Eis aí uma história dos dias de inverno no final de 1959 e início de 1960. Nesta história há erro e desejo, há amor frustrado e certa questão religiosa que ficou aqui sem resposta. Em alguns prédios ainda se reconhecem os sinais da guerra que há dez anos dividiu a cidade. Ao fundo dá para ouvir o toque distante de um acordeão ou os sons nostálgicos de uma gaita ao entardecer, por trás de uma persiana cerrada.
Em muitas residências de Jerusalém é possível ver na parede da sala de estar o redemoinho de estrelas de Van Gogh ou a ardência de seus ciprestes, e nos pequenos quartos ainda estão estendidas esteiras de palha, e um exemplar de Iemei Tziklag ou de Doutor Jivago virado e aberto na beirada de um colchão de espuma coberto com um pedaço de tecido de motivo oriental e um monte de almofadas bordadas. Durante a noite inteira um aquecedor a querosene arde com uma chama azul. De dentro de um cartucho de obus no canto da sala cresce uma espécie de ramalhete estilizado feito de ramos de espinheiro.
No início de dezembro Shmuel Asch interrompeu seus estudos na universidade e pretendia ir embora de Jerusalém, por causa de um amor frustrado, devido a uma pesquisa que empacou e principalmente porque a situação econômica de seu pai despencara e Shmuel se via obrigado a procurar algum trabalho. Era um rapaz corpulento, barbado, vinte e cinco anos mais ou menos, tímido, sensível, socialista, asmático, com tendência a se entusiasmar facilmente e se decepcionar logo em seguida. Tinha ombros pesados, um pescoço curto e grosso, assim como a mão, e também os dedos: grossos e curtos como se em cada um deles faltasse uma falange. De cada poro do rosto e do pescoço de Shmuel Asch irrompia sem freio um fio de barba encaracolado que lembrava lã de aço. Essa barba se estendia e se juntava ao cabelo, que era todo cacheado, e com o emaranhado de pelos do peito. De longe parecia sempre, fosse no verão ou no inverno, que ele estava todo afogueado e banhado em suor. Mas de perto, com agradável surpresa, se notava que a pele de Shmuel não exalava a acidez do suor, mas simplesmente um delicado aroma de talco de bebê. Ele num instante se embriagava com novas ideias, contanto que essas ideias viessem muito bem formuladas e implicassem numa mudança radical. Mas da mesma forma tendia a se cansar depressa, talvez por causa de um coração dilatado e também porque sofria de asma.
Com grande facilidade seus olhos se enchiam de lágrimas, e isso lhe causava constrangimento e até vergonha: ao pé de uma cerca um filhote de gato berra numa noite de inverno, talvez tenha se perdido da mãe, e esse filhote ergue para Shmuel um olhar de cortar o coração e se esfrega suavemente em sua perna, e logo os olhos de Shmuel se turvam. Ou ao final de algum filme bem mediano sobre solidão e desespero no Cinema Edison de repente se descobre que o personagem mais durão de todos é capaz, afinal de contas, de revelar a grandeza de sua alma, e logo lhe vêm as lágrimas e elas começam a sufocar‑lhe a garganta. Ao avistar na saída do Hospital Shaarei Tsedek uma mulher magra e um menino, que lhe são totalmente estranhos, parados e abraçados, ambos chorando — na mesma hora lhe vem o choro e também o arrebata.
Naquela época era comum considerar o choro uma coisa de mulher. Um homem banhado em lágrimas provocava retraimento, e até uma leve repulsa, mais ou menos como uma mulher com uma barbicha crescendo no queixo. Shmuel sentia muita vergonha dessa sua fraqueza e se esforçava muito por superá‑la, mas sem conseguir. No íntimo, ele mesmo aderia às zombarias suscitadas por sua sensibilidade, e até se resignava com o pensamento de que sua masculinidade estava um pouco prejudicada e por isso era bastante provável que sua vida fosse passar em branco e sem atingir qualquer objetivo.
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