Ruth Swain |
sábado, setembro 30
As sequelas
No meu tempo, "sequelas" eram efeitos ou consequências (marcas de uma doença, por exemplo), mas hoje o termo é usado a torto e a direito para designar a continuação (o seguimento, a sequência) de uma obra literária ou cinematográfica; e, a reboque, até se inventou o termo "prequela" quando o livro ou filme é sobre um período anterior ao tratado na obra original. Enfim, parece que as prequelas e sequelas estão na moda – e o mais estranho é que, no caso das escritas, até podem ser narradas e compostas por outros autores que não os legítimos, ou seja, os que criaram o enredo principal e as personagens. No entanto, que peso terá a questão do estilo contra o perigo de se interromper a saída e venda de um bom produto?… Veja-se, por exemplo, a série sueca Millenium, que não deixou de ser publicada depois de o autor ter morrido e vai certamente continuar a alimentar filmes suecos e americanos. Veja-se também a ideia de recriar Orgulho e Preconceito com zombies (sim, não estou a brincar) ou contratar um novo escritor para seguir com as aventuras de… Bond, James Bond. Os casos não param: desde Os Crimes do Monograma de Agatha Christie (mas escritos por Sophie Hannah) até ao Peter Pan e ao Drácula de Bram Stoker, passando pela sequência de E Tudo o Vento Levou e as aventuras de Winnie de Pooh, há de tudo, e os herdeiros dos criadores, pelos vistos, nem se importam muito.
sexta-feira, setembro 29
Balaio de textos
Michelle Dowd |
Tudo que não é poesia me parece laico, prosaico, profano.
***
Se é tristeza o que você sente, diga. Se é desesperança o que você tem a escrever, escreva. O que você teme? Você se envergonha de causar compaixão?
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Depois da morte, nossa vida nunca mais será a mesma.
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Não, ainda não morri. Parece que respiro. E continuo escrevendo tão mal quanto sempre.
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Os poetas de megafone derrubam quarteirões com suas rosas suburbanas e seus rosibéis.
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Não há flores mais finadas do que as páginas de antologia.
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O bom de estar morto é que se pode estar assim sem nenhum esforço.
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Como é difícil a poesia do cotidiano: estar andando pela rua e não ter um cisne sequer à disposição.
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Meu bom humor é como uma dessas roupas que se usam só em ocasiões muito especiais.
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E, quando notamos, estamos já caminhando para o crepúsculo.
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Da gramática é possível esperar os piores desaforos. Basta dizer que até os palavrões estão sob sua alçada.
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A prosa pode contentar-se com a exatidão. A poesia deve aspirar sempre à perfeição.
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Ele era um escritor persistente. Oitentão, o que mais podia ser?
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Os filósofos não se satisfazem em pensar. Querem obrigar-nos a fazer o mesmo.
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Não há nada que agrade mais aos poetas que um bom afago, embora eles sempre digam que não o merecem.
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Se eu tivesse morrido em 2010, seria hoje um defunto respeitável, com sete anos de experiência.
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No sucesso das frases curtas, às vezes há mais sorte do que competência.
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Os ideais são como passarinhos. Passam e deixam no ar, quando deixam, só um pio.
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Abandonei meus vícios, todos. O amor? Bem, eu…
Raul Drewnick
Assim começa o livro
O vistoso salão do hotel Wessex, com seus escudos dourados de gesso e o mural retratando as Green Mountains, fora reservado para o Jantar das Senhoras do Rotary Club de Fort Beulah.
Ali em Vermont o evento não era tão pitoresco como teria sido nas pradarias do Oeste. Ah, tinha seus pontos altos: havia aquele diálogo cômico em que Medary Cole (moleiro e comerciante de rações) e Louis Rotenstern (dono de uma alfaiataria e lavanderia) anunciavam ser os históricos vermonteses Brigham Young e Joseph Smith,* e com suas piadas sobre esposas plurais imaginárias conseguiram direcionar inúmeras e divertidas cutucadas às mulheres presentes. Mas a ocasião era essencialmente séria. Toda a América estava séria agora, após os sete anos de depressão desde 1929. Pouco tempo havia se passado desde a Grande Guerra de 1914-8, só o suficiente para que os jovens nascidos em 1917 se preparassem para ir à faculdade… ou a alguma outra guerra, praticamente qualquer guerrazinha que pudesse vir a calhar.
As apresentações dessa noite entre os rotarianos não tinham nada de divertidas, pelo menos, não obviamente, pois eram os discursos patrióticos do general de brigada Herbert Y. Edgeways, Estados Unidos (ref.), que tratava raivosamente do tema da “Paz por meio da defesa: Milhões para armas mas nem um centavo para tributo”, e da sra. Adelaide Tarr Gimmitch — menos renomada por sua galante campanha anti-sufrágio em 1919 do que por ter, durante a Grande Guerra, mantido os soldados americanos à distância dos cafés franceses mediante a astuciosa manobra de lhes enviar dez mil jogos de dominó.
Tampouco poderia qualquer patriota com consciência social menosprezar o recente, mas de certo modo desconsiderado, esforço dela em manter a pureza do Lar Americano banindo da indústria cinematográfica todas as pessoas, atores, diretores ou cinegrafistas, que tivessem: (a) passado por um divórcio; (b) nascido em país estrangeiro — com exceção da Grã-Bretanha, uma vez que a sra. Gimmitch tinha a rainha Maria em alta conta; ou (c) recusado fazer o juramento em homenagem à Bandeira, à Constituição, à Bíblia e a todas as demais instituições peculiarmente americanas.
O Jantar Anual das Senhoras era uma reunião das mais respeitáveis — a fina-flor de Fort Beulah. A maioria das mulheres e mais da metade dos cavalheiros vestiam traje de gala, e dizia-se à boca pequena que antes do banquete serviram-se coquetéis ao círculo íntimo no quarto 289 do hotel. As mesas, dispostas em três lados de um quadrado vazio, brilhavam com velas, travessas de vidro trabalhado contendo doces e amêndoas um pouco duras, estatuetas do Mickey Mouse, rodas do Rotary de latão e pequenas bandeiras americanas de seda enfiadas em ovos cozidos dourados. Na parede via-se uma faixa com os dizeres service before self [“O Exército antes do indivíduo”, em tradução livre], e o cardápio — aipo, creme de tomate, hadoque grelhado, croquetes de frango, ervilhas e sorvete de tutti frutti — fazia jus aos mais elevados padrões do hotel Wessex. Todos escutavam, boquiabertos. O general Edgeways finalizava sua exortação viril porém mística do nacionalismo.
Ali em Vermont o evento não era tão pitoresco como teria sido nas pradarias do Oeste. Ah, tinha seus pontos altos: havia aquele diálogo cômico em que Medary Cole (moleiro e comerciante de rações) e Louis Rotenstern (dono de uma alfaiataria e lavanderia) anunciavam ser os históricos vermonteses Brigham Young e Joseph Smith,* e com suas piadas sobre esposas plurais imaginárias conseguiram direcionar inúmeras e divertidas cutucadas às mulheres presentes. Mas a ocasião era essencialmente séria. Toda a América estava séria agora, após os sete anos de depressão desde 1929. Pouco tempo havia se passado desde a Grande Guerra de 1914-8, só o suficiente para que os jovens nascidos em 1917 se preparassem para ir à faculdade… ou a alguma outra guerra, praticamente qualquer guerrazinha que pudesse vir a calhar.
Tampouco poderia qualquer patriota com consciência social menosprezar o recente, mas de certo modo desconsiderado, esforço dela em manter a pureza do Lar Americano banindo da indústria cinematográfica todas as pessoas, atores, diretores ou cinegrafistas, que tivessem: (a) passado por um divórcio; (b) nascido em país estrangeiro — com exceção da Grã-Bretanha, uma vez que a sra. Gimmitch tinha a rainha Maria em alta conta; ou (c) recusado fazer o juramento em homenagem à Bandeira, à Constituição, à Bíblia e a todas as demais instituições peculiarmente americanas.
O Jantar Anual das Senhoras era uma reunião das mais respeitáveis — a fina-flor de Fort Beulah. A maioria das mulheres e mais da metade dos cavalheiros vestiam traje de gala, e dizia-se à boca pequena que antes do banquete serviram-se coquetéis ao círculo íntimo no quarto 289 do hotel. As mesas, dispostas em três lados de um quadrado vazio, brilhavam com velas, travessas de vidro trabalhado contendo doces e amêndoas um pouco duras, estatuetas do Mickey Mouse, rodas do Rotary de latão e pequenas bandeiras americanas de seda enfiadas em ovos cozidos dourados. Na parede via-se uma faixa com os dizeres service before self [“O Exército antes do indivíduo”, em tradução livre], e o cardápio — aipo, creme de tomate, hadoque grelhado, croquetes de frango, ervilhas e sorvete de tutti frutti — fazia jus aos mais elevados padrões do hotel Wessex. Todos escutavam, boquiabertos. O general Edgeways finalizava sua exortação viril porém mística do nacionalismo.
quinta-feira, setembro 28
Brinquedos incendiados
Uma noite houve um incêndio num bazar. E no fogo total desapareceram consumidos os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos um por um, de tanto mirá-los nos mostruários – uns, pendentes de longos barbantes; outros, apenas entrevistos em suas caixas. Ah! Maravilhosas bonecas louras, de chapéus de seda! Pianos cujos sons cheiravam a metal e verniz! Carneirinhos lanudos, de guizo ao pescoço! Piões zumbidores! – e uns bondes com algumas letras escritas ao contrário, coisa que muito nos seduzia – filhotes que éramos, então, de M. Jordain, fazendo a nossa poesia concreta antes do tempo.
Assim, o bando que passava, de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção do valor – porque nós, crianças, de bolsos vazios, como namorados antigos, éramos só renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens e deixar cravadas nelas, como setas, os nossos olhos.
Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonhos apenas da infância, amor platônico.
O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas.
Felizmente, ninguém tinha morrido – diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? , pensavam as crianças. Tinha morrido o mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.
E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos distantes!
Cecília Meireles
Jeannette Guichard-Bunel |
Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber de presente alguns bonequinhos de celuloide, modestos cavalinhos de lata, bolas de gude, barquinhos sem possibilidade de navegação... – pois aquelas admiráveis bonecas de seda e filó, aqueles batalhões completos de soldados de chumbo, aquelas casas de madeira com portas e janelas, isso não chegávamos a imaginar sequer para onde iria. Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chegariam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos.
Assim, o bando que passava, de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção do valor – porque nós, crianças, de bolsos vazios, como namorados antigos, éramos só renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens e deixar cravadas nelas, como setas, os nossos olhos.
Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonhos apenas da infância, amor platônico.
O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas.
Felizmente, ninguém tinha morrido – diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? , pensavam as crianças. Tinha morrido o mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.
E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos distantes!
Cecília Meireles
quarta-feira, setembro 27
Censura russa
Dois dias depois de ter visto um interessante documentário sobre as Pussy Riot (não sei se se lembram delas), leio no The Guardian uma história tremenda que mostra bem o estado a que chegou o preconceito e o autoritarismo na Rússia, cem anos passados sobre a Revolução. A inglesa V. E. Schwab é autora de uma trilogia de livros fantásticos, Shades of Magic, com a qual obteve um enorme sucesso no Reino Unido, tendo mais de 50 000 seguidores só no Twitter. Os livros, que contam as aventuras de Kell, um mago que viaja através de quatro versões paralelas da cidade de Londres, são pouco convencionais no seu género, uma vez que incluem, entre outras personagens, um príncipe bissexual e uma carteirista de sexo indefinido (penso que ela se terá inspirado nas 50 Shades (Sombras) of Grey...). Como em muitos outros países, a trilogia foi vendida na Rússia e lá publicada – e a sua autora ficou obviamente contente por a ver traduzida. Porém, depois de os livros terem saído por lá, e através de um leitor russo que conhecia ambas as versões, descobriu que lhe cortaram todas as cenas gay e reescreveram uma boa parte do enredo sem lhe pedirem sequer permissão… Uma lei assinada pelo senhor Putin bane todas as referências a relacionamentos sexuais “não tradicionais” e, como tal, a obra foi censurada… Será que também modificaram Reviver o Passado em Brideshead e outros clássicos? Não me admirava nada...
terça-feira, setembro 26
Desapiedados
William Hogarth |
No mundo literário, a justiça dos homens é tão incerta e desapiedada como a outra, que se pratica na vida real. E as penas a que eles condenam são muitas vezes mais cruéis, porque, não usando a forca nem a cadeira elétrica, lançam mão do desprezo e do esquecimentoValdemar Cavalcanti, "Jornal literário"
Assim começa o livro...
Assim que a gente entrega a alma, tudo continua com mortal certeza, mesmo no meio do caos. Desde o princípio, jamais passou de outra coisa que não o caos: um fluido que me envolvia, que eu respirava pelas guelras. Nos substratos, onde a lua brilhava constante e opaca, era liso e fecundante; acima, confusa vozearia e discórdia. Em tudo eu via logo um oposto, uma contradição, e entre o real e irreal, a ironia, o paradoxo. Eu era o meu pior inimigo. Não desejava fazer nada que fosse melhor não fazer. Mesmo em criança, quando não me faltava nada, queria morrer: queria render-me porque não via sentido em lutar. Sentia que nada se provaria, consubstanciaria, somaria ou subtrairia pela continuação de uma existência que eu não pedira. Todos à minha volta eram um fracasso, ou, se não, ridículos. Sobretudo os bem-sucedidos. Estes me entediavam até as lágrimas. Eu era excessivamente compreensivo, mas não por simpatia. Era uma qualidade totalmente negativa, uma fraqueza que desabrochava à simples visão da infelicidade humana. Jamais ajudei a quem quer que fosse esperando que isso fizesse algum bem; ajudava porque não podia agir de outro modo. Parecia-me fútil querer mudar a condição das coisas; convencera-me de que nada se alteraria, a não ser uma mudança de opinião, e quem conseguiria mudar as opiniões dos homens? De vez em quando, um amigo se convertia: coisa que me dava engulhos. Eu não precisava mais de Deus do que Ele de mim, e se houvesse um Deus, dizia-me muitas vezes, eu O enfrentaria com toda calma e cuspiria em Sua cara.
O que mais me irritava era que, à primeira vista, as pessoas me tomavam por bondoso, afável, generoso, leal, fiel. Talvez eu possuísse essas virtudes, mas se isso fosse verdade, era por indiferença: podia dar-me ao luxo de ser bondoso, afável, generoso, leal e tudo mais, pois não sentia inveja. Essa era a única coisa de que jamais fui vítima. Nunca invejei nada nem ninguém. Pelo contrário, sentia apenas dó de todos e tudo.
segunda-feira, setembro 25
O som do vento
Helene Schjerfbeck (1862 - 1946) |
Escuta que é breve. Um sussurro que ensurdece. E apaga. No domingo, andei por uma rua arborizada e senti o toque aquecido. Ergui meu rosto e senti uma plenitude. Plenitudes são ligeiras e se esvaem como beija-flor. Por isso, é preciso aproveitar cada oportunidade em que uma vem lhe bicar. Pode ser a bebida que lhe fortalecerá durante o dia. Pode ser o instante em que aquela vida bonita e justa que tanto sonha acontece representada no calor em sua face. Pode ser quando uma amizade se renova e nos sentimos abraçados por toda a natureza. É a eternidade no grão de areia.
Eu ainda não sei o que fazer. Mas tenho feito mesmo assim. Porque há tanto a ser feito que nos engasgamos. As cobranças tamanhas nossas expectativas. É fácil desesperar quando sente a brisa da mortalidade na nuca. E não for uma sentença, mas uma oportunidade? O momento de um despertar bruto, que prenuncia o beijo? Quando estamos numa cama desconhecida. Ao lado, está quem lhe deu abrigo e um gin. Você agradece porque cada cafuné é uma das benções da vida. Nem sempre somos amados e a conjuntura cospe ácido quando oportuno. Mas temos esses interlúdios de lirismo. O mas que é Mais.
A beleza vem e vai. Se mantiver os ouvidos atentas, você a pega. Ela é carregada pelo vento e lhe atinge no momento mais preciso e inesperado. Logo, não seja arrogante. Abaixa o escudo e escuta o som do vento que este lhe carregará para a nova etapa. Aquela em que tudo se renova.
Daniel Russell Ribas
domingo, setembro 24
Tudo quase ótimo
Quando publicou seu primeiro romance, João Pedro encantou a família. O pai – que nunca escondera de ninguém sua incompatibilidade com livros de qualquer espécie – um dia depois do lançamento havia chegado à página 18 e, ao exagerar um pouco, dizendo estar na 25, arrancou tamanha expressão de júbilo do filho, no jantar, que sentiu um agudo remorso por não ter dito estar na 37, na 40 ou em alguma outra que deixasse João Pedro ainda mais feliz.
A mãe, sempre mais generosa, tinha lido tudo até a última letra e comunicou solenemente:
“Joãozinho, o seu é o melhor livro que eu já li.”
Enquanto a gratidão e o amor se misturavam no sorriso de João Pedro, sua irmã, a cruel Ivana, engoliu rapidamente um pedaço de carne para perguntar:
“O melhor ou o único, mãe?”
Dona Joana engasgou com uma garfada de arroz, tossiu, precisou tomar um gole de água e, com o rosto vermelho de indignação e falta de ar, respondeu:
“Como você é venenosa. Desde o meu tempo de escola eu sempre li muito.”
“Sei. Você leu a cartilha, o catecismo e… o que mais, mãe?”
Dona Joana fez o que sempre fazia quando a deixavam nervosa: resolveu ficar muda. Mas seus olhos lançavam faíscas contra a filha e, na hora da sobremesa, pôs menos sorvete para ela. Ivana notou:
“Isso é revanchismo, ouviu, mãe?”
A mãe e o pai, que não conheciam a palavra, olharam instantaneamente para João Pedro e, ao vê-lo sorrir, chegaram à conclusão de que a filha não tinha dito nada muito grave. Aliviados, os dois começaram a conversar sobre questões domésticas, enquanto Ivana, repondo o livro na conversa, deu sua opinião:
“Eu gostei, maninho.”
A alegria de João Pedro foi tanta que Ivana, a terrível, para não perder a fama, fez uma ressalva:
“Mas tem um porém.”
Um minuto depois, João Pedro já sabia qual era o porém: os capítulos eram longos demais, os títulos não prestavam, os diálogos eram frouxos e não havia nem suspense nem dramaticidade nas situações.
“E o resto, você achou bom?”, ele perguntou, com ironia.
“Achei, eu já disse. Mas…”
“Mas o quê? Vai dizer que tem outro porém?”
“É por isso que eu gosto de você, maninho. Você tem muita percepção.”
Enquanto o pai e a mãe se olhavam intrigados, porque não conheciam também aquela palavra, João Pedro, resignado, preparou-se para conhecer mais um defeito do seu romance.
A mãe, sempre mais generosa, tinha lido tudo até a última letra e comunicou solenemente:
“Joãozinho, o seu é o melhor livro que eu já li.”
Enquanto a gratidão e o amor se misturavam no sorriso de João Pedro, sua irmã, a cruel Ivana, engoliu rapidamente um pedaço de carne para perguntar:
“O melhor ou o único, mãe?”
Dona Joana engasgou com uma garfada de arroz, tossiu, precisou tomar um gole de água e, com o rosto vermelho de indignação e falta de ar, respondeu:
“Como você é venenosa. Desde o meu tempo de escola eu sempre li muito.”
“Sei. Você leu a cartilha, o catecismo e… o que mais, mãe?”
Dona Joana fez o que sempre fazia quando a deixavam nervosa: resolveu ficar muda. Mas seus olhos lançavam faíscas contra a filha e, na hora da sobremesa, pôs menos sorvete para ela. Ivana notou:
“Isso é revanchismo, ouviu, mãe?”
A mãe e o pai, que não conheciam a palavra, olharam instantaneamente para João Pedro e, ao vê-lo sorrir, chegaram à conclusão de que a filha não tinha dito nada muito grave. Aliviados, os dois começaram a conversar sobre questões domésticas, enquanto Ivana, repondo o livro na conversa, deu sua opinião:
“Eu gostei, maninho.”
A alegria de João Pedro foi tanta que Ivana, a terrível, para não perder a fama, fez uma ressalva:
“Mas tem um porém.”
Um minuto depois, João Pedro já sabia qual era o porém: os capítulos eram longos demais, os títulos não prestavam, os diálogos eram frouxos e não havia nem suspense nem dramaticidade nas situações.
“E o resto, você achou bom?”, ele perguntou, com ironia.
“Achei, eu já disse. Mas…”
“Mas o quê? Vai dizer que tem outro porém?”
“É por isso que eu gosto de você, maninho. Você tem muita percepção.”
Enquanto o pai e a mãe se olhavam intrigados, porque não conheciam também aquela palavra, João Pedro, resignado, preparou-se para conhecer mais um defeito do seu romance.
Café com leite
É preciso amar, sabe? Ter-se uma mulher a quem se chegue, como o barco fatigado à sua enseada de retorno. O corpo lasso e confortável, de noite, pede um cais. A mulher a quem se chega, exausto e, com a força do cansaço, dá-se o espiritualíssimo amor do corpo.
Como deve ser triste a vida dos homens que têm mulheres de tarde, em apartamentos de chaves emprestadas, nos lençóis dos outros! Como é possível deixar que a pele da amada toque os lençóis dos outros! Quem assim procede (o tom é bíblico e verdadeiro) divide a mulher com quem empresta as chaves.
Para os chamados “grandes homens”, a mulher é sempre uma aventura. De tarde, sempre. Aquela mulher, que chega se desculpando; e se despe, desculpando-se; e se crispa, ao ser tocada, e cerra os olhos, com toda força, com todo desgosto, enquanto dura o compromisso. É melhor ser-se um “pequeno homem”.
Amor não tem nada a ver com essas coisas. Amor não é de tarde, a não ser em alguns dias santos. Só é legítimo quando, depois, se pega no sono. E há um complemento venturoso, do qual alguns se descuidam. O café com leite, de manhã. O lento café com leite dos amantes, com a satisfação do dever cumprido.
No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo ascetismo da ioga... tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.
Antônio Maria
sábado, setembro 23
Clarice em 2017: o segredo mais popular da literatura brasileira
A biblioteca Clarice Lispector, em São Paulo, é um edifício público de concreto localizado na Lapa, um bairro de classe média relativamente próximo ao centro da cidade. Tem portas amarelas e azuis por fora; por dentro, principalmente pessoas idosas sentadas em meia dúzia de mesas redondas. Quase todo mundo sabe que a tal Lispector que dá o nome ao prédio era alguém importante, embora nem todos consigam identificá-la como a escritora brasileira mais traduzida e aclamada em décadas. E ninguém responde com a disposição de Lycia, uma adolescente de 14 anos e enormes óculos de acrílico que olhava as estantes metálicas nas paredes. “Acho que a conheço”, diz. E, depois de uma pesquisa no Google, mostra o celular: na tela, várias fotos em preto e branco de uma mulher linda e congelada em um gesto distante, como uma estrela de cinema dos anos quarenta. Em cada versão da foto, há uma frase diferente: “O verão está instalado em meu coração”. “Todo silêncio tem um nome”. “Este é meu problema: nunca fui de gostar pouco, ou gosto muito ou não gosto.” Todas as frases são atribuídas a Lispector, a mulher da foto, mas poucas realmente são. Lycia conclui: “Ainda não li livros dela, mas acho que gosto”.
Quarenta anos após sua morte, Clarice Lispector desfruta de uma enorme fama nas redes, transformada em um ícone da autoajuda adolescente. Para seus leitores mais sérios, os que defendem que arrancar suas frases do complexo e delicado contexto ao qual pertencem equivale a tirar sua alma, é apenas uma anedota ignominiosa. Para alguns jovens, é o que Lispector sempre foi. Mas também é um sintoma do complicado legado que a própria escritora, que nunca mostrou o menor interesse pela vida pública, deixou em seu país. “Clarice vive hoje um culto de sua imagem, mais do que de sua literatura”, destaca Yudith Rosenbaum, professora de literatura clássica da Universidade de São Paulo e autora de dois livros sobre a escritora. “Por não conceder entrevistas, por ter se isolado e cercado sua vida de mistério e por preferir o silêncio às falas vazias, a escritora criou ao redor de si uma aura de inacessibilidade ao lado de uma legião de fãs idólatras". Ao longo das décadas, Lispector se transformou em um fenômeno muito difícil de ignorar, mas isso só piorou o problema da marca deixada na literatura brasileira por alguém tão difícil de classificar.
Acaba sendo difícil falar de Lispector, mesmo como escritora brasileira, porque suas obras parecem passar por cima da realidade terrena. Uma vez, em 1969, dedicou algumas das crônicas que escrevia no Jornal do Brasil ao tema da violência policial (porque os policiais haviam disparado 13 vezes contra um bandido famoso). Seu último romance, A Hora da Estrela, fala de uma garota que, assim como ela fez há anos, viaja do Nordeste ao Rio de Janeiro. E nada mais. Em quase 40 anos de produção, não há mais referências explícitas ao lugar nem à época que a rodeavam. Rosenbaum argumenta que só há uma referência implícita em alguns textos. “Ao tratar da mulher e do feminino em suas relações familiares nas décadas de 50 e 70 no Brasil – e poucos escritores o fizeram com tamanha profundidade – distingue-se o vínculo paradoxal da patroa com sua empregada, essa íntima estranha que habita o lar, misto de pertencimento e exclusão. Há várias crônicas de Clarice, publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, que trazem experiências da própria escritora com suas empregadas, cujos processos de espelhamento e diferenciação entre ambas revelam conflitos de classe, mantidos em surdina na cultura brasileira”. A acadêmica lembra que, no romance A Paixão Segundo G.H., o enredo é ambientado no quarto da empregada.
Quarenta anos após sua morte, Clarice Lispector desfruta de uma enorme fama nas redes, transformada em um ícone da autoajuda adolescente. Para seus leitores mais sérios, os que defendem que arrancar suas frases do complexo e delicado contexto ao qual pertencem equivale a tirar sua alma, é apenas uma anedota ignominiosa. Para alguns jovens, é o que Lispector sempre foi. Mas também é um sintoma do complicado legado que a própria escritora, que nunca mostrou o menor interesse pela vida pública, deixou em seu país. “Clarice vive hoje um culto de sua imagem, mais do que de sua literatura”, destaca Yudith Rosenbaum, professora de literatura clássica da Universidade de São Paulo e autora de dois livros sobre a escritora. “Por não conceder entrevistas, por ter se isolado e cercado sua vida de mistério e por preferir o silêncio às falas vazias, a escritora criou ao redor de si uma aura de inacessibilidade ao lado de uma legião de fãs idólatras". Ao longo das décadas, Lispector se transformou em um fenômeno muito difícil de ignorar, mas isso só piorou o problema da marca deixada na literatura brasileira por alguém tão difícil de classificar.
Acaba sendo difícil falar de Lispector, mesmo como escritora brasileira, porque suas obras parecem passar por cima da realidade terrena. Uma vez, em 1969, dedicou algumas das crônicas que escrevia no Jornal do Brasil ao tema da violência policial (porque os policiais haviam disparado 13 vezes contra um bandido famoso). Seu último romance, A Hora da Estrela, fala de uma garota que, assim como ela fez há anos, viaja do Nordeste ao Rio de Janeiro. E nada mais. Em quase 40 anos de produção, não há mais referências explícitas ao lugar nem à época que a rodeavam. Rosenbaum argumenta que só há uma referência implícita em alguns textos. “Ao tratar da mulher e do feminino em suas relações familiares nas décadas de 50 e 70 no Brasil – e poucos escritores o fizeram com tamanha profundidade – distingue-se o vínculo paradoxal da patroa com sua empregada, essa íntima estranha que habita o lar, misto de pertencimento e exclusão. Há várias crônicas de Clarice, publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, que trazem experiências da própria escritora com suas empregadas, cujos processos de espelhamento e diferenciação entre ambas revelam conflitos de classe, mantidos em surdina na cultura brasileira”. A acadêmica lembra que, no romance A Paixão Segundo G.H., o enredo é ambientado no quarto da empregada.
Quase tão inútil como tentar rotulá-la pelo conteúdo de seus textos é estudar sua forma. Seu estilo, entre a poesia e a prosa, de pintar os detalhes cotidianos de espiritualidade e de usar a primeira pessoa em histórias em que ela não é um personagem, mais a afasta do que a aproxima de seus contemporâneos: não se parece com ninguém e sua visão não lembra nenhum movimento. “Ela se diferenciou do neoregionalismo dos anos trinta, que dominou boa parte do período literário em que surgiu. Mais afeita às influências do romance introspectivo ou intimista, herdeira da prosa de ficção católica francesa, Clarice ainda assim não se vincularia inteiramente a nenhuma dessas duas vertentes,” avalia Rosenbaum. Benjamin Moser, autor de Clarice, a biografia que em 2009 galvanizou a fama internacional da escritora, também resiste à classificação: “Ler Clarice é uma experiência muito pessoal. Falar dela no código nacional ou acadêmico é uma péssima ideia, é permitir que um grupinho sem imaginação enterre uma artista em um túmulo empoeirado”, afirma. “Clarice é melhor descrita como uma amante com a qual alguém tem momentos de luz, de amor, de sexo e de morte. Isso soará exagerado para aqueles que não a leram, mas, para aqueles que sim, parecerá óbvio e até mesmo um pouco limitado.”
Lispector morreu em 1977. Sua influência sobre futuros escritores do país acabou por ser mais problemática do que o esperado. Muitos tentaram ocupar seu espaço e, durante anos, proliferaram imitações de seu estilo: algumas excessivamente místicas, outras simplesmente impenetráveis. Outros escritores fugiram de sua temível sombra. Caio Fernando Abreu, um escritor dos anos setenta e oitenta que hoje também passa por um revival, 20 anos após sua morte, recusou-se a ler a obra de Lispector para não se contaminar. Não foi o único. “Um jovem escritor de São Paulo me disse que, depois de Clarice, muitos brasileiros sentiram que não tinham nada a dizer”, lembra Moser.
Ao mesmo tempo, a visão universal de Lispector ajudou sua obra a ganhar terreno no exterior. Em 1954, foi publicada na França a primeira tradução de um romance da escritora. Em Nova York, o primeiro foi lançado em 1964; já nos anos oitenta, os títulos em inglês haviam se multiplicado. A editora Schöffling & Co. comprou os direitos em alemão, e a Siruela fez o mesmo em espanhol. “Ela sempre foi uma figura de culto, mas apenas entre os especialistas, como um segredo bem guardado. Foram as traduções e o interesse que começou despertar no exterior que a transformaram em um fenômeno brasileiro”, opina o editor e escritor Pedro Corrêa do Lago. O prestígio de outros países completou a equação. Com um estilo tão peculiar que se limitava à sua obra, tendo cultivado muito pouco sua faceta pública e com seu nome mais endossado pelo estrangeiro do que pelo próprio país, Clarice Lispector passou a ser uma figura de culto. Mais algumas décadas nesse caminho e estaria protagonizando memes para a próxima geração.
Pelo menos por enquanto, desde que sua presença permaneça relativamente próxima no tempo. Seu valor para o país é claro: “É, juntamente com Guimarães Rosa, a grande escritora da segunda metade do século XX”, diz Corrêa do Lago. Talvez seja questão de que, com o tempo, acabe encontrando um espaço que não dependa de representar ou não a mentalidade brasileira. “E Shakespeare representava a mentalidade inglesa? Ou Cervantes, a espanhola? No início, claro que não: eram simples escritores, e Dom Quixote poderia ter sido escrito na França tanto quanto Hamlet poderia ter sido escrito na Itália”, protesta Moser. “Mas os grandes artistas sabem projetar, de uma maneira muito estranha, uma visão muito excêntrica e pessoal sobre os falantes de todo um idioma, e também sabem fazer com que acreditem que essa visão é sua. Assim, é impossível imaginar o espanhol sem Cervantes, o inglês sem Shakespeare, e o português sem Clarice.”
Lispector morreu em 1977. Sua influência sobre futuros escritores do país acabou por ser mais problemática do que o esperado. Muitos tentaram ocupar seu espaço e, durante anos, proliferaram imitações de seu estilo: algumas excessivamente místicas, outras simplesmente impenetráveis. Outros escritores fugiram de sua temível sombra. Caio Fernando Abreu, um escritor dos anos setenta e oitenta que hoje também passa por um revival, 20 anos após sua morte, recusou-se a ler a obra de Lispector para não se contaminar. Não foi o único. “Um jovem escritor de São Paulo me disse que, depois de Clarice, muitos brasileiros sentiram que não tinham nada a dizer”, lembra Moser.
Ao mesmo tempo, a visão universal de Lispector ajudou sua obra a ganhar terreno no exterior. Em 1954, foi publicada na França a primeira tradução de um romance da escritora. Em Nova York, o primeiro foi lançado em 1964; já nos anos oitenta, os títulos em inglês haviam se multiplicado. A editora Schöffling & Co. comprou os direitos em alemão, e a Siruela fez o mesmo em espanhol. “Ela sempre foi uma figura de culto, mas apenas entre os especialistas, como um segredo bem guardado. Foram as traduções e o interesse que começou despertar no exterior que a transformaram em um fenômeno brasileiro”, opina o editor e escritor Pedro Corrêa do Lago. O prestígio de outros países completou a equação. Com um estilo tão peculiar que se limitava à sua obra, tendo cultivado muito pouco sua faceta pública e com seu nome mais endossado pelo estrangeiro do que pelo próprio país, Clarice Lispector passou a ser uma figura de culto. Mais algumas décadas nesse caminho e estaria protagonizando memes para a próxima geração.
Pelo menos por enquanto, desde que sua presença permaneça relativamente próxima no tempo. Seu valor para o país é claro: “É, juntamente com Guimarães Rosa, a grande escritora da segunda metade do século XX”, diz Corrêa do Lago. Talvez seja questão de que, com o tempo, acabe encontrando um espaço que não dependa de representar ou não a mentalidade brasileira. “E Shakespeare representava a mentalidade inglesa? Ou Cervantes, a espanhola? No início, claro que não: eram simples escritores, e Dom Quixote poderia ter sido escrito na França tanto quanto Hamlet poderia ter sido escrito na Itália”, protesta Moser. “Mas os grandes artistas sabem projetar, de uma maneira muito estranha, uma visão muito excêntrica e pessoal sobre os falantes de todo um idioma, e também sabem fazer com que acreditem que essa visão é sua. Assim, é impossível imaginar o espanhol sem Cervantes, o inglês sem Shakespeare, e o português sem Clarice.”
sexta-feira, setembro 22
Primavera
Carmen Corrales |
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.
Cecília Meireles
quarta-feira, setembro 20
Papo no bar
Onde há escritores, mais cedo ou mais tarde, aparecem editores. Se Drew, o proprietário, tivesse uma percentagem nos negócios literários fechados dentro de seu bar, seria um homem rico. (De qualquer maneira, temos sérias suspeitas de que ele seja um homem rico). Um dos nossos espirituosos fregueses certa vez observou que era comum se ver, a um canto do Gamo Branco, meia dúzia de autores indignados discutindo com um editor cara de pau, enquanto, em outro canto, meia dúzia de indignados editores discutiam com um autor cara de pauArthur C. Clarke, "Silêncio, por favor"
O leão
A menina conduz-me diante do leão, esquecido por um circo de passagem. Não está preso, velho e doente, em gradil de ferro. Foi solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: as pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados, sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que ele não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, que fossem lágrimas.
Observei em volta: somos todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o seu antigo prestigio - as crianças estão em redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o bicho tem as pernas entravadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se em pé.
Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: faz estremecer a grama a seus pés.
Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.
– Ele não tem dente?
– Tem sim, não vê? O que não tem é força de morder.
Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso da derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar o capim. Ora, leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho e doeu.
O leão abriu a bocarra de dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor, elevou-se aos poucos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé. Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina de fordeco antigo.
Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão soltou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.
Dalton Trevisan
Observei em volta: somos todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o seu antigo prestigio - as crianças estão em redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o bicho tem as pernas entravadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se em pé.
Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.
– Ele não tem dente?
– Tem sim, não vê? O que não tem é força de morder.
Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso da derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar o capim. Ora, leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho e doeu.
O leão abriu a bocarra de dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor, elevou-se aos poucos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé. Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina de fordeco antigo.
Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão soltou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.
Dalton Trevisan
terça-feira, setembro 19
Atlas literário
segunda-feira, setembro 18
Palavra nas tintas é outra coisa
'Esse não sou eu'
Pietro Antonio Rotari (1707-1762) |
Ele ganha seu dinheirinho fazendo caricaturas na Praça da Sé. Está há três anos nisso, tempo suficiente para se considerar bem-sucedido. Nunca precisou voltar a ser distribuidor de folhetos ou entregador de pizza. Sabe que tem talento e o defende com veemência se o colocam em dúvida. Agora mesmo está explicando a um office-boy, que não se reconheceu no rosto desenhado, que é um caricaturista, não um retratista. Ao garoto, que já pagou mas resmunga alguma coisa, ele pergunta:
“Do que você não gostou?”
O office-boy diz que o queixo não lhe agradou.
“O queixo? Está achando o quê? Que ele está grande?”
O garoto faz que sim, com a cabeça. Ele, pacientemente, justifica:
“Ah, sabe como é. uma caricatura é sempre meio exagerada. Mas você está muito bem, pode crer.”
Outro típico office-boy passa com sua mochila e cumprimenta:
“Oi, Queixinho.”
“Queixinho é a mãe.”
O office-boy de queixo miúdo vai embora, olhando ainda desconfiado a caricatura, e o caricaturista, porque já conseguiu um dinheiro razoável, resolve ir para casa. Alonga o caminho para o ponto do ônibus só para passar diante da loja de calçados femininos e ver a atendente, que fica sempre na entrada, ao lado da vitrine. Todas as vezes ele tem vontade de parar. Mas parar para admirar sapatos de mulher? O que a moça pensaria dele?
Ela parece mais bonita hoje, assim como ontem dava a impressão de estar mais bela que anteontem. Ele para uns passos adiante, numa banca de jornais, e, observando disfarçadamente o rosto amado, se põe a desenhá-lo. É um retratista agora, não o caricaturista. Trabalhando com uma lentidão inabitual, que julga agora necessária à perfeição, termina o perfil. Ele lhe parece tão pessoal, tão íntimo, que resolve não assinar seu nome artístico: Pablo. Escreve o nome real – Paulo Mateus da Conceição – e, com uma dessas coragens que só os apaixonados conhecem, volta para diante da loja e entrega à moça, enrolado, o desenho.
Quando ela, mais espantada que curiosa, se põe a desenrolá-lo, ele olha para o seu nariz e vê que é muito mais gracioso, e também os olhos lhe parecem mais expressivos do que nunca.
Assim que a atendente fixa o olhar no desenho, ele se sente ridículo, diz “olha, amanhã eu te explico tudo, tá bom?”, e sai correndo como um trombadinha, sem notar o sorriso que ela esboça, igual ao que está na cartolina.
domingo, setembro 17
Assim começa o livro...
Uma viagem de carro de uma hora, boa parte dela na subi‑ da, no meio da chuva e da fumaça. Eu mantinha minha janela abaixada alguns centímetros, na esperança de sentir uma fragrância, um olor de arbustos aromáticos. Nosso motorista diminuía a velocidade nos piores trechos da estrada e nas curvas mais fechadas, e sempre que vinha um carro em sentido contrário em meio à neblina. Em alguns trechos a vegetação à beira‑estrada rareava e víamos um panorama de selva pura, vales inteiros de mata, espalhada entre os morros.
Jill lia seu livro sobre os Rockefeller. Quando se concentrava, ela tornava‑se inacessível, como se estivesse completamente estupefata, e durante toda a viagem só a vi levantar os olhos da página uma vez, para ver de relance umas crianças brincando num campo.
O trânsito era escasso nos dois sentidos. Os carros que vinham em nossa direção apareciam de repente, pequenos desenhos animados em cores, desengonçados, cambaleando, e Rupert, nosso motorista, tinha que manobrar depressa na chuva torrencial para 10 evitar colisões, contornar as valas profundas na pista, esquivar‑se da selva que invadia a estrada. Pelo visto, pressupunha‑se que to‑ das as manobras evasivas tinham de ser feitas pelo nosso veículo, o táxi.
A estrada ficou plana. De vez em quando surgia alguém no meio das árvores, olhando para nós. A fumaça descia do alto da serra. O carro subiu mais um trecho, curto, e então chegou ao aeroporto, uma série de prédios pequenos e uma pista de pouso. Parou de chover. Paguei Rupert e carregamos a bagagem para o terminal. Então o vimos lá fora com outros homens de camisa esporte, conversando na luminosidade subitamente ofuscante.
O terminal estava cheio de gente, malas e caixas. Jill ficou sentada em sua mala, lendo, com nossas sacolas e bagagens de mão à sua volta. Fui me acotovelando até chegar ao balcão e fiquei sabendo que estávamos na lista de espera, números cinco e seis. Isso fez com que uma expressão pensativa surgisse em meu rosto. Eu disse ao homem que havíamos feito a confirmação em São Vicente. Ele retrucou que era necessário reconfirmar setenta e duas horas antes do voo. Expliquei que tínhamos feito um passeio de barco; setenta e duas horas antes, estávamos no arquipélago de Tobago Cays — onde não há gente, nem prédios, nem telefones. Ele disse que a regra era reconfirmar. Mostrou‑me onze nomes num pedaço de papel. Uma prova material. Éramos os números cinco e seis.
sábado, setembro 16
O inferno é de gelo
Estava (estou) em plenos 81 anos, faceiro, indo para lá e para cá, fazendo shows, palestras, saracoteando e, às vezes, olhando com certa vaidade ou autossuficiência para pessoas mais novas do que eu mancando, com bengala ou muleta, sem coragem ou possibilidade de subir uma escada, ou presas à cama. Confesso, envergonhado, era certa onipotência. Pecado venial?
“Mas há na vida sempre um dia, dia do sonho se acabar, e este me veio e eu não via, aquele veleiro regressar.” Este é o trecho da canção História Triste de Praieira, de Stefania Macedo, de 1929, que minha mãe costumava cantar todos os dias na minha infância.
Sei que é um clássico do gênero. Dona Maria do Rosário me advertia: lembre-se, há na vida sempre um dia.
Dito e feito, esse dia foi há umas quatro semanas. Ao subir uma escada, o degrau desapareceu. Meu corpo voou, entrei em pânico, sabia o perigo de uma queda. Vi o chão se aproximar. Uma queda é rapidíssima para quem olha, vagarosa para quem cai, uma eternidade. Vislumbrei cair de cabeça, sofrer um traumatismo craniano, ou quebrar o fêmur, passar por cirurgia, ficar meses na cama, enfaixado, engessado, perdendo todas as palestras que tenho pela frente, incluindo a de amanhã, às 16 horas na Flim, no Parque Vicentina Aranha, em São José dos Campos. Imaginei cair de cara, bater o nariz, quebrar a mandíbula, fazer plástica (talvez melhore esta cara brava), colocar pinos nos pés. Fantasiei costelas quebrando, perfurando o pulmão, eu sem respirar, necessitando de oxigênio pelo resto da vida.
Enfim, cheguei ao chão, bati o ombro esquerdo. Vocês não têm ideia da sensação de humilhação que é cair, todos nos olhando, alguns rindo, outros dizendo “coisa de velho”, inimigos querendo que morra. Querer levantar e não conseguir. Ser amparado por mãos generosas. Trazem um copo de água com açúcar, querem levar ao pronto-atendimento. Puxam uma cadeira. Bem, a queda foi menos traumática como resultado. Uns tendões se desligaram no ombro esquerdo. Mas descobri que a queda foi ocasionada por uma artrose no joelho direito. Horror! Artrose? Pancada no ego. Vexame, fraqueza, acanhamento. Quanta besteira, diria vovó Branca, mãe de meu pai.
Nesse meio tempo, tive de ir a Ribeirão Preto. Amparado por uma bengala, que acreditei me dar certa elegância, comecei a subir a escada de embarque em Congonhas. São aqueles voos que não saem do finger, vamos de ônibus até a pista. Subi degrau a degrau, cauteloso. Então, ouvi uma voz: “Ô, meu senhor! Se é para andar devagar, por que não fica por último, para não atrapalhar ninguém”? Um sujeito atrás de mim foi solidário. Parou, não deixou ninguém passar e me disse: “Suba tranquilo. As pessoas estão cada vez estúpidas”.
Escrevi a um amigo da adolescência, Sergio Fenerich, contando essas tolas atribulações. Ele foi rápido e direto: “Por que será que não gostamos de cair? (Ademais da queda propriamente dita e dos danos físicos que ela nos pode causar, é claro?) Não será porque cair é perder a nossa condição de animais verticais, e adquirir, em troca, um estado de horizontalidade, que, a bem dizer, é, primeiro, uma diminuição da nossa própria condição humana, de seres eretos, criados à imagem e semelhança de Deus, e, segundo, uma metáfora da mesma morte? Ao cair, segue-se, por mais ou menos tempo, o jazer (ou ficar deitado), palavra que nos evoca, queiramo-lo ou não, a ideia de ócio, inatividade, suspensão das atividades normais, e, mais dramaticamente, de cessação da própria vida material e baixa ao jazigo, do corpo defunto. Parodiando os versos célebres, cair, como partir, ou como dormir, não seria, igualmente, mourir un peu?”.
Passados alguns dias, no meu estúdio, a cadeira deslizou puxada pela mão da bruxa, caí, torci o pé, inchou, doeu terrivelmente. Pronto, calamidade, minha vida acabada, fazer o quê? Sou catastrófico, penso no pior. Então, recebi a nova revista da Gol com uma capa magnífica. Para mim a melhor de toda a história da publicação, pelo significado. A modelo Paula Antonini, que teve a perna esquerda amputada em um acidente, colocou uma prótese e é hoje, modelo internacional. E em um jornal li sobre a morte de Adriano Pereira, que teve o pé direito amputado, fraturou uma vértebra em desastre e chegou a campeão Panamericano de natação, teve dois bronzes em Atlanta.
E eu, cheio de autopiedade com dois tombos chatos, mas de certo modo insignificantes. Tive vergonha. Estou bem, a cabeça a toda, terminei novo romance, consigo me locomover ainda que lentamente. (Mula manca, diriam de mim na infância) Para que pressa? O que mais quero? Desviei o olhar do meu umbigo. Então me ocorreu uma coisa o condicionamento em que vivemos. Católico, cresci em um mundo de culpas e castigos. Culpas por tudo, penitências, pecados, punições, confissões, absolvições. Achava que tinha me liberado com o tempo. Mas – sei lá se pela idade, por ficarmos mais vulneráveis – ou pelo medo de que as coisas não sejam como a gente quer ou imagina, diante desses contínuos ir ao chão, lembrei da culpa. Estaria pagando malfeitos? Sendo punido pela vaidade? Estaria me achando? Alguém (quem?) então me apontou o dedo, dizendo: “Menos, Ignácio, menos. Você é frágil como todos”. Uma coisa descobri. Ao enfiar o pé em um balde de gelo, várias vezes ao dia, soube que o inferno não é de chamas, é de gelo. Eta dor!
“Mas há na vida sempre um dia, dia do sonho se acabar, e este me veio e eu não via, aquele veleiro regressar.” Este é o trecho da canção História Triste de Praieira, de Stefania Macedo, de 1929, que minha mãe costumava cantar todos os dias na minha infância.
Sei que é um clássico do gênero. Dona Maria do Rosário me advertia: lembre-se, há na vida sempre um dia.
Enfim, cheguei ao chão, bati o ombro esquerdo. Vocês não têm ideia da sensação de humilhação que é cair, todos nos olhando, alguns rindo, outros dizendo “coisa de velho”, inimigos querendo que morra. Querer levantar e não conseguir. Ser amparado por mãos generosas. Trazem um copo de água com açúcar, querem levar ao pronto-atendimento. Puxam uma cadeira. Bem, a queda foi menos traumática como resultado. Uns tendões se desligaram no ombro esquerdo. Mas descobri que a queda foi ocasionada por uma artrose no joelho direito. Horror! Artrose? Pancada no ego. Vexame, fraqueza, acanhamento. Quanta besteira, diria vovó Branca, mãe de meu pai.
Nesse meio tempo, tive de ir a Ribeirão Preto. Amparado por uma bengala, que acreditei me dar certa elegância, comecei a subir a escada de embarque em Congonhas. São aqueles voos que não saem do finger, vamos de ônibus até a pista. Subi degrau a degrau, cauteloso. Então, ouvi uma voz: “Ô, meu senhor! Se é para andar devagar, por que não fica por último, para não atrapalhar ninguém”? Um sujeito atrás de mim foi solidário. Parou, não deixou ninguém passar e me disse: “Suba tranquilo. As pessoas estão cada vez estúpidas”.
Escrevi a um amigo da adolescência, Sergio Fenerich, contando essas tolas atribulações. Ele foi rápido e direto: “Por que será que não gostamos de cair? (Ademais da queda propriamente dita e dos danos físicos que ela nos pode causar, é claro?) Não será porque cair é perder a nossa condição de animais verticais, e adquirir, em troca, um estado de horizontalidade, que, a bem dizer, é, primeiro, uma diminuição da nossa própria condição humana, de seres eretos, criados à imagem e semelhança de Deus, e, segundo, uma metáfora da mesma morte? Ao cair, segue-se, por mais ou menos tempo, o jazer (ou ficar deitado), palavra que nos evoca, queiramo-lo ou não, a ideia de ócio, inatividade, suspensão das atividades normais, e, mais dramaticamente, de cessação da própria vida material e baixa ao jazigo, do corpo defunto. Parodiando os versos célebres, cair, como partir, ou como dormir, não seria, igualmente, mourir un peu?”.
Passados alguns dias, no meu estúdio, a cadeira deslizou puxada pela mão da bruxa, caí, torci o pé, inchou, doeu terrivelmente. Pronto, calamidade, minha vida acabada, fazer o quê? Sou catastrófico, penso no pior. Então, recebi a nova revista da Gol com uma capa magnífica. Para mim a melhor de toda a história da publicação, pelo significado. A modelo Paula Antonini, que teve a perna esquerda amputada em um acidente, colocou uma prótese e é hoje, modelo internacional. E em um jornal li sobre a morte de Adriano Pereira, que teve o pé direito amputado, fraturou uma vértebra em desastre e chegou a campeão Panamericano de natação, teve dois bronzes em Atlanta.
E eu, cheio de autopiedade com dois tombos chatos, mas de certo modo insignificantes. Tive vergonha. Estou bem, a cabeça a toda, terminei novo romance, consigo me locomover ainda que lentamente. (Mula manca, diriam de mim na infância) Para que pressa? O que mais quero? Desviei o olhar do meu umbigo. Então me ocorreu uma coisa o condicionamento em que vivemos. Católico, cresci em um mundo de culpas e castigos. Culpas por tudo, penitências, pecados, punições, confissões, absolvições. Achava que tinha me liberado com o tempo. Mas – sei lá se pela idade, por ficarmos mais vulneráveis – ou pelo medo de que as coisas não sejam como a gente quer ou imagina, diante desses contínuos ir ao chão, lembrei da culpa. Estaria pagando malfeitos? Sendo punido pela vaidade? Estaria me achando? Alguém (quem?) então me apontou o dedo, dizendo: “Menos, Ignácio, menos. Você é frágil como todos”. Uma coisa descobri. Ao enfiar o pé em um balde de gelo, várias vezes ao dia, soube que o inferno não é de chamas, é de gelo. Eta dor!
Possuir
Alexandre François Bonnardel |
O Manel costuma dizer que, lá em casa, eu sou a leitora e ele o bibliófilo – e talvez tenha razão. Não tenho espírito de coleccionadora e o que amo acima de tudo nos livros é o texto. Claro que não sou indiferente a uma bonita edição de determinado livro ou a uma colecção bem feita obedecendo a um tema ou estratégia. Mas do que gosto mesmo é de ler e não me importaria de alienar parte da minha biblioteca se tivesse, por exemplo, de mudar para uma casa mais pequena e soubesse que não voltaria a ler esses livros. Não sou também, regra geral, agarrada às coisas, que substituo sem grandes desgostos, ou sequer possessiva. Talvez por isso me custe entender porque há malucos que pagam fortunas para possuir uma peúga de John Lennon; talvez por isso me custe ver agora que os herdeiros do meu poeta favorito – o irlandês William Butler Yeats – vão leiloar centenas de cartas de amor (incluindo 130 manuscritas enviadas à primeira namorada), livros, quadros, móveis e objectos pessoais do escritor que venceu o Prémio Nobel da Literatura em 1923. A mim, que o venero, nunca me passaria pela cabeça possuir os seus originais (contentar-me-ia em lê-los), e menos ainda a poltrona onde terá posto o rabo. Mas a Sotheby’s vai de certezinha absoluta facturar – e muito, porque nem todos somos iguais e há quem goste simplesmente de possuir.
quinta-feira, setembro 14
O dicionário
Lendo um romance surge uma palavra inesperada, que me leva ao dicionário e à surpresa: no dicionário, a frase que serve de exemplo para o verbete é exatamente a mesma que eu lia no romance.
Não sou um homem que acredita em coincidências. Sou um tolo de voz fraca, que por maldade põe mais fé nos livros lidos que na rotina de sua vida. Confesso não querer interpretar o que vivi descrito no parágrafo lá em cima. Alguém talvez sorria, enxergando na coincidência uma trama de feliz destino, ter encontrado entre as palavras a sorte de uma vocação essencial. Outro leitor talvez me considere uma espécie de fanático, um dos que certamente inventam a coincidência, tentando achar para sua crônica um assunto.
Que sinistro.
Porém, o dicionário continua lá, com suas centenas de milhares de verbetes, brilhando para o fascínio das eras. Não posso reprovar a surpresa que preencheu naquela hora minha percepção do dicionário. Posso contar a história à minha moda, usando o alfabeto como instrumento de informação e aprendizado. Enquanto isso, interpreto as coincidências, as metáforas.
Eu gosto muito de dicionários. Se tivesse disposição o bastante, eu leria dicionários inteiros. Considero simplesmente incrível o trabalho de elaborar dicionários. De um instante para o outro, uma palavra qualquer vira verbete e o verbete adquire um significado. Esse significado fica registrado para todo o sempre, gravado como atestado de talento da palavra para a memória.
Mas dicionários não deixam de ser também submetidos de vez em quando ao teste do tempo. Fico imaginando como seja: suspeito que venha uma banca de especialistas, experimenta dar uma lida, uma boa examinada, depois decreta: o pobre dicionário deve ser revisto, quando não reescrito por completo. É uma responsabilidade. Quem nunca precisou estudar o sentido dessa ou daquela palavra boba?
Corretor ortográfico não resolve. Não se pode dizer que o caso está na precisão de escrever, ainda que se espere dos corretores ortográficos que em dado momento passem a escrever corretamente. O caso está na precisão do saber. Ou seja, na curiosidade de conhecer o vocabulário. Sem essa curiosidade não existiriam os dicionários.
Parece uma pesquisa reles. Garanto que não é.
Gosto inclusive de brincar com a palavra do dia, função que existe em dicionários para celulares. Abre-se o aplicativo grátis e surge como sugestão a palavra do dia. O jogo consiste em usar essa palavra quantas vezes conseguirmos no espaço de curtas vinte e quatro horas. Joga-se em grupo ou individualmente.
Eu comecei um dia com a palavra “euforia”.
Marco Antonio Marti
quarta-feira, setembro 13
Andar para meditar
Já notei que num quartinho estreito as ideias da gente ficam pouco à vontade, e sempre gostei de caminhar de um lado para outro enquanto medito minhas novelas.
Mai Thu |
Na verdade, sempre me agradou mais meditar minhas novelas e fantasias, do que escrevê-lasFiodor Dostoiévski, "Humilhados e ofendidos"
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