O termo “edição final” me chamou a atenção e a tiragem de 600 exemplares (já dobrada para 1.200 frente à procura) se assemelha à de um livro impresso. Fiquei pensando se em breve não viveremos situações em que uma editora anunciará a última tiragem de 600 exemplares de um determinado livro, com a mensagem: “Após décadas em que nosso selo esteve associado a esta obra, estamos editando este livro impresso pela última vez com uma tiragem final para os que ainda querem possuir a versão impressa. Como presente especial, faremos a capa igual à da primeira edição de 1945”. Nos últimos meses, no campo da imprensa, eu corri às bancas para comprar o último número do “Jornal da Tarde” e a última edição da semanal “Newsweek”.
Voltando à Kombi e aos livros, fiquei impressionado com o respeito com que o final da Kombi foi anunciado, com direito a uma campanha de despedida. Mesmo diante da impossibilidade de instalar airbags e outros itens agora obrigatórios, o tom do noticiário não era o de desprezo por um veículo tecnologicamente antiquado, mas o de uma digna despedida. E associei, inconformado, essa despedida afetiva a certa satisfação destrutiva dos que anunciam e profetizam diariamente o fim do livro impresso. No caso dos livros, o intrigante é que as profecias partem muitas vezes de pessoas que trabalham com o livro, como se o advento e a vitória do digital fossem triunfo a ser celebrado sobre as cinzas do impresso.
1. O livro impresso circula entre as pessoas de formas variadas – presente, empréstimo, compartilhamento, herança simbólica –, investindo-o de afetos, emoções, vínculos e relações. Estes livros se tornam objetos afetivos e da memória tão importantes quanto fotografias de infância, um caderno escolar do primário, uma carta ou outro objeto. Em sua materialidade, o livro evoca a presença destas relações, nas marcas do tempo, nas dedicatórias, nas anotações pessoais, na lembrança, e isso perdura décadas ou mesmo séculos. Assim, a materialidade do livro impresso é uma dádiva que passa entre amigos, de geração em geração e assim por diante.
2. O livro impresso tem as marcas da vida e da passagem do tempo. Uma página com sua textura, seus arranhões, seus amassados, suas anotações borradas, suas dobras, seus cheiros, suas sujeiras, a possibilidade de ser tocada e sentida, é parte da experiência da leitura e da relação com o livro. Quantas vezes passamos a mão em uma palavra, linha ou pensamento como a dar-lhe concretude ou estabelecer uma relação tátil ou corporal com uma ideia marcante que queremos incorporar à nossa vida. Quem não guardou dentro de um livro um bilhetinho ou uma anotação relacionada à leitura daquela página? Ou uma folha ou flor seca? E a descoberta de uma anotação manuscrita de outra pessoa no livro que estamos lendo? Isso é parte da experiência que chamamos leitura. Folhear uma página é parte da leitura e as mãos e os sentidos certamente a intensificam. Diferentemente, o digital vive no presente, sem passado e sem espessura, como a tela do leitor digital, sem as marcas do tempo e as marcas da vida e seus sentidos afetivos. A tela e sua textura uniforme, descorporificada e eletrônica. Qual é a relação entre esta ausência do tempo e dos vínculos com a infantilização da experiência, certa desvinculação e certo desenraizamento, marcas do mundo digital?
3. Não existe um conteúdo imaterial que encarne de forma neutra e como essência no suporte, mostrou o historiador francês Roger Chartier. O conteúdo está ligado ao suporte e variadas formas de registro e de códigos que indicam e embalam o conteúdo. O impresso sugere permanência, enraizamento e continuidade. O meio digital tem uma fugacidade intrínseca, uma imaterialidade constitutiva, uma instantaneidade descartável. Só tem presente. O digital não serve para todas as palavras que se quer escrever e ler. Há pensamentos e sentimentos a serem ditos que exigem o papel, para escrever, para transmitir, para ler. Por isso continuaremos a escrever pequenos bilhetinhos que são enviados com presentes ou flores e se tornam impregnados da presença de quem os envia e recebe. O livro impresso permanece, vive, morre, renasce, morre de novo, vive de novo em bibliotecas públicas e estantes pessoais, dentro da gaveta ou largado num cantinho, tomando as formas dos ambientes e das pessoas.
4. O livro proporciona encontros e trocas reais. Frequentar bibliotecas e livrarias convida a conversar, estabelecer relações e amizades. O livro é um meio por meio do qual se investem relações, amizades e novos encontros. O livro impresso é um objeto amoroso.
5. A leitura de um livro impresso é uma experiência ainda interessante e única, pela concentração e disponibilidade que exige, sem dividi-la com as outras atrações, apelos e funções do digital. O digital é distraído e disperso: você lê, telefona, troca e-mails, envia torpedos, consulta um site, compra alguma coisa (um livro impresso?) e joga um jogo, tudo ao mesmo tempo. A leitura impressa pede (oferece) uma capacidade de imaginação que o digital supre de forma saturada com informações sonoras e visuais e apelos permanentes, como se apenas ler e imaginar não fosse significativo – ou ler a dois ou compartilhar com um grupo lendo e imaginando em voz alta. Ou como se a experiência de estar sozinho fosse insuportável e tivesse que ser preenchida por conexões o tempo todo.
6. Um livro é seu conteúdo e sua capa, sua contracapa, suas orelhas, seu design, a tipologia, a fonte e todos os elementos que consubstanciam e dão forma e materialidade ao conteúdo. O livro impresso é uma tremenda invenção tecnológica como objeto, meio e suporte da leitura que já perdura meio milênio. Ele é prático, transportável, resistente, adaptável à mão e ao corpo humano em um sem número se posições de leitura. Virar a página com a mão e os olhos é um gesto da mais profunda expressão física e cultural que identifica a condição humana.
É claro que o livro digital tem atributos e potencialidades infinitas e estamos apenas no início desta nova era, embora mais devagar e com mais percalços (inclusive o preço e a promessa de que seriam baratos) do que parecia há apenas um ou dois anos. No campo da educação e do ensino o potencial do digital pode ser extraordinário. Que venha esta nova era com suas promessas e esperanças, mas sem que nós, leitores do impresso, nos sintamos usuários da última edição da Kombi. Nós ainda veremos Kombis rodando pelo interior do País por muitos anos, talvez décadas. Da mesma forma, por mais reduzida que seja a sua participação no mundo e no mercado dos livros, continuaremos a ler e usufruir da cultura dos livros impressos por muitos séculos. E, quando for o caso, que a despedida seja ao menos respeitosa.
Roney Cytrynowicz
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