sexta-feira, dezembro 28

A crise do mercado editorial brasileiro em cinco perguntas

Livraria Cultura atrasa e depois suspende seus pagamentos. Fecha as duas lojas que tinha no Rio, outra no Recife. Fecha todas as lojas da Fnac no Brasil – pouco mais de um ano antes, ela assumiu a operação da rede francesa e o dinheiro recebido para encerrar as atividades dela no País, acreditaram editores, poderia ser usado para quitar parte das dívidas. Mas não.

Saraiva, na mesma situação da Cultura, atrasa, suspende, fecha 19 livrarias na última segunda-feira de outubro, cinco dias depois de a Cultura entrar com pedido de recuperação judicial. Os rumores de que a maior rede do País, até outubro com cerca de 100 lojas, iria pelo mesmo caminho, começou a rondar o mercado editorial. E foi o que aconteceu. Em pouco mais de um mês, as duas principais livrarias do Brasil pediram à Justiça ajuda para sobreviver – e sofreram mais um pouco para conseguir reabastecer suas lojas para o Natal (Saraiva ainda ofereceu pagamento à vista; Cultura pediu consignação; ou seja, mais crédito).

A crise protagonizada por esses dois ícones expõe um mercado acostumado com as velhas fórmulas, que tenta se manter firme desconsiderando as novas formas de consumo.


“O negócio do livro não vai voltar a ser como era há 10, 20, 50 anos independentemente do quão forte o livro impresso seja”, diz o consultor americano Mike Shatzkin. Ele completa: “A maioria dos títulos disponíveis nas grandes lojas não são vendidos com lucro; eles estão lá para gerar tráfego. Mas, na era digital, isso não funciona mais”. O futuro da livraria pequena e média, para ele, passa pela existência de uma estrutura atacadista que simplifique a vida dos livreiros. E pela aceitação de um negócio menos lucrativo.

Shatzkin é um dos especialistas ouvidos pelo Estado na tentativa de responder a perguntas que mobilizam o setor e leitores no momento: O que está acontecendo com as livrarias? O que vai acontecer com as editoras? O audiolivro pode vingar? Afinal, o brasileiro lê e compra livro? E o que o mercado internacional pode ensinar?

Depois de anos investindo em grandes lojas que ofereciam não apenas livros, mas televisão, telefone, games, DVDs, CDs, lápis e caderno, a conta chegou para as duas principais redes de livrarias do Brasil – a Saraiva e a Cultura. Com uma dívida cada vez mais alta e sem credibilidade perante os editores, elas entraram com pedido de recuperação judicial entre outubro e novembro.

O que vai acontecer num futuro próximo ninguém é capaz de prever. Se não conseguirem cumprir com o plano de recuperação, elas quebram, deixando para trás R$ 365 milhões em dívidas apenas com as editoras, que perdem também dois grandes clientes. Sem contar que isso representaria o fechamento de quase 100 livrarias no Brasil – hoje, são cerca de 2.500 (em 2012, eram 3.481; 20 mil é o número ideal para a Unesco).

Havia esperança de que a Casa Civil gostasse do projeto lei do preço fixo, que limitaria o desconto dado a lançamentos por um determinado período – isso não resolveria a atual crise, mas colocaria as livrarias independentes no jogo. Mas ele foi rejeitado agora e as entidades do livro terão que começar a conversa do zero com o novo governo.

As pequenas livrarias vêm sofrendo nos últimos anos com a hiperconcentração do varejo, algo do qual as editoras, por sua política de desconto, também são responsáveis. “A atual crise não é só das grandes. Trata-se de um processo iniciado nos anos 1980 que conjuga a tendência econômica à hiperconcentração com o advento das novas tecnologias e as modalidades de consumo delas decorrentes”, diz Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias.

Como sair dessa? “Temos que voltar à origem – fazer o simples, o feijão com arroz na administração do negócio –, e repensar a comunicação com o cliente. Uma livraria pequena precisa se diferenciar mais do que nunca. Ela nunca poderá concorrer em preço com o comércio online. E ninguém vai comprar na livraria do bairro porque é amigo do dono. Vai comprar onde mais o convier”, responde. (leia entrevista completa: ‘Vivemos uma situação de total promiscuidade no mundo do livro’, diz Bernardo Gurbanov)

A Saraiva está tentando voltar à origem. Em comunicado, disse ao Estado que “passa a se centrar na categoria de livros, que é e sempre será sua principal área de atuação”. Segue vendendo outras coisas, mas no site.

Um cenário desolador, que coloca em xeque o modelo de negócio e faz pensar em alternativas para o futuro, mas que tem boas notícias também. A Martins Fontes Paulista, focada em livro, registrou até a véspera do Natal crescimento de 56% no faturamento em relação ao mesmo período de 2017. Alexandre Martins Fontes, que sempre teve a Cultura do Conjunto Nacional como modelo, diz que “uma livraria física deve oferecer tudo aquilo que uma livraria virtual não oferece: atendimento personalizado, ambiente aconchegante, eventos culturais, café, etc.”. A Travessa, do Rio, chega a SP e a Lisboa em 2019. E a Leitura se espalha pelo interior do Brasil, aeroportos e rodoviárias.

Com a crise da Saraiva e da Cultura, as editoras enxugaram os lançamentos de 2018 e 2019, diminuíram tiragens, demitiram. Por causa da recuperação judicial das duas, a Companhia das Letras começa o ano com menos R$ 26 mi na conta. A Record, com menos R$ 22 mi e a Sextante, com menos R$ 18 mi. Vai ser difícil, mas elas têm condição de sair dessa.

A dívida com a Dublinense (R$ 30 mil de cada uma) é muito menor, mas os efeitos podem ser mais devastadores para uma independente. “Contávamos com esse dinheiro (e também o da BookPartners, o de outras livrarias menores e distribuidores que nos calotearam e sumiram) pra cumprir os compromissos assumidos de adiantamentos, traduções e publicações. Nosso fluxo é bem justo e não tem espaço para um desfalque desse tamanho. Vamos ter que cortar na carne”, diz o editor Gustavo Faraon.

“Vimos o tsunami chegando e não nos preparamos. Há quatro anos o mercado entrou em recessão, e não fizemos nada. Tratamos esse assunto como estatística. Vimos o mercado cair 20%, o preço do livro se deteriorar, a inflação, a sociedade mudando o perfil de consumo, as livrarias pequenas desaparecendo, distribuidores indo à falência, os balanços negativos da Cultura e Saraiva, a Fnac saindo do Brasil. Os sinais estavam todos aí e preferimos não acreditar. 2018 vai ficar como um marco – mas que seja o de refundação do mercado”, diz Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livros (Snel) e sócio da Sextante.

Este ano ensinou que as editoras não podem se concentrar em poucos canais de venda, diz Pereira. Sônia Jardim, presidente do Grupo Record, conta que voltou a considerar a venda direta. “Precisamos de criatividade para buscar outros canais, independentes dessas livrarias”, diz. Nessa linha, Darkside e FTD acabam de lançar seus e-commerces e a JBC inaugurou a JaporamaStore na Vila Madalena. Companhia das Letras e Todavia fizeram feiras em suas sedes. A Festa da USP, onde editoras oferecem desconto de pelo menos 50%, foi um sucesso. E muitas casas estão buscando ter um marketplace em sites como o Mercado Livre.

O audiolivro tem se mostrado uma tendência nos EUA e em alguns países da Europa. Aqui, desde 2013, a Ubook tenta criar um mercado. Quando Eduardo Albano apresentou sua ideia para editores, ouviu que era melhor pensar em outra coisa. Vindo da área de tecnologia, ele não deu ouvidos. Hoje, a Ubook, serviço de assinatura de audiolivro, começa sua expansão para a América Latina e foi imprescindível para a entrada do Google no negócio aqui (antes da Amazon, que parece não ter pressa), ao fornecer seus 3 mil títulos em português à empresa, que os vende a la carte.

Não é a primeira tentativa de fazer o modelo pegar. Discos nos anos 1980, CDs nos 1990 – vendidos em livraras. “Mas a hora é agora”, acredita Andrea Fontes, do Google. A aposta é no smartphone sempre à mão e na grande adesão às plataformas de áudio.

Custa caro fazer um audiolivro – algo como R$ 800 a hora finalizada na Europa e, aqui, caminha-se para tentar ficar em 200. Se o narrador foi uma celebridade, o preço vai à altura. Só para se ter uma ideia, 21 Lições para o Século 21, de 432 páginas, dura quase 14 horas.

Como ocorreu no início do livro digital, quando algumas das principais editoras fundaram a distribuidora DLD, hoje extinta, para ter mais controle, algumas casas estão se unindo na criação de uma empresa de produção e distribuição de audiolivro – o lançamento deve ser entre abril e maio. Enquanto isso, o digital segue seu crescimento e representa algo como 7% do faturamento para a média das editorias atendidas pela Bookwire, chegando a 15% em alguns casos.

“O clima que toma conta do mercado editorial proíbe falar em otimismo, mas o fato é que, apesar de tudo, os números ainda estão favoráveis, próximos da estabilidade”, conta Ismael Borges, coordenador da Bookskan, ferramenta da Nielsen que mede a venda de livros em livrarias.

Os dados de 2018 não estão fechados, mas o resultado será positivo. Perto do zero, mas positivo. A conta não fecha pela falta de pagamento da Cultura, da Saraiva e de outras empresas em dificuldade. Borges explica que parte desse desempenho resulta de um bom primeiro semestre, seguido de meses mais difíceis.

“Teria sido um ano excepcional”, diz o sócio da Sextante, Marcos da Veiga Pereira.

“O brasileiro lê, sim – e cada vez mais. E tem uma parte do negócio, não auditada, que cresce e se torna pujante, que é da autopublicação e de novos modelos, como os serviços que assinatura”, explica Ricardo Garrido, gerente de aquisição da Amazon.

“Especialistas falam em modelo desatualizado de comercialização, velhas práticas, vícios e pouca inventividade. O mercado precisa se reinventar: a crise não é de consumo”, finaliza Borges.

Mike Shatzkin acompanha o mercado editorial americano e internacional há mais de 40 anos. As incertezas que pairam sobre as empresas brasileiras são antigas conhecidas nos EUA, que assistiram ao colapso da Borders – ela tinha cerca de 450 megastores quando quebrou, em 2011.

“Duas coisas estão acontecendo simultaneamente. Mais e mais leituras estão sendo feitas nas telas. E o que tem sido lido em papel é cada vez mais comprado online e não numa loja física. Essa mudança ocorreu por muitas razões, mas ela é inexorável e há um longo caminho até que se encontre um equilíbrio”, explica o consultor. Ele diz que isso não é ‘culpa’ de ninguém, mas que não se pode administrar uma livraria do mesmo jeito quando mais da metade das pessoas que ainda leem livros impressos não consideram ir até a sua loja para comprar um livro. E quem vai sobreviver? “Os proprietários-gestores que estiverem dispostos a ganhar menos dinheiro”, responde. “Mas o que vai acontecer depois do ‘auge’ das livrarias depende muito de existir uma infraestrutura atacadista para possibilitar a administração de uma pequena livraria”, completa. (leia o depoimento na integra: ‘O negócio do livro não vai voltar a ser como era há 10, 20, 50 anos’, diz Mike Shatzkin.

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