Na noite passada, Bóris descobriu que estava com piolhos. Tive de raspar o sovaco dele e, mesmo assim, a coceira continuou. Como alguém pode ter piolhos num lugar tão bonito como esse? Mas não interessa. Não fossem os piolhos, Bóris e eu jamais nos conheceríamos tão intimamente.
É outono no meu segundo ano em Paris. Não tenho ideia do motivo por que me mandaram para cá.
Não tenho dinheiro, recursos nem esperança. Sou o homem mais feliz do mundo. Há um ano, há seis meses, achei que era artista. Não acho mais, eu sou. Tudo o que era literatura se soltou de mim. Não há mais livros a serem escritos, benza-o Deus.
E este aqui? Este não é um livro. É uma difamação, uma calúnia, uma falta de caráter. Não é um livro no sentido comum da palavra. Não, este é um longo insulto, uma cusparada na cara da Arte, um chute na bunda de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza, do que você quiser. Vou cantar para você, meio desafinado talvez, mas vou. Cantarei enquanto você grasna, dançarei em cima do seu cadáver sujo.
Para cantar, é preciso primeiro abrir a boca. Precisa também ter dois pulmões e conhecer um pouco de música. Não precisa acordeão ou violão. O importante é querer cantar. Portanto, essa é uma canção. Estou cantando.
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