Já aqui escrevi sobre o meu leitor mais improvável. Encontro-o todos os anos na Feira do Livro de Lisboa. O evento decorre num parque grande, no cimo do qual se tem uma vista incrível sobre a cidade, com o casario saltitando alegremente até o rio. Os escritores autografam os seus livros à sombra de toldos. Diante dos mais afortunados alinham-se alguns leitores. Voltei lá, há poucos dias, numa tarde cheia de luz e de pólens. Augusto Cury, sentado próximo, enfrentava uma imensa fila. A minha era mínima, composta por pessoas bastante diversas. Reconheci um antigo ministro angolano, dois ou três estudantes, um sueco em férias, muito vermelho, suando sob o árduo sol (soube mais tarde que era dinamarquês). O meu leitor improvável distinguia-se no meio do grupo. Distinguia-se, aliás, em meio à multidão que enchia o parque, espreitando os livros. Os cabelos compridos, enrolados, não viam água nem um pente há muitos meses. A roupa, amarfanhada e suja, colava-se à pele. Os passeantes olhavam para o homem com desconfiança. Ergui-me, dei-lhe um abraço e convidei-o a sentar-se. Estendeu-me um exemplar do meu último romance, para que o autografasse, e a seguir colocou-me nas mãos um pequeno caderno de capa preta:
— Este escrevi-o eu — disse. — Agora é seu.
Abri o caderno. Poemas, com fantásticas ilustrações coloridas, que saltam, iluminadas, contra um fundo negro. Também os poemas estão escritos à mão em tintas de várias cores.
Acontece-me receber livros de presente durante sessões de autógrafos. Jovens escritores em busca de uma editora confiam-me até originais. Infelizmente, nunca consegui fazer publicar um único desses textos. Não tenho talento para convencer editores.
Certa ocasião, no Rio, uma moça estendeu-me duas folhas secas, folhas autênticas, de árvores legítimas, cada uma com um haikai escrito a tinta branca:
“Garoa pinga/ gotas da sua sede/ na minha língua.”
O segundo haikai é o meu preferido: “traje de chuva:/ roupa de cama me cai/ como uma luva.”
Era a Christiana Nóvoa. Gostei tanto que fui espreitar o site dela, cujo endereço encontrei no verso da folha (estudei agronomia durante cinco anos e não sei como diabo se chama o verso de uma folha seca, escrita à mão). Fiquei encantado com o que descobri. Mais tarde ofereceu-me dois haikais para um dos meus romances,“Teoria geral do esquecimento”, e depois disso ficamos amigos.
Quem quiser encontrar Guilherme, assim se chama o meu leitor improvável, basta procurá-lo numa das livrarias do Chiado, no histórico e cada vez mais vivo coração de Lisboa. Quando não está ali, a ler, é possível que se ache em algum passeio próximo, sentado à sombra, assistindo ao espetáculo da Humanidade em trânsito.
A minha avó diria que Guilherme é um vagabundo. Em criança, eu amava essa palavra. Achava nela toda uma ressonância antiga, a viagens, a aventuras, a rebeldia, que me faziam sonhar. Eu queria muito ser vagabundo. Vagar pelo mundo sem compromissos. Na época, isso significava sobretudo não ter horas para dormir, nem horas para acordar. Não ter de ir à escola. Não ter de comer coisas verdes. A minha avó tentava trazer-me para a realidade. Todo o esforço dela era esse, trazer-me para a realidade: “Pensa no frio, no desconforto de dormir no chão, enrolado em jornais velhos. Pensa na fome, nos dias de chuva.”
Eu não lhe prestava muita atenção. Sonhava com uma vida na qual ninguém mandasse em mim. Percorreria cidades remotas, atravessaria desertos e florestas, só com um cachorro por companhia. Um cachorro e alguns livros. Sempre tive paixão por livros. Guilherme é o sujeito que eu gostaria de ter sido quando era criança. Vagabundo, sim, mas com uma biblioteca formidável. Porque, na minha ideia, um vagabundo com uma biblioteca formidável era ainda mais vagabundo. Era vagabundo até enquanto lia.
Falhei nesse projeto, como em tantos outros. Contudo, resisti. Sou aquele tipo de perdedor que não se deixa vencer facilmente. Não sei se foi minha avó a trazer-me para a realidade, se foram as costas. Porque, convenhamos, um tipo dormir no passeio, sobre a pedra dura, só é poético quando as costas são dos outros.
Voltando ao livro de Guilherme, fiquei surpreendido com alguns dos versos — e que mais podemos exigir da poesia, se não que nos surpreenda? Não estou, contudo, autorizado a divulgá-los. Logo na primeira página, topei com a solene advertência: “O que está escrito neste caderno não pode ser divulgado de nenhuma forma. Os infratores serão condenados a usar gravata pelo resto da vida. Inclusive no duche.”
Antes a morte. Quanto a mim, guardarei silêncio.
José Eduardo Agualusa
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