Foi de propósito. Digitei “eros”, mesmo, mas é bastante provável que você, na pressa ou na distração, tenha entendido “erros de revisão”. Acertadamente. São desprezíveis as falhas tipográficas que os próprios leitores podem corrigir, fazendo uso da lógica ou induzidos por locuções consagradas, como, por exemplo, “erro de revisão”. A bem dizer, todo erro de revisão é, antes de tudo, um erro de digitação - ou de datilografia, como antigamente se dizia e cometia - que o revisor encarregado de reconhecê-lo e eliminá-lo deixou passar.
Os gringos têm um vocábulo enxuto e consanguíneo para identificar lapsos tipográficos: typos. Os franceses empregam “coquille” (literalmente, concha) e nós, gralha, gato e pastel. Até por ser o mais antigo, gralha afinal venceu a concorrência.
No mais recente Bloomsday, semana passada, ao reavivar na memória um episódio ocorrido com James Joyce, ocorreu-me inventar um calemburgo que só tem graça em inglês: “This is not a typo, but a word in progress”. (Literalmente: “Isto não é um erro tipográfico, mas um neologismo em andamento”.) Pois, acredite, há gralhas que vêm para o bem. Como prova o aludido episódio envolvendo Joyce.
Estava o escritor irlandês a ditar Finnegans Wake ao conterrâneo Samuel Beckett, que então o secretariava, quando alguém bateu à porta e Joyce ordenou “come in” (entre). Concentrado em seu afazer, Beckett incluiu o “come in”, automaticamente, no texto que anotava. Embora não fizesse, nele, o menor sentido, Joyce tanto apreciou o erro que o manteve na edição final de sua “obra em andamento”.
Mas quase sempre a gralha é um transtorno, uma calamidade. “É o único erro humano que, a meu ver, merece pena de morte”, prescrevia Otto Lara Resende, desavindo com revisores desatentos desde que na edição portuguesa de O Retrato na Gaveta flagrara um “ânus” onde originalmente sobrevoava um anu, o pássaro, pouco importa se cuculiforme.
Segundo Eduardo Frieiro, que há 76 anos coletou uma série de gralhas históricas, não existe livro que não tenha sido vitimado por vacilos de tipógrafos e revisores. Claro que existem, mas são cada vez mais raros. Em outros tempos, com outro espírito, outra economia e mais leitores, as editoras investiam forte na contratação de editores, supervisores de textos e técnicos em checagem. Para abater custos e queimar etapas na produção de um livro, vários desses intermediários entre o, por assim dizer, manuscrito e o texto final foram sendo eliminados e precariamente substituídos por corretores automáticos e similares prodígios da era digital, exímios na troca de um erro por outros.
O computador ajudou menos do que se pensa. “O uso do processador de texto resultou num declínio substancial na disciplina e atenção do autor”, constatou o editor chefe da Little, Brown and Company, Geoff Shandler. “Os manuscritos ficaram mais longos e mais desleixados, apesar de bem impressos.” Ou seja, os autores não são apenas vítimas daqueles a quem Otto Lara ameaçava com a pena capital. F. Scott Fitzgerald cometia erros primários de ortografia em seus originais. Nesse e em outros exemplos de grandes escritores, tais tropeços são irrelevantes porque corrigíveis. Escrever bem e escrever corretamente são departamentos distintos.
Nem as Sagradas Escrituras, cuidadas com devoto desvelo por escribas e tipógrafos, escaparam da maldição. Pelo menos cinco de suas versões, impressas entre meados do século 16 e começo do século 19, chegaram às mãos dos fiéis com intrusos cochilos, alguns constrangedores, como a ausência de um não no Sétimo Mandamento (liberando a roubalheira) e a falta de outro naquela epístola aos coríntios que veda aos perversos a entrada no Reino dos Céus.
Segundo consta, a primeira grande vítima de uma gralha, entre nós, foi o poeta Cláudio Manuel da Costa, cuja obra introdutória do Arcadismo no Brasil saiu, em 1768, com um vistoso typo (“Orbas” em vez de “Obras”) na folha de rosto: Estampada na capa, chamaria ainda mais atenção, como aconteceu com a tradução dos Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, editada pela Artenova, nos anos 1960, com um ele a mais no sobrenome do poeta.
Em alguns exemplares do primeiro romance da série Harry Potter, J.K. Rowling virou J.A. Rowling, e foram prontamente recolhidos pela editora. Não eram tantos quanto os 80.000 exemplares do romance Liberdade, de Jonathan Franzen, que chegaram a ser impressos a partir de uma versão sem as alterações e correções do autor, e postos à venda em livrarias. Franzen descobriu a mancada enquanto lia um trecho do livro, durante um programa de entrevistas na TV britânica. Imagine a cena. Imagine o choque do autor. Imagine o prejuízo da editora.
Sorte teve a editora Garnier, cuja negligência no controle de qualidade da segunda edição das Poesias Completas de Machado de Assis, em 1902, beneficiou-se de uma brigada de corretores amigos do autor, que a nanquim emendaram, em mutirão, cada “cagara” que usurpara o pretérito mais-que-perfeito do verbo cegar numa estrofe do poema Advertência. Por outra versão da mesma história, Machado teria corrigido tudo sozinho. É possível. As tiragens de livros de poesia já eram bem módicas naquela época.
Dia desses repassei os olhos numa rara e autografada primeira edição de Angústia, de Graciliano Ramos, que herdei de Lúcio Rangel, amicíssimo do Velho Graça. Publicado em 1936 pela José Olympio, com o escritor encarcerado pelo Estado Novo e outra ortografia em vigor no País, tamanha era a quantidade de gralhas no texto que Graciliano, depois de posto em liberdade, pegou de volta o exemplar presenteado a Lúcio, entulhou suas margens de correções a caneta e, com nova dedicatória, devolveu-o ao amigo.
Não sei quanto vale tal preciosidade no mercado bibliográfico. Um dos exemplares das poesias de Machado corrigidas a nanquim estava sendo oferecido, pouco tempo atrás, por R$ 900 na Estante Virtual. Café-pequeno se comparado aos livros coalhados de typos disputados em leilões lá fora. Em 15 de junho, a citada primeira edição de Harry Potter e a Pedra Filosofal, com o nome da autora grafado errado, foi arrematada por £ 10.000. Ano passado, um exemplar do mesmo livro com a palavra “philosopher” sem uma das letras na contracapa foi comprado por um empresário londrino por £ 43.750.
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