Me chamava assim: Mio Conto, Mira Cuito, Miraconcho. Me desapelidava? Não, aquilo era simples inclinação do peito. Uma amizade funda lhe fazia inventar aqueles todos nomes. Um só não serviria. Eu ria: há tanto que precisava aquela falha de identidade. Há tanto eu carecia de certidão de inabilitações. Mas eu naquele amigo punha também as muitas visões. Rungos, tantos ele era. Qual deles o verdadeiro? Pois, meu suposto Rungo Alberto, uma certa manhã anunciou:
- “Vou construir um barco!”
Duvidei. Rungo Alberto era uma pessoa muito instantânea mas aquele caroço me parecia maior que a garganta. Não sendo engenheiro marinho, nem tendo artes de carpintaria, onde iria ele buscar qualificação? Rungo virou costas entoando sua única canção. Uma vez mais me inquiririu:
- “Não conhece esta canção? É um hino quase nacional”.
Eu queria espreitar, ele recusava. A construção não podia ser olhável. Assim se protegia de invejas e feitiços. Ele engenhava o barco como o mar fabrica os corais, petrificando o rendilhado de suas espumas. Os ilhéus passavam por ali, gozavam com a proclamação de Rungo. Podia um semi-urbano se aventurar a embarcadeiro?
Uma madrugada, Rungo me alvoroçou a janela. Coração aos tropeços, ele me conduziu pelos atalhos secretos que desaguavam em sua oficina:
- “Você se arregale, mano”.
Apontava uma enorme embarcação. Me espantei. Aquilo era um barco, autêntico, da proa à ré. Superava a dezena de metros, lindo de pintado: azul, branco, castanho. O mastro, vaidoso, ascendia a copa da floresta. Rungo Alberto, porventuroso e circunsperto, me afrontava. Não encolhi uma dúvida:
- “Agora, caro Rungo, eu lhe pergunto: como vai levar o barco até ao mar?”
Tudo ele tinha antepensado. “Os estudantes”, me respondeu sorrindo.
- “Os estudantes?
- “Sim, os seus alunos podem tchovar o barco. Peço: fale com eles”.
Não houve estudante que se furtasse. Todos juntaram braços e alegrias. Quatro horas depois o barco entrava nas ondas do Índico. Rungo abriu vinho português, despejou as primeiras gotas sobre o barco, outras sobre o mar. Só depois a garrafa circulou por todos. Abençoado, o barco parecia se afeiçoar melhor ao bate-onda. No baptismo a criança é que abençoa o mundo?
Os estudantes voltaram às camaratas, algazarrentos. Na praia fiquei eu e ele contemplando o barco no embalo de seu destino.
- “E agora que vai fazer com ele?
- “Com o barco?”
Não sabia, nem queria ideia. Fizera o barco, provara. A viagem era outro assunto. Insonhável.
“Minha viagem foi esta, eu termino aqui”. Mas, então qual o beneficio da obra?
- “Não é no deserto que ganhamos miragem?”
Durante dias ele sentou na praia contemplando o barco. Parecia ancorado à sua própria vitória. Rungo perdera a noção, divaguava? A mulher zangava-se: em casa, Rungo não dava atendimento. E ela me pediu em choro: eu que acudisse à réstia do senso dele...
- “Eu, mulher, não tenho voto na madeira. Esse homem é casburro”.
E ela se calou. Rungo era tão bom que ninguém aguentava ser inimigo dele. Aquilo era maldição, serviço encomendado dos aléns. Ela sabia, ali se vivia muito oralmente. E, nessa tarde, ela foi ao feiticeiro. O depois não se esperou.
Nessa mesma noite rebentou uma tempestade de escangalhar o oceano. O barquinho se soltou do mundo, desnavegou pela escuridão. Rungo, dizem, foi no encalço da sua criação.
Dias depois, o país via chegar a Paz. Ainda hoje, de regresso à ilha, eu me sento junto ao mar. Quem sabe da estória de Rungo, seu barco vogando na outra margem? Com suas águas sempre moventes, o mar não nos deixa ver o tempo. Quem me encara, espreitando o poente, acredita que eu me consagro a saudades. A tristeza é uma janela que se abre nas traseiras do mundo. Através dela eu vislumbro Rungo Alberto, meu velho amigo. Depois, um deserto me engole a alma. Estrangeiro é o lugar onde não se espera ninguém.
Mia Couto
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