Torturas de Natal
Cada vez que olho esta fotografia tenho uma espécie de susto, e penso obviedades do tipo: "Meu Deus, o tempo existe!". Tirada no Natal de 1956, ela tem - cruzes! - 34 anos. Todo Natal, era sagrado, minha mãe emperiquitava a mim e a meu irmão Cláudio com modelinhos de linho branco e odiosas meias soquete, com elásticos eternamente frouxos, que acabavam escorregando patéticos pelas canelas finas - e chamava o fotógrafo. Não era nada simples chamar um fotógrafo naquele tempo, ainda mais o "Seo Fininho". "Seo Fininho" era magro como um aspargo, branco como a polpa das peras que começavam a amadurecer no quintal. Além disso, tinha a alma delicada e era o único fotógrafo de Santiago do Boqueirão. Tão requisitado que, dizem, às vezes era chamado até para fazer fotos na Argentina, do outro lado do rio Uruguai. Por isso mesmo, era preciso chamá-lo às três da tarde para que aparecesse lá pelas cinco ou seis. Durante todo esse tempo, interminável para Gremlins de sete, oito anos de idade como nós - eu e Cláudio ficávamos enfatiotados e absolutamente proibidos de tocar nos brinquedos colocados ao pé da árvore. Era horrível. Sim, porque no 25 de dezembro à tarde simplesmente toda a molecada estava deitando e rolando pelas ruas da cidade com os brinquedos ganhos na véspera. E nós ali, presos naquelas armaduras de linho branco, com golas abotoadas até o pescoço.
Embora - ou por isso mesmo - tivesse apenas sete ou oito anos de idade, eu já era capaz de ódios profundos. O suor escorria por baixo do paletó (a gente dizia trajo), as meias escorregavam canelas abaixo e o ódio pelo pobre "Seo Fininho" fervia n'alma, assim mesmo com apóstrofe. Só que, fazer malcriação, nem pensar: éramos filhos de Dona Nair, a primeira das dez mais elegantes da cidade, do seu Zaél, orador oficial do Clube União Santiaguense e, como se não bastasse, netos do ex-prefeito Manuel Abreu e de Dona Zaira, diretora do Grupo Escolar Apolinário Alegre, leitora voraz de Machado de Assis. Ou seja, para nossa desgraça, tínhamos que ser finíssimos, exemplo de educação, elegância e bom-comportamento para toda a cidade. Não entendo como, mas ninguém suspeitava de nossa bandidagem, capaz de loucuras como soltar uma galinha do mezanino no Cine Imperial, em pleno suspense do seriado na matinê de domingo. O mocinho amarrado nos trilhos do trem e aquele cá-cá-cá de penas voando em todas as direções, enquanto nosso primo Beto gritava "Fogo! Fogo!'.
Nesse Natal - e olhando a foto, percebo que a árvore não era dessas de plástico de hoje, mas de pinheiro autêntico -, quando "Seo Fininho" chegou, nem eu nem Cláudio aguentávamos mais esperar. Hirtos, obedecendo às ordens de "olha o passarinho! agora, sem se mexer! não pisca, guri!” o jeito que encontrei de expressar o mau-humor foi arregalar os olhos. Meu irmão deixou cair os ombros de tanto rir. Tarde demais: "Seo Fininho" já tinha nos gravado para a posteridade.
Fico olhando os brinquedos a nossos pés. Engraçado, não lembro de quase nada, à exceção do carrinho de madeira com que transportei muita terra, fazendo cidades de areia no fundo do quintal e bonecos de barro que rachavam irremediavelmente quando colocados ao sol para secar. Na verdade, eu nem ligava muito para brinquedos. Já andava escrevendo algumas histórias, lendo Érico Veríssimo escondido, e tenho certeza que lembrava ainda do acontecido impressionante de dois anos antes. Foi no dia em que Getúlio Vargas suicidou-se, e eu perguntei a vovó, que chorava sem parar: "Vovó, o que é mesmo um presidente?" Ela respondeu: "E assim como uma espécie de pai de todo mundo". Até hoje, fiquei com isso na cabeça. A sensação de traição, naturalmente, tem sido medonha nos últimos 36 anos...
Mas, por trás das desilusões políticas, ficaram as fotos dos Natais, o presépio com casinha de papel, os galhos verdadeiros dos pinheiros, a certeza de que, naquela tarde, havia sol lá fora, e uma pergunta inquietante: o que será que a vida fez com o pobre do "Seo Fininho"?
Caio Fernando Abreu
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