(ou duas, já não me lembro)
uma história acerca de um filho do escritor D. João da Câmara, chamado Tomázinho, que só trazia problemas aos pais. Tinha cinco ou seis anos e passava o tempo a fugir de casa. (Isto, julgo eu, no princípio do século vinte.) Uma ocasião foi até à Amadora, outra ocasião até Vila Franca, às vezes demorava mais de um dia a ser encontrado e D. João da Câmara e o resto da família preocupadíssimos. Até que o Tomázinho exagerou: descobriram-no perto de Vendas Novas ou isso, após um tempão de angústias e aflições, e D. João da Câmara, que devia ser uma pessoa muito compreensiva e muito complacente, decidiu tomar uma atitude firme: Chamou o filho para uma conversa séria e disse-lhe, mais ou menos, Tomázinho, nós gostamos todos tanto de ti e tu estás sempre a ires-te embora, não calculas as preocupações que nos dás, não tens o direito de nos fazer sofrer assim, todos te tratamos bem cá em casa, queremos que sejas feliz conosco, o que se passa contigo?
Seguiu-se um silêncio interminável até o Tomázinho se explicar
– Pai, é que eu quero tanto ir à China.
E então, contava João Villaret, D. João da Câmara ficou que tempos em silêncio a olhar o menino à sua frente, que o olhava também. Deve ter sido uma das pausas mais compridas que já houve no mundo, até que D. João da Câmara se levantou da cadeira, colocou a mão no ombro do filho e disse-lhe
– Olha, da próxima vez que te apetecer ir à China diz-me, que eu talvez vá contigo.
Esta história, que eu ouvi há muitos anos, nunca mais me deixou. Meu Deus o que eu teria gostado de, aos cinco anos, viajar à China com o meu pai. Ou sozinho. O problema é que não conheço muito bem o caminho, não estou certo se para a China se vira antes ou depois do Marquês de Pombal, se é necessário passar pelo Areeiro, se há uma seta nos Olivais com a palavra China por baixo, se algum ramal do metro nos conduz até lá. Não conheço nenhum mapa que nos ajude, esses aparelhos com uma voz que explica tudo calam-se acerca do assunto, parece que o mundo inteiro anda a esconder a China de mim. Parece não, é verdade: o mundo inteiro anda a esconder a China de mim. Qual o motivo de me quererem impedir de a visitar, qual o motivo de me proibirem? Nem em casa existe, como existe em todas as outras, um prato de sopa com chineses risonhos impressos, búfalos num arrozal, raparigas de olhos oblíquos, pontezinhas delicadas sobre riachos com juncos? Porque não tenho, no bengaleiro, chapéus cónicos de palha? Quando era miúdo havia sempre chineses a venderem gravatas em Lisboa, sorrindo para toda a gente, sorrindo inclusive, às vezes, para mim. Que é deles? Além disso os chineses não morrem, não sei de uma só criatura no mundo que confesse haver assistido ao enterro de um chinês e portanto são eternos. Onde estão eles que nem debaixo da cama ou no cesto da roupa para lavar encontro um? O Tomázinho tê-los-á descoberto em Vila Franca ou em Vendas Novas e guardado o segredo para ele só? Conheço alguns chineses de nome, Confúcio, Mao Tse Tung, mas nunca me cruzei com eles. Tive uma colega chinesa na Faculdade, chamava-se Raquel, mas desapareceu de súbito no fim do curso e não tornei a vê-la. Até nos dávamos bem porque ela, de vez em quando, me sorria de longe. O que te aconteceu Raquel, tens algum contacto com os búfalos nos arrozais? Com o sol da meia noite? Com a Grande Muralha? Mas sobretudo indica-me o que posso fazer para ir à China, porque tem de existir um atalho, uma solução, um caminho. Que pena João Villaret haver desaparecido: se ainda por aí estivesse, e como sabia tão bem a história do Tomázinho, ensinava-me tudo acerca da China e até pode ser que me acompanhasse recitando ao meu lado a Toada de Portalegre. Era da maneira que matava dois coelhos de uma cajadada e com sorte, já agora, o Tomázinho acompanhar-me-ia a Pequim.
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