Gérard DuBois |
sexta-feira, agosto 31
É preciso aprender
Nós, leitores de hoje, estamos ameaçados de extinção, mas ainda temos de aprender o que é leituraAlberto Manguel, "Uma História da Leitura"
Viajar pela leitura
Como um cão
Em “O cão e o frasco”, Baudelaire compara seu cusco de estimação ao público leitor: o cachorro recua fungando do odor de um frasco de perfume caro mas devora com volúpia um pacote de excrementos. No final de “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, o Karenin de Tereza e Thomas adoece de câncer e, pouco antes de morrer, brinca com um croissant usando apenas a boca para mostrar aos donos que ainda tem vontade de viver. (No mesmo capítulo há a rápida aparição de um porco chamado Mefisto, criado pelo dono como se fosse um cachorro: “Obedecia a ordens faladas, era muito limpo e rosado, e andava em cima de seus pequenos tamancos como uma mulher de tornozelos grossos em cima de saltos altos”). Há os cães da Hilda Hilst; o cachorro do velho Salamano em “O estrangeiro”, do Camus; a inesquecível Baleia de “Vidas secas”, com suas costelas salientes e sonhos povoados de preás; a trágica loba de “A travessia”, do Cormac McCarthy. Isso para não entrar nos videogames (Rush em “Mega Man 3”, Deadmeat em “Fallout 3”) e filmes (não me façam falar do blue heeler de “Mad Max” no segundo filme da série).
Essas considerações oferecem uma chave de leitura, entre tantas possíveis, para o “Caninos brancos” de Jack London, que terá edição nova pela Penguin/Companhia das Letras no fim do ano, para a qual escrevi um texto de introdução que elabora as mesmas ideias desta coluna. Nesse romance marcado pela ambiguidade entre uma visão de mundo materialista/científica e a antropomorfização fantástica do ponto de vista do animal, London relata a vida de um lobo selvagem com uma herança dormente de cão domesticado. “Caninos brancos” enfrenta a sujeição forçada a sucessivos donos — o índio Grey Beaver, que inaugura a dominação do deus humano numa relação de opressão física, obediência, devoção e trabalho forçado; o desprezível Beauty Smith, que vê no lobo apenas uma máquina assassina a ser explorada economicamente; e por fim o educado e bondoso Weedon Scott, que se compadece do animal e toma para si a missão de redimi-lo, por meio do carinho e da domesticação, dos sofrimentos impostos pela Humanidade.
Uma das passagens antológicas é a sangrenta cena de luta entre o lobo e o buldogue Cherokee. É significativo que, dentre todos os inimigos selvagens e humanos que encontra, o lobo seja derrotado justamente por um buldogue, raça em que a manipulação genética do homem esbarra em limites grotescos e artificiais. O focinho achatado faz com que ele passe a vida tendo dificuldades para respirar, e o tamanho avantajado da cabeça praticamente obriga que os partos da raça sejam feitos com cirurgia cesariana.
Hoje em dia, quando a escolha por uma raça de cão tende a ser influenciada por aspectos estéticos ou modismos, é fácil esquecer que as mais de 200 raças oficiais existentes são resultado de cruzamentos selecionados ao longo de séculos, quase sempre tentando adequar os cães selvagens de outrora a tarefas específicas envolvendo caça, pastoreio, guarda ou companhia. Ao longo do tempo, muitos dos padrões de raça se descolaram dessas finalidades práticas e passaram a atender a expectativas puramente estéticas, que nem sempre levam em conta o bem-estar e a saúde do animal.
Aos diversos deuses-homens encontrados pelo lobo de Jack London em sua trajetória — o deus tirano, o deus maligno, o deus amoroso — podemos acrescentar também esse caprichoso deus criador, afeito a pactos que a natureza talvez não tenha previsto.Daniel Galera
quinta-feira, agosto 30
A velha contrabandista
Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega - tudo malandro velho - começou a desconfiar da velhinha.
Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:
- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?
A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:
Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.
Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai!
O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.
Diz que foi aí que o fiscal se chateou:
- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.
- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:
- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?
- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.
- Juro - respondeu o fiscal.
- É lambreta.
Stanislaw Ponte Preta
Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da Alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:
- Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?
A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:
- É areia!
Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.
Mas o fiscal desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai!
O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.
Diz que foi aí que o fiscal se chateou:
- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com 40 anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.
- Mas no saco só tem areia! - insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:
- Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?
- O senhor promete que não "espáia"? - quis saber a velhinha.
- Juro - respondeu o fiscal.
- É lambreta.
Stanislaw Ponte Preta
Cultura
Na entrada da livraria
há desde aquela manhã
um marco
que o tempo
não apagará
Um raio de sol
por um instante
escapou da avenida
sorriu para mim
e deu uma espiada
para dentro
como se quisesse
ir até as estantes.
Raul Drewnick
há desde aquela manhã
um marco
que o tempo
não apagará
Um raio de sol
por um instante
escapou da avenida
sorriu para mim
e deu uma espiada
para dentro
como se quisesse
ir até as estantes.
Raul Drewnick
Guarda dos esquecidos
Numa ocasião ouvi um cliente habitual comentar na livraria do meu pai que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho até ao seu coração.
Aquelas primeiras imagens, o eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás, acompanham-nos toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória ao qual, mais tarde ou mais cedo - não importa quantos livros leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto aprendamos ou esqueçamos-, vamos regressar. Para mim aquelas páginas enfeitiçadas serão sempre as que encontrei entre os corredores do Cemitério dos Livros Esquecidos.
Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento
quarta-feira, agosto 29
Amigo do peito
Eu, por exemplo, gosto do cheiro dos livros. Gosto de interromper a leitura num trecho especialmente bonito e encostá-lo contra o peito, fechado, enquanto penso no que foi lido. Depois reabro e continuo a viagem. Gosto do barulho das páginas sendo folheadas.
Gertie Jaquet |
Gosto das marcas de velhice que o livro vai ganhando: A lombada descascando, o volume ficando meio ondulado com o manuseio. Tem gente que diz que uma casa sem cortinas é uma casa nua. Eu penso o mesmo de uma casa sem livrosMartha Medeiros
Oração do leitor
Nossa Senhora da Livraria,
Dai-me forças para não comprar mais livros;
Livrai-me da tentação das ofertas;
Perdoa-me por manter uma pilha sem fim;
Concede-me tempo para eu ler,
e assim dar vida aos personagens em minha mente.
Amém.
Oliver Fábio
Dai-me forças para não comprar mais livros;
Livrai-me da tentação das ofertas;
Perdoa-me por manter uma pilha sem fim;
Concede-me tempo para eu ler,
e assim dar vida aos personagens em minha mente.
Amém.
Oliver Fábio
terça-feira, agosto 28
Unidos e separados, todos juntos
O que a vida afastou uma biblioteca reconcilia, de modo que Sartre pode agora dividir pacificamente o espaço de alguns centímetros com Merleau-Ponty e Camus, García Márquez pode topar com Vargas Llosa, e Saramago ter Lobo Antunes como um bom vizinho. Aqueles que a vida uniu de repente se desligam e vão morar a muitos livros de distância. Hannah Arendt na ala norte, Heidegger na ala oeste, Henry Miller três andares acima de Anaïs Nin. E há os duetos tanto na vida como numa biblioteca, Goethe e Schiller, Claudel e Gide, Faulkner e Steinbeck, Sophia de Mello Andresen e Jorge de Sena.
São tantas as as combinações e tão intimamente divertido jogar com elas que pode acontecer de I-Juca Pirama acabar aconchegado entre a Ilíada e a Eneida. Ou então, num canto da estante, lugar ideal para um ninho de fênix, podem se encontrar Alejandra Pizarnik, Sylvia Plath e Anne Sexton. Também não falta a ironia da sorte, que, por uma emergencial economia de espaço, põe lado a lado Ezra Pound e Brecht.
Mariana Ianelli, "Breves anotações sobre um tigre"
Mariana Ianelli, "Breves anotações sobre um tigre"
Felicidade clandestina
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Janet Hill |
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Clarice Lispector
segunda-feira, agosto 27
Tem que gostar
Professor que não gosta de ler não consegue fazer leitores. Falar de literatura (sejam clássicos, sejam contemporâneos) com amor e entusiasmo, isso me parece o caminho mais curto.
Mostrar o encantamento da leitura, a abertura da mente para o mundo (alargando seus horizontes) e para si mesmo, num processo de auto-identificação, mostrar o plano estético da linguagem literária, seu lado poético, são apenas alguns dos ingredientes desse processoMenalton Braff
Como Monteiro Lobato transformou crítica social com 'Jeca Tatu' em sucesso literário
Conhecido por sua fina ironia, o escritor Monteiro Lobato costumava brincar ao dizer que seus livros não passavam de "umas tantas lorotas que se vendem". Agora, uma das principais "lorotas" de Lobato completa um século de vida: o livro de contos Urupês, editado em 1918, tornou famoso o personagem Jeca Tatu.
Símbolo de um país agrário, pobre, injusto e atrasado, o Jeca, que virou sinônimo do caipira ingênuo brasileiro, chega ao centenário tão atual como na época em que foi lançado, segundo os especialistas na obra de Lobato.
"Urupês pode ser um bom começo para entender o contexto histórico que levou ao Brasil de hoje. A perspectiva política em que Lobato representa o Brasil das primeiras décadas do século 20, mais criticando do que aplaudindo medidas governamentais, é extremamente atual", afirma Marisa Lajolo, professora da Universidade Mackenzie e organizadora do livro "Monteiro Lobato, Livro a Livro" (Editora Unesp, 2014), que reúne artigos que analisam a obra adulta do criador do Sítio do Picapau Amarelo.
As raízes de Jeca Tatu estão em dois artigos escritos por Monteiro Lobato para o jornal O Estado de S.Paulo, em 1914. Neles, o autor condenava as queimadas praticadas por caboclos nativos no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, onde o escritor tocava a Fazenda Buquira, herdada do avô, o Visconde de Tremembé.
Urupês é focado no personagem principal, o Jeca. O nome da obra é inspirado no urupê - um tipo de cogumelo parasitário que destrói a madeira -, e o Jeca Tatu é descrito como um caipira indolente, desleixado, sempre de cócoras e pés descalços, nenhuma educação, cultura, ambição ou mesmo disposição para melhorar de vida. Vive do que a natureza derrama aos seus pés e flerta o tempo todo com a preguiça, a cachaça e as crendices populares.Direito de
Jeca Tatu é o homem do campo real, que leva uma vida miserável nos rincões brasileiros e é praticamente ignorado pelos governantes. É lembrado pelos políticos apenas no momento do voto nas eleições. "O fato mais importante da sua vida é votar no governo. (...) Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos e que chama 'sua graça''', diz Lobato, em um dos trechos do livro.
"Pobre Jeca tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade", completou Lobato, distanciando-se da figura romantizada que havia do interior do país e os seus moradores, muito cultuada nas rodas literárias nas primeiras décadas do século 20. Nessa época, era comum escritores e estudiosos cultuarem uma vida caipira sem problemas, marcada pelo contato com a natureza e distante do cotidiano real vivido na zona rural.
"Lobato lança um olhar crítico e ácido sobre a realidade brasileira, algo incomum entre os escritores da sua época. É muito importante celebrar o centenário dessa obra demolidora, que questiona valores e não deixa pedra sobre pedra no panorama da literatura do século 20", afirma a jornalista Marcia Camargos, biógrafa de Lobato e coautora de Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia(Edições Senac).
A redenção do personagem pelo seu criador viria pouco depois em outro livro, a coletânea Problema Vital, também de 1918, onde Lobato reúne uma série de artigos escritos para a imprensa e afirma categórico: "O Jeca não é assim; está assim", deixando claro que o estado lastimável em que se encontrava o caipira era culpa do descaso das autoridades públicas.
"Há no Jeca uma mudança contínua, que evolui de acordo com a conscientização de Lobato a respeito das péssimas condições de vida do povo. Jeca é um símbolo, ele encarna o trabalhador brasileiro, sempre no lado mais frágil na luta de classes", explica Marcia Camargos, que possui pós-doutorado em História pela USP.
Outros personagens criados por Lobato posteriormente, como o Zé Brasil, em 1947, reforçam essa tese. "Em toda a obra adulta dele percebemos um crítica muito forte à política brasileira. Estamos em um momento político que torna muito oportuna a releitura de Urupês", completa a professora do Mackenzie, referindo-se às eleições de outubro.
Ao editar e imprimir Urupês por conta própria na Revista do Brasil, que comprou com o dinheiro da venda da Fazenda Buquira e transformou em uma grande editora nacional, Lobato também praticamente inaugurou o mercado editorial no Brasil. Até então, grande parte dos livros era impressa na Europa.
Desde o seu lançamento, Urupês foi um sucesso estrondoso: mais de 30 mil exemplares vendidos em sucessivas edições até 1925, sendo também traduzido para o espanhol e inglês. Em 1919, Jeca Tatu foi citado em discurso de Rui Barbosa durante sua campanha presidencial. "Por tudo isso, podemos perceber a força e a vitalidade desse livro, que veio remexer as águas mornas do então mercado editorial nacional", diz Marcia Camargos.
"Além da novidade de cenário e de personagens, os contos de Urupês são narrados em uma linguagem coloquial e cheia de lances de oralidade. É como se o leitor 'ouvisse' alguém contando histórias", explica Marisa Lajolo, sobre o sucesso da obra nos anos seguintes ao seu lançamento.
Até morrer, em 1948, Lobato abraçou diversas causas nacionalistas, como a campanha do petróleo, e lançou diversos livros adultos e infantis. Sua obra mais conhecida do público juvenil é Narizinho Arrebitado, lançado em 1921 pela Monteiro Lobato & Cia Editora e que deu início à turma do Sítio do Picapau Amarelo. Lobato tornou-se um dos escritores mais consagrados da história da literatura infantil e juvenil brasileira.
Atualmente, Urupês é editado pela Editora Globo, que prepara uma edição especial para ser lançada até o fim do ano. No ano que vem, toda a obra do escritor cai em domínio público e deve ser relançada por outras grandes editoras.
Uma nova biografia juvenil de Lobato também está sendo preparada por Marisa Lajolo junto com a historiadora Lilia Schwarcz. A previsão é que obra seja lançada em 2019 pela Companhia das Letras. "Será um livro bastante divertido, pois será como se ele contasse a vida dele. Apresentaremos Lobato como uma grande figura, e não como um nerd", adianta Marisa.
Ela revela aspectos curiosos e poucos conhecidos do escritor de Taubaté que estarão no novo livro, como o fato dele nunca ter sido bom aluno e adorar sentar junto com a "turma do fundão" nas aulas do colégio. Isso não o impediu de tornar-se um intelectual respeitado, autor ídolo das crianças, precursor da indústria editorial nacional e autor da célebre frase: "Um país se faz com homens e livros".
Símbolo de um país agrário, pobre, injusto e atrasado, o Jeca, que virou sinônimo do caipira ingênuo brasileiro, chega ao centenário tão atual como na época em que foi lançado, segundo os especialistas na obra de Lobato.
"Urupês pode ser um bom começo para entender o contexto histórico que levou ao Brasil de hoje. A perspectiva política em que Lobato representa o Brasil das primeiras décadas do século 20, mais criticando do que aplaudindo medidas governamentais, é extremamente atual", afirma Marisa Lajolo, professora da Universidade Mackenzie e organizadora do livro "Monteiro Lobato, Livro a Livro" (Editora Unesp, 2014), que reúne artigos que analisam a obra adulta do criador do Sítio do Picapau Amarelo.
As raízes de Jeca Tatu estão em dois artigos escritos por Monteiro Lobato para o jornal O Estado de S.Paulo, em 1914. Neles, o autor condenava as queimadas praticadas por caboclos nativos no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, onde o escritor tocava a Fazenda Buquira, herdada do avô, o Visconde de Tremembé.
Urupês é focado no personagem principal, o Jeca. O nome da obra é inspirado no urupê - um tipo de cogumelo parasitário que destrói a madeira -, e o Jeca Tatu é descrito como um caipira indolente, desleixado, sempre de cócoras e pés descalços, nenhuma educação, cultura, ambição ou mesmo disposição para melhorar de vida. Vive do que a natureza derrama aos seus pés e flerta o tempo todo com a preguiça, a cachaça e as crendices populares.Direito de
Jeca Tatu é o homem do campo real, que leva uma vida miserável nos rincões brasileiros e é praticamente ignorado pelos governantes. É lembrado pelos políticos apenas no momento do voto nas eleições. "O fato mais importante da sua vida é votar no governo. (...) Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos e que chama 'sua graça''', diz Lobato, em um dos trechos do livro.
"Pobre Jeca tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade", completou Lobato, distanciando-se da figura romantizada que havia do interior do país e os seus moradores, muito cultuada nas rodas literárias nas primeiras décadas do século 20. Nessa época, era comum escritores e estudiosos cultuarem uma vida caipira sem problemas, marcada pelo contato com a natureza e distante do cotidiano real vivido na zona rural.
"Lobato lança um olhar crítico e ácido sobre a realidade brasileira, algo incomum entre os escritores da sua época. É muito importante celebrar o centenário dessa obra demolidora, que questiona valores e não deixa pedra sobre pedra no panorama da literatura do século 20", afirma a jornalista Marcia Camargos, biógrafa de Lobato e coautora de Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia(Edições Senac).
A redenção do personagem pelo seu criador viria pouco depois em outro livro, a coletânea Problema Vital, também de 1918, onde Lobato reúne uma série de artigos escritos para a imprensa e afirma categórico: "O Jeca não é assim; está assim", deixando claro que o estado lastimável em que se encontrava o caipira era culpa do descaso das autoridades públicas.
"Há no Jeca uma mudança contínua, que evolui de acordo com a conscientização de Lobato a respeito das péssimas condições de vida do povo. Jeca é um símbolo, ele encarna o trabalhador brasileiro, sempre no lado mais frágil na luta de classes", explica Marcia Camargos, que possui pós-doutorado em História pela USP.
Outros personagens criados por Lobato posteriormente, como o Zé Brasil, em 1947, reforçam essa tese. "Em toda a obra adulta dele percebemos um crítica muito forte à política brasileira. Estamos em um momento político que torna muito oportuna a releitura de Urupês", completa a professora do Mackenzie, referindo-se às eleições de outubro.
Ao editar e imprimir Urupês por conta própria na Revista do Brasil, que comprou com o dinheiro da venda da Fazenda Buquira e transformou em uma grande editora nacional, Lobato também praticamente inaugurou o mercado editorial no Brasil. Até então, grande parte dos livros era impressa na Europa.
Desde o seu lançamento, Urupês foi um sucesso estrondoso: mais de 30 mil exemplares vendidos em sucessivas edições até 1925, sendo também traduzido para o espanhol e inglês. Em 1919, Jeca Tatu foi citado em discurso de Rui Barbosa durante sua campanha presidencial. "Por tudo isso, podemos perceber a força e a vitalidade desse livro, que veio remexer as águas mornas do então mercado editorial nacional", diz Marcia Camargos.
"Além da novidade de cenário e de personagens, os contos de Urupês são narrados em uma linguagem coloquial e cheia de lances de oralidade. É como se o leitor 'ouvisse' alguém contando histórias", explica Marisa Lajolo, sobre o sucesso da obra nos anos seguintes ao seu lançamento.
Até morrer, em 1948, Lobato abraçou diversas causas nacionalistas, como a campanha do petróleo, e lançou diversos livros adultos e infantis. Sua obra mais conhecida do público juvenil é Narizinho Arrebitado, lançado em 1921 pela Monteiro Lobato & Cia Editora e que deu início à turma do Sítio do Picapau Amarelo. Lobato tornou-se um dos escritores mais consagrados da história da literatura infantil e juvenil brasileira.
Atualmente, Urupês é editado pela Editora Globo, que prepara uma edição especial para ser lançada até o fim do ano. No ano que vem, toda a obra do escritor cai em domínio público e deve ser relançada por outras grandes editoras.
Uma nova biografia juvenil de Lobato também está sendo preparada por Marisa Lajolo junto com a historiadora Lilia Schwarcz. A previsão é que obra seja lançada em 2019 pela Companhia das Letras. "Será um livro bastante divertido, pois será como se ele contasse a vida dele. Apresentaremos Lobato como uma grande figura, e não como um nerd", adianta Marisa.
Ela revela aspectos curiosos e poucos conhecidos do escritor de Taubaté que estarão no novo livro, como o fato dele nunca ter sido bom aluno e adorar sentar junto com a "turma do fundão" nas aulas do colégio. Isso não o impediu de tornar-se um intelectual respeitado, autor ídolo das crianças, precursor da indústria editorial nacional e autor da célebre frase: "Um país se faz com homens e livros".
domingo, agosto 26
Quando tive medo de Guimarães Rosa
Existem certas experiências, situações, vivências que ficamos postergando por muito tempo, evitando-as, por medo. Enquanto uns passam a vida sem coragem outros enfrentam, mesmo temerosos. Um dos meus medos sempre foi ler Guimarães Rosa. É, é isso mesmo, eu tinha medo dos livros dele, mas acima de tudo do Grande Sertão Veredas. Não me achava intelectualmente à altura para entendê-lo. Durante anos ouvi de tudo sobre este escritor: “… mas depois que você lê Guimarães, nossa, aí sim tudo muda …”, “Minha vida de leitor se divide entre antes e depois de Sertão Veredas.”, “É, gente, ler Guimarães é uma experiência única, ímpar.”. Essas foram algumas das descrições que ficaram gravadas em minha lembrança, desde cedo, sobre o escritor do sertão. E então pensava comigo mesma “Gente, preciso me preparar para ler Guimarães, preciso estar pronta para essa tal experiência, não posso simplesmente pegar o livro e sentar para ler”. O tempo passou, li muito, de tudo. Vez ou outra, pelas livrarias que passava avistava o livro lá, mas não comprava, simplesmente olhava. Numa Bienal do Livro de São Paulo decidi comprá-lo, o trouxe na bagagem, coloquei na biblioteca. Um ano e meio depois, recentemente após ter terminado de ler outro romance, fui até a biblioteca escolher. Naquela noite fiz quase um ritual e finalmente entrei no Sertão. Nas primeiras páginas compreendi o porquê de ouvir aqueles comentários acerca da obra.
Guimarães criou uma nova língua, cheia de estilo narrativo e originalidade. As histórias do sertão, com seus personagens tão reais que quase pulam do papel, vão se desdobrando com sequência cinematográfica. Por vezes, fica difícil aprender a nova linguagem e adentrar as histórias com a profundidade merecida, então, volto e leio tudo de novo. Poucas páginas por dia, não é o tipo de livro para se devorar, definitivamente não. A pergunta que não quer calar durante a leitura é como ele conseguiu escrever daquela forma. Perdi o medo, no lugar dele entrou o respeito, porém, existe um incômodo obscuro, não sei explicar exatamente. O fato é que esse é o tipo de romance que desconforta, exige esforço, te quer ali além do corpo e da alma, te quer TODO (A). Quem não o leu pode estar pensando “Gente, mas o que tem tanto esse tal de Guimarães?”. Só entrando no sertão para responder, mas posso garantir que concordo com o cara que disse que é uma experiência única a qual desejo que você, leitor, também vivencie.
Elyandria Silva
Guimarães criou uma nova língua, cheia de estilo narrativo e originalidade. As histórias do sertão, com seus personagens tão reais que quase pulam do papel, vão se desdobrando com sequência cinematográfica. Por vezes, fica difícil aprender a nova linguagem e adentrar as histórias com a profundidade merecida, então, volto e leio tudo de novo. Poucas páginas por dia, não é o tipo de livro para se devorar, definitivamente não. A pergunta que não quer calar durante a leitura é como ele conseguiu escrever daquela forma. Perdi o medo, no lugar dele entrou o respeito, porém, existe um incômodo obscuro, não sei explicar exatamente. O fato é que esse é o tipo de romance que desconforta, exige esforço, te quer ali além do corpo e da alma, te quer TODO (A). Quem não o leu pode estar pensando “Gente, mas o que tem tanto esse tal de Guimarães?”. Só entrando no sertão para responder, mas posso garantir que concordo com o cara que disse que é uma experiência única a qual desejo que você, leitor, também vivencie.
Elyandria Silva
Em fatias
BORGIANA
Se me chamam de mau escritor, eu nego.
Nem escritor eu sou.
Quem escreve é meu alter ego.
CURRICULUM VITAE
Artista de primeira,
com materiais de segunda
construo obras de terceira.
HOMÔNIMO
Não, Scott Fitzgerald
não foi aquele
que inventou a emulsão.
MISSÃO
Se eu pela literatura
Um bem posso ainda fazer
É restringir-me à leitura
E nunca mais escrever.
DRUMMONDIANA
O segundo escritor
e o primeiro
se aplaudem
e falam mal do terceiro.
PERFIL
Não piscava, não sorria.
Era um desses
poetas de antologia.
REGRINHA
Não assuma ares de Ovídio
nem de Horácio. Seja você
e tudo ficará mais fácil.
DIAGNÓSTICO
Dói-me a alma
e também áreas externas
como os braços e as pernas.
APATIA
Ao morto já não importa
se inês de castro sobreviveu
ou se também está morta.
RITOS
É um poeta de academia
com todos os certificados
e a documentação em dia.
ORA ORA
Na gramática
vai bem sempre tudo
mas porém todavia contudo.
HERÁLDICA
No meu brasão
o leão rampante
é um cabrito derrapante.
MALES
Mais do que o fumo
mais do que o álcool
o vício do gramático
é o “h” aspirado.
NUMA BOA
Zurrem os burros ou não,
miem os gatos ou não miem,
dane-se tudo: carpe diem!
PARTICULARIDADE
Uma diferença:
o soneto é todo forma
e o haicai é todo essência.
CONCEITO
A poesia social
costuma ter pouco açúcar
e muito sal.
DISTRAÇÃO
Em manhãs de tédio
e tardes de aporrinhação
Deus sopra nuvens pelo céu
como bolhas de sabão.
PELA TANGENTE
Cor de rosa ou cor-de-rosa?
Se essa dúvida lhe vier,
Como sempre me vem,
Substitua por rosicler.
LETRA L
Molly Bloom
duplo sinônimo de antirrecato
nome de se falar lento
com a língua no palato.
MAKTUB
E todas as vertentes
para o lago eterno
aonde não chega som
vertem e verterão.
Se me chamam de mau escritor, eu nego.
Nem escritor eu sou.
Quem escreve é meu alter ego.
CURRICULUM VITAE
Artista de primeira,
com materiais de segunda
construo obras de terceira.
HOMÔNIMO
Não, Scott Fitzgerald
não foi aquele
que inventou a emulsão.
MISSÃO
Se eu pela literatura
Um bem posso ainda fazer
É restringir-me à leitura
E nunca mais escrever.
DRUMMONDIANA
O segundo escritor
e o primeiro
se aplaudem
e falam mal do terceiro.
PERFIL
Não piscava, não sorria.
Era um desses
poetas de antologia.
REGRINHA
Não assuma ares de Ovídio
nem de Horácio. Seja você
e tudo ficará mais fácil.
DIAGNÓSTICO
Dói-me a alma
e também áreas externas
como os braços e as pernas.
APATIA
Ao morto já não importa
se inês de castro sobreviveu
ou se também está morta.
RITOS
É um poeta de academia
com todos os certificados
e a documentação em dia.
ORA ORA
Na gramática
vai bem sempre tudo
mas porém todavia contudo.
HERÁLDICA
No meu brasão
o leão rampante
é um cabrito derrapante.
MALES
Mais do que o fumo
mais do que o álcool
o vício do gramático
é o “h” aspirado.
NUMA BOA
Zurrem os burros ou não,
miem os gatos ou não miem,
dane-se tudo: carpe diem!
PARTICULARIDADE
Uma diferença:
o soneto é todo forma
e o haicai é todo essência.
CONCEITO
A poesia social
costuma ter pouco açúcar
e muito sal.
DISTRAÇÃO
Em manhãs de tédio
e tardes de aporrinhação
Deus sopra nuvens pelo céu
como bolhas de sabão.
PELA TANGENTE
Cor de rosa ou cor-de-rosa?
Se essa dúvida lhe vier,
Como sempre me vem,
Substitua por rosicler.
LETRA L
Molly Bloom
duplo sinônimo de antirrecato
nome de se falar lento
com a língua no palato.
MAKTUB
E todas as vertentes
para o lago eterno
aonde não chega som
vertem e verterão.
sexta-feira, agosto 24
Mar
A primeira vez que vi o mar eu não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de meninos. Nós tínhamos viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maré, que e menor que o mar, e a marola, que é menor que a maré. Logo a gente fazia ideia de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava ainda mais a imagem.
Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espumas, tudo isso muito salgado, azul, com ventos.
Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito o mar! Era qualquer coisa de larga, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar…
Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer – como aquela caravela de franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou a sua mão… Um rapaz de quatorze ou quinze anos que nas noites de lua cheia, quando ~a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e dava boa-noite… Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer – que ainda não sabe dizer.
Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar dos pobres pescadores maratimbas, mar das cantigas do catambá, mar das festas, mar terrível daquela marte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do alto e mar da praia, mar de pedra e mar do mangue… A primeira vez que sai sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulha de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado, quando a água batia na minha cana e a corrente do “arrieiro” me puxava para fora, não gritei nem fiz gestas de socorro; lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e = oleoso, lambendo o batelão. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a. vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso mar fabricando um homem…
Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ara aflita, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam – um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar…
Rubem Braga
Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espumas, tudo isso muito salgado, azul, com ventos.
Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito o mar! Era qualquer coisa de larga, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar…
Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer – como aquela caravela de franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou a sua mão… Um rapaz de quatorze ou quinze anos que nas noites de lua cheia, quando ~a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e dava boa-noite… Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer – que ainda não sabe dizer.
Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar dos pobres pescadores maratimbas, mar das cantigas do catambá, mar das festas, mar terrível daquela marte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do alto e mar da praia, mar de pedra e mar do mangue… A primeira vez que sai sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulha de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado, quando a água batia na minha cana e a corrente do “arrieiro” me puxava para fora, não gritei nem fiz gestas de socorro; lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e = oleoso, lambendo o batelão. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a. vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso mar fabricando um homem…
Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ara aflita, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam – um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar…
Rubem Braga
quinta-feira, agosto 23
Todo mundo escreve!
É um absurdo a quantidade de livros que é desovada no Brasil, imagine no planeta inteiro. Minha impressão é que todo mundo escreve romance, basta ser alfabetizado. E vão ao Facebook falar do próprio livro. Se mais pessoas estivessem lendo, e escrevendo menos, a literatura brasileira estaria melhor. É a banalização total do fazer artístico, todos querem ser escritores, ninguém quer ser leitor. E ler, muitas vezes, exige mais talento do que escreverSérgio Sant’Anna
O livro da minha vida
Lembrei disso ao participar em Brasília da exposição lúdica "Eu Leitor" (Biblioteca Nacional, até 23 de setembro), convidado a falar do "livro da minha vida".
Claro que o tema é uma metáfora; exceto no caso dos fanáticos que só leram um livro na vida e se reduziram a ele, é da própria natureza do livro e da leitura o prazer da diversidade e das descobertas.
Desde o primeiro livro, quando somos arrancados para sempre do casulo da pura oralidade, do instante presente e do lugar em que estamos, em várias fases da vida as leituras tendem a provocar saltos de percepção e transformação.
Pensar no "livro da vida", olhando para trás, é também escrever a si mesmo, compor a própria narrativa, tornar-se personagem, encontrar uma autoimagem.
Vânia Medeiros |
Pensei nas leituras de infância —Monteiro Lobato, Júlio Verne, Conan Doyle—, que me teriam dado a inclinação iluminista e racionalizante: a razão, a inteligência, o progresso e a cultura laica são valores inegociáveis da civilização.
A longa ressonância do século 19 encontrava um leitor típico dos anos 1950 e 1960, alimentado na incansável prosperidade do Ocidente que ressoava até mesmo aqui, nos rincões perdidos do Brasil.
Como toda literatura traz as marcas do seu tempo, estavam lá também os seus preconceitos e seu inescapável etnocentrismo, assim como daqui a um século lembrarão o didatismo militante, escolar, pedestre e tribal da literatura e cultura identitárias que domina a linguagem contemporânea.
Na virada da adolescência, aquele pequeno racionalista entrou de cabeça no irracionalismo triunfante da contracultura, cujo sonho fundamental foi a ideia (vaga) de uma liberdade total e de um paraíso a um estalo de dedos. Neste momento de passagem, esbarrei em "Lord Jim", de Joseph Conrad (1857-1924).
Pelo impacto especial daquela leitura, escolhi este romance como o "livro da minha vida". Já escrevi sobre Conrad nesta coluna, o primeiro autor globalizado que, no fio da navalha do Império Britânico, tocou em temas que prosseguem vivíssimos, do terror moderno ("O Agente Secreto") à tragédia do colonialismo ("Coração das Trevas"), para ficar em apenas dois exemplos.
O efeito imediato de "Lord Jim", na minha cachola de 16 anos, foi biográfico: em vez de entrar na universidade, o caminho que soava perfeitamente adequado, resolvi encarar a Escola de Oficiais de Marinha Mercante, mimetizando Lord Jim.
O sonho durou pouco, mas o plano era infalível: do convés do navio, orgulhoso, livre e solitário, contemplaria o mar infinito e escreveria obras-primas. Como um bônus natural da profissão, conheceria o mundo inteiro. E embutiu-se na imagem o projeto moral: certamente eu triunfaria onde o personagem de Conrad naufragou. O livro disparava uma poderosa aventura romântica.
Exatos 50 anos depois, volto a ler "Lord Jim", com o temor secreto da decepção, que felizmente não veio. O romance continua grande, mas agora numa outra direção, em entrelinhas irônicas e ambíguas que são tanto temáticas (o fracasso de Jim se faz na linha difusa entre o sonho da civilização e a emergência da barbárie), quanto morais: "Eis como ele marchava para uma grandeza tão pura como nenhuma outra conquistada por um homem". (Trad. de Mário Quintana, editora Globo)
É uma definição precisa do espírito puritano e alucinado do nosso tempo. E, literariamente, o impressionismo narrativo de Conrad abre caminho para o século 20 (o que, no Brasil, fez a obra transformadora do seu contemporâneo Machado de Assis): sem o olhar unívoco do velho narrador onisciente, só sabemos de Lord Jim pelo testemunho dos que o conheceram, e dele nos dão sua palavra incerta.
Sinto que Conrad foi uma influência forte. Talvez eu deva a ele, sem saber, a direção temática do que me agrada especialmente na literatura.
Mas, como diz o Capitão Marlow, amigo de Jim, "creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa".
Cristovão Tezza
quarta-feira, agosto 22
Biblioteca em Istambul parece caverna
A biblioteca em construção em Istambul, na Turquia, com projeto assinado pelo escritório turco GAD Architecture tem um dinamismo estrutural que dará a sensação aos frequentadores de se estar em uma caverna.
Para criar o efeito visual de uma gruta, a função das estantes vai além de armazenar os livros, neste caso, elas também atuam como blocos de construção reais da biblioteca. Com diferentes dimensões, as prateleiras são sobrepostas e servem também de base para outros espaços com diferentes funções, como áreas de entretenimento e salas de leitura, por exemplo.
Como janelas convencionais não fazem parte do projeto, a luz entra por cima e pelos lados – que têm transparências – e se propaga pelas prateleiras, que formam sombras que criam uma iluminação característica de grutas e cavernas.
Para criar o efeito visual de uma gruta, a função das estantes vai além de armazenar os livros, neste caso, elas também atuam como blocos de construção reais da biblioteca. Com diferentes dimensões, as prateleiras são sobrepostas e servem também de base para outros espaços com diferentes funções, como áreas de entretenimento e salas de leitura, por exemplo.
Como janelas convencionais não fazem parte do projeto, a luz entra por cima e pelos lados – que têm transparências – e se propaga pelas prateleiras, que formam sombras que criam uma iluminação característica de grutas e cavernas.
Como é a política que 'obriga' o governo a incentivar a leitura
Fortalecer as bibliotecas públicas e o mercado editorial estão entre as metas da nova Política Nacional de Leitura e Escrita, sancionada pelo presidente Michel Temer em 12 de julho de 2018.
O instrumento reconhece a leitura e a escrita como essenciais para assegurar a plena cidadania e uma vida digna, tornando-as um direito do cidadão. O projeto que deu origem à lei foi apresentado pela senadora Fátima Bezerra (PT-RN) em 2011, mas faz parte de um um processo de discussões entre poder público e setores da sociedade civil que vem do início dos anos 2000.
A legislação foi criada junto com representantes de editoras e livrarias e estabelece que sua implementação deve ocorrer nos primeiros seis meses do próximo mandato presidencial. Os ministérios da Cultura e Educação e representantes da sociedade civil devem participar do processo. As metas e ações devem ser pensadas para o espaço de uma década.
“Agora vamos poder cobrar ações e não só ficar reivindicando”, comemorou Luís Antônio Torelli, presidente da (CBL) Câmara Brasileira do Livro, entidade que reúne editoras e promove a leitura no país, em entrevista ao Nexo. Levantamento de 2016 indicou que ler fica em décimo lugar entre as atividades de lazer do brasileiro, bem abaixo da televisão e do WhatsApp
“É uma novidade porque obriga o estado a tomar medidas, a construir caminhos para isso, como gerar recursos para implementar, criar uma estrutura, claro que sempre observando princípios de gestão profissional e ética”, disse Bernardo Gurbanov, presidente da ANL (Associação Nacional de Livrarias), ao Nexo.
Em um país em que o governo não abastece as bibliotecas de escolas públicas com títulos de literatura desde 2014, por conta da “crise”, como é possível garantir que um conjunto mais ambicioso de ações seja cumprido? “
É claro que tudo depende de vontades políticas, mas é uma legislação que tem de ser respeitada. Ao lado de todos os outros setores que contribuíram para este plano, iremos pressionar para que funcione”, explicou Gurbanov.
“Não há plano que vingue se você não facilitar o acesso ao livro, que é muito desigual no país”, afirmou Torelli. Para ele, não basta fomentar e melhorar as bibliotecas, é preciso também estimular as livrarias. Sua entidade irá lançar na 25ª Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, um guia para quem quiser empreender e montar uma livraria. O manual traz orientações básicas, desde como montar um acervo até opções de financiamento. Gurbanov sugere duas medidas de incentivo às livrarias. No plano federal, a inclusão destes estabelecimentos no processo de compras públicas de livros. “Por exemplo, elas poderiam funcionar como ponto de entrega de livros didáticos”, propôs, explicando que hoje as publicações são enviadas pelo correio aos estudantes.
O presidente da ANL também defende a isenção de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) para as livrarias, em exemplo de política de incentivo municipal que poderia ser adotada. Segundo ele, existe uma falsa ideia de que “o livro não paga imposto”, mas ele lembra que os estabelecimentos têm de arcar com aluguéis, custos de energia e impostos, entre outros.
terça-feira, agosto 21
Livro não é enfeite
Clara |
Nenhum desses livros é enfeite, todos foram lidos ou estão a caminho de leitura. A leitura é um prazer que a gente adquire. No meu caso foi adquirido desde pequeno em casa porque meu pai era um leitor permanenteMarcos de Castro, jornalista e escritor, apresentando a sua biblioteca expansiva de sala, quarto, escritório e corredor
Livraria
Lembro-me de ti
na livraria
com os olhos na estante
e a mão nas lombadas
com teu toque digital
de unhas não pintadas
apalpando a literatura mundial
Lembro que nunca
senti maior o ímpeto
de ser Dante
Cervantes Shakespeare
e ser levado por ti
para tua casa
e lido na cama
e sentir teu suspiro
na hora de Julieta
perguntar a Romeu
tu me amas?
E ser então Romeu
e dizer sim
o amor é meu amo
tu és minha ama
e te amo e te amo.
na livraria
com os olhos na estante
e a mão nas lombadas
com teu toque digital
de unhas não pintadas
apalpando a literatura mundial
Lembro que nunca
senti maior o ímpeto
de ser Dante
Cervantes Shakespeare
e ser levado por ti
para tua casa
e lido na cama
e sentir teu suspiro
na hora de Julieta
perguntar a Romeu
tu me amas?
E ser então Romeu
e dizer sim
o amor é meu amo
tu és minha ama
e te amo e te amo.
segunda-feira, agosto 20
Por onde começar
Sabe que, se quiser ser um grande homem, deverá ler livros sérios. Deveria ser como Abraão Lincoln ou James Watts, estudando à luz de vela enquanto todo mundo dorme, aprendendo sozinho latim, grego e astronomia. Ele não abandonou a ideia de ser um grande homem; promete a si mesmo que logo começará leituras mais sérias; mas por enquanto só quer ler histórias.
Lê todos os contos de mistério de Enid Blyton, todos os dos Hardy Boys, todos os de Biggles. Mas os livros de que mais gosta são as histórias da Legião Estrangeira francesa, de P.C. Wren.
- Quem é o maior escritor do mundo? - pergunta a seu pai.
- Shakespeare - responde o pai.
- Por que não P.C. Wren? - ele indaga. Seu pai não leu P.C. Wren e, apesar de seu passado militar, não parece interessado. - P.C. Wren escreveu quarenta e seis livros . Quantos livros Shakespeare escreveu ao todo? - ele desafia e começa a recitar os títulos.
Seu pai diz 'Ah' de modo irritado, mas não sabe a resposta.
Se seu pai gosta de Shakespeare, então Shakespeare deve ser ruim, ele conclui.
Lê todos os contos de mistério de Enid Blyton, todos os dos Hardy Boys, todos os de Biggles. Mas os livros de que mais gosta são as histórias da Legião Estrangeira francesa, de P.C. Wren.
- Quem é o maior escritor do mundo? - pergunta a seu pai.
- Shakespeare - responde o pai.
- Por que não P.C. Wren? - ele indaga. Seu pai não leu P.C. Wren e, apesar de seu passado militar, não parece interessado. - P.C. Wren escreveu quarenta e seis livros . Quantos livros Shakespeare escreveu ao todo? - ele desafia e começa a recitar os títulos.
Seu pai diz 'Ah' de modo irritado, mas não sabe a resposta.
Se seu pai gosta de Shakespeare, então Shakespeare deve ser ruim, ele conclui.
No entanto, começa a ler Shakespeare, na edição amarelada com bordas gastas que seu pai herdou e que deve valer muito porque é antiga.
J.M. Coetzee, "Cenas de uma vida"
J.M. Coetzee, "Cenas de uma vida"
A rosa
Era um homem desatento. Havia vivido muitas décadas, mas conhecia pouco, muito pouco, da vida. Acreditava nos livros. Achava certo tudo que lia neles, mesmo que uns contradissessem os outros. Se havia contradição, deveria existir motivo para isso. Não achava necessário olhar para o sol, para o mar, para a lua. Tinha olhado para eles pelo menos uma vez na vida e sabia, pelos livros, o que eram e como eram. Vivia assim. Um dia, aceitando um convite para almoçar na casa de uma amiga, viu uma flor. Ia passar por ela sem lhe prestar atenção, quando a amiga disse: "É linda, não é? É o tesouro do meu jardim." Ele quis saber que flor era aquela e, quando a amiga, espantada, lhe perguntou se jamais tinha visto uma rosa, ele respondeu: "Provavelmente nunca." Olhou agora com interesse para a flor. Aquilo então era uma rosa, ele se maravilhou, porque nenhum livro o tinha preparado para aquela beleza. Por alguns dias sentiu uma doçura nova, uma ternura que ele nem sabia chamar por esse nome. A lembrança da rosa, seu brilho, seu perfume e sua delicadeza o deixaram inquieto por alguns dias. Mas a amiga nunca mais o convidou e, dali a algum tempo, se ele fosse definir uma rosa, repetiria o que lhe tinham dito seus livros.
Raul Drewnick
Raul Drewnick
domingo, agosto 19
Angústia
Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se se tivesse encolhido de chofre; o automóvel pára bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro de chauffeur. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me. - "Perdão! Perdão!" digo às pessoas a que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócio, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e, como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramento percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida.
Graciliano Ramos, "Angústia"
Graciliano Ramos, "Angústia"
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