Clément Lefèvre |
Os portugueses que não leem acham que ler um livro é uma coisa só para doutores, para mentes brilhantes (o que, curiosamente, até os aproxima de alguns desses intelectos radiosos, que consideram que o livro, enquanto meio, não deve estar acessível a todos, nem aberto à publicação de qualquer tipo de conteúdo), e, apesar de declararem à boca cheia que não gostam de ler, ou que nunca foram muito de ler, não percebem que, se “qualquer um escreve um livro”, é a eles, ou também a eles, que esses livros se destinam. Se calhar, não leem por medo de que os intelectuais, ou, pior ainda, aqueles que os rodeiam, passem a dizer que “que qualquer um lê um livro”.
Os portugueses que não leem ainda não se aperceberam de que, tal como fazer música não está circunscrito aos predestinados como Mozart, ou cinema a realizadores como Bergman ou Tarkovsky, o caminho da escrita também está felizmente desimpedido para quem por ele quiser aventurar-se, seja para procurar fazer arte, registar memórias, partilhar textos humorísticos, ou simplesmente elaborar
manuais práticos de cozinha saudável ou de finanças pessoais. Alguns intelectuais, que curiosamente veem comédias românticas de robe e pantufas aos domingos à tarde, também ainda não perceberam a legitimidade destas criações e, porque não dizê-lo, que talvez a leitura de algumas delas não lhes desagradasse, se convenientemente acompanhada pelas pipocas ou pelos chocolates com que sujam os roupões.
Se muitos dos intelectuais portugueses se levassem menos a sério, deixaria de ser divertido imaginá-los de robe, a cantarolarem bandas sonoras da Whitney Houston ou da Céline Dion, mas, se conseguíssemos que os portugueses que não leem percebessem que, se “qualquer um escreve um livro”, esse livro também lhes é destinado, à semelhança de outras formas de entretenimento, de infoentretenimento ou de simples informação audiovisual que se consomem sem dificuldades, talvez deixássemos de ouvir tal frase. Infelizmente, encontramo-los sentados no mesmo sofá, lado a lado, agarrados à Netflix e ao smartphone, e desconfio de que, qualquer dia, nem uns encontram portas de entrada para a leitura, nem outros conseguem levantar-se e regressar aos escritos – como, aliás, já aconteceu a outro tipo de pessoas, engolidas pela passividade e pelo vício a que os sujeitam os ecrãs.
Aliás, o que até aqui não foi dito foi que o assunto é sério. E que muitos dos portugueses que hoje não leem já foram leitores, pelo que o grande desafio que enfrentamos, bem maior do que tentar mostrar aos que nunca leram que há livros ótimos para eles, é o de resgatar leitores perdidos. Como tenho feito noutros destes textos que aqui tenho dedicado ao mercado do livro e aos hábitos de leitura, volto a recorrer aos números. Se, no espaço de uma década, as vendas de livros decaíram quase 30% em Portugal, não foi por termos passado a ser mais criteriosos nas compras, nem por a população ter diminuído drasticamente, mas sim porque o mundo mudou depressa e nós por cá não tivemos estofo para nos deslumbrarmos com esse mundo novo sem nos esquecermos do que de bom já tínhamos nas nossas vidas. Há dias, topei com a seguinte passagem: “a escrita literária é um ofício que
parece estar em contraciclo com o presente. Tem um tempo diferente, respira de maneira distinta da pressa que caracteriza esta época.” Permita-nos o autor, o escritor João Tordo, ligeiras alterações ao que escreveu e sem dificuldade perceberemos que a ideia se aplica de igual modo à leitura. Também ler parece estar em contraciclo com o tempo que vivemos. Os livros já não são o nosso “principal foco de energia”, lembrou José Tolentino Mendonça, evocando George Steiner, no discurso que proferiu quando lhe foi entregue o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, no final de outubro. Ao livro, disse Tolentino, é reservado “um papel sempre mais minoritário”. O silêncio e a serenidade, sobre os quais também tem escrito amiúde, já não nos são facilmente acessíveis. O ecrã convoca-nos a cada momento, o ruído seduz-nos, ao invés de nos assustar. O livro deixou de ser companhia quando esperamos em consultórios, quando viajamos em autocarros, comboios ou aviões, quando já deitámos as crianças, quando, enfim, temos tempo para nós. O encontro connosco mesmos e com a imaginação foi substituído pela busca do outro, mas nas redes sociais.
Não deixa de ser curioso constatar, porém, que se vendem em Portugal cada vez mais livros para crianças. E não será ilegítimo deduzir que os portugueses que já não leem enchem os filhos de livros (tal como enchem de tudo e mais alguma coisa), na expectativa culpada de que eles venham a ser melhores leitores do que eles são (na expectativa triste de que eles sejam versões melhoradas deles, que durante a infância leram dezenas de vezes os mesmos livros e brincaram anos com os mesmos brinquedos). Mas também as crianças sucumbem ao canto da sereia. O Youtube, repleto de conteúdos sedutores e dificilmente filtrados pelos pais, vence quase sempre. Sucede então às crianças o mesmo que aos adultos e ao livro aquilo que Tolentino Mendonça teme que aconteça quando alerta: “não nos podemos desfazer dele como se fosse um arcaico vestígio destinado a ser progressivamente desativado.”
Portugueses, acordemos, que por cá se lê cada vez menos.
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