Tem um lugarzinho pra mim aí, Menino? Ando precisada. Vejo você, com esse ar inocente e tranquilo, e tenho vontade de desfrutar da sua paz. Tudo bem que sabemos que, ao crescer, você se deu mal e acabou morto aos 33 anos. Vivo neste mundo há mais do dobro desse tempo, e confesso que estou bem cansada. Falta sonho, Menino. O dia a dia ficou chato, mais rotineiro do que nunca, e o presente empacou feito burro teimoso. Aí, na manjedoura, você tem estrelas no céu, animais dóceis à volta, os pais por perto e, logo, receberá a visita de três reis, que virão de longe só para conhecê-Lo e trarão lembranças, dando início à tradição que já dura 21 séculos.
Será que, após tanto tempo, ainda se lembra de nós? Será que o Pai cansou de esperar pela nossa evolução e perdeu a paciência, enviando a praga atual, mais cruel que as anteriores, para mais uma vez separar o joio do trigo? Será que Você precisará voltar à Terra outra vez, para acalmar a ira divina e nos salvar?
Sei não, as coisas mudam. Nos céus, quais serão as prioridades? A ciência já provou que somos dispensáveis para a existência do planeta. E os humanos têm se mostrado tão predadores, destruindo flora e fauna, poluindo água e ar, que talvez o Criador fique em dúvida sobre o que preservar, nós ou a Natureza.
Existem teorias religiosas que profetizam sobre a transferência das boas almas para mundos mais avançados e que à Terra restaria o papel de abrigo às que ainda precisam aperfeiçoar sentimentos e atitudes, livrando-se do desapego, do preconceito, enfim, dos pecados que aprendemos na infância e cometemos diariamente, sem remorso.
Todos os anos, nesta época, colocamos Você sobre palhas e sentimos certa nostalgia de tudo que pregou, especialmente, a compaixão. Ocupados em acumular fortuna, fama, poder, esquecemos de amar as florestas, os oceanos, os rios, os animais, os minerais, as verdadeiras riquezas que o Pai criou por nos considerar Seus herdeiros.
Agora, vivemos apavorados. Nem fortuna, fama ou poder garantem que estaremos vivos, no próximo instante. Um microscópico assassino circula entre nós, nos invade, domina e, muitas vezes, aniquila. Surge no horizonte uma tênue esperança de combatê-lo, mas a vaidade dos governantes ainda pode pôr tudo a perder. Às vezes, penso que retornamos à Idade da Pedra, quando era preciso matar para sobreviver e a vantagem favorecia a força, não a inteligência, então dom embrionário.
Temo um futuro em que nos guerrearemos, lutando pela vacina, pela água, por alimento, por espaço… Diferente do Éden, o planeta sempre foi hostil, exigindo adaptações cada vez mais sofisticadas e seletivas. Por isso, pelo menos nesta noite, quero ficar na manjedoura com Você. Neste estábulo de Belém, o mundo ainda parece calmo e simples, o tempo é aqui e agora, e posso me sentir filha amada de um Pai desiludido com a própria prole. Olhe, lá vem o cometa!
Madô Martins
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