Ella Berthoud, tem como subtítulo "An A-Z of literary remedies", ou seja, "Um receituário literário de A a Z". A ideia é muito boa: receitar literatura para um vasto leque de males, da melancolia e depressão ao excesso de peso.

O livreiro português José Pinho, um dos proprietários da bonita e extravagante livraria lisboeta Ler Devagar inspirou-se no livro de Susan Elderkin e Ella Berthoud para criar um projeto ainda mais arrojado: uma farmácia literária. A farmácia deverá funcionar no átrio de um futuro centro de medicinas alternativas, a instalar num velho hospital de Lisboa, atualmente desativado. O paciente dirige-se ao farmacêutico literário (biblioterapeuta), dá conta das suas queixas, e recebe o remédio ou remédios, dois ou três livros, que poderá utilizar ali mesmo, comodamente instalado num dos quartos da instituição, ou levar para casa. Parece o devaneio feliz de um sonhador, e é, com a diferença de que José Pinho leva os sonhos a sério. Foi dele a ideia louca de transformar Óbidos, pequena e belíssima povoação histórica, cercada de muralhas, a 70 quilômetros de Lisboa, numa vila literária, com 11 livrarias, instaladas nos locais mais insólitos, desde uma antiga igreja a um mercado de frutas. Os principais compradores são os milhares de turistas brasileiros que visitam a vila e ficam encantados com as livrarias.

Há alguns anos publiquei um conto numa revista literária sobre uma senhora que receitava poesia como tratamento para todo o tipo de males. Serviu-me de modelo para a personagem uma vizinha belga que, quando eu era criança, lia versos, em voz alta, para as flores do seu jardim. Eu via-a, em certos fins de tarde incandescentes, passear ao longo do muro, com um livro aberto entre as mãos. Detinha-se aqui e ali, para recitar, debruçada sobre o fulgor das rosas, sonetos em francês e português. Ao vê-la, ao escutar o eco misterioso daqueles versos, eu intuía ali uma força antiga. Talvez as flores dela não crescessem mais frescas nem com mais vigor, mas eu acreditava que sim.

Circula pelas redes sociais um estudo da Universidade de Liverpool segundo o qual a poesia é muito mais estimulante para o cérebro, e mais útil na resolução de problemas, do que a chamada literatura de autoajuda. Mesmo ignorando a legitimidade do documento em causa, acredito nas suas conclusões. Livros de autoajuda costumam ser — os menos ruins — simples compilações enfadonhas de lugares-comuns. A boa poesia surpreende, acende clarões no cérebro, provoca e desafia.

A poesia, é sempre bom lembrar, começou por ser uma especialidade da magia. Magos declamavam os seus versos para convocar espíritos, acordar remotas forças, criar acontecimentos através do verbo. A palavra vento era o próprio vento. O som que enche a palavra sombra encheria de penumbra o coração dos inimigos — e por aí afora.


Quase todos os meninos são poetas. Manoel de Barros confessou, em várias entrevistas, ter roubado versos prontos aos próprios filhos. Nada que surpreenda um pai ou uma mãe. Quem quer que tenha filhos pequenos conhece a experiência de redescobrir o brilho da língua através da poesia involuntária que os baixinhos praticam todos os dias. Infelizmente, o que a generalidade dos sistemas de ensino faz é tirar a poesia de dentro das crianças. Crescer é, assim, perder poesia. Talvez por isso temos tendência a adoecer à medida que nos afastamos da infância — e da poesia. Acredito que a exposição prolongada à poesia é suscetível de provocar alterações irreversíveis no espírito de qualquer pessoa. Crianças que crescem ouvindo dizer poesia correm o risco de nunca se transformarem inteiramente em adultos, ou, pelo menos, em adultos conformados (e doentes). Eventualmente, continuam sendo poetas a vida inteira.

As versões em português (portuguesa e brasileira) do livro de Susan Elderkin e Ella Berthoud devem chegar nos próximos meses às livrarias e serão distintas uma da outra, pois incluem receitas próprias, adaptadas às diferentes realidades nacionais. A tentação de prolongar o jogo é enorme. Cada um de nós pode criar o seu próprio receituário. Por exemplo, para prevenir e tratar a intolerância religiosa, epidemia em crescimento no Brasil, eu recomendaria Jorge Amado. Para escritores que estejam sofrendo um surto de bloqueio criativo, ao invés de “I capture the castle”, de Dodie Smith, proposto pelas inglesas, aconselho “O livro do desassossego”, de Bernardo Soares. Sei, por experiência própria, que funciona muito bem.

José Eduardo Agualusa 

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